segunda-feira, 30 de abril de 2018

O drama do Brasil descrito há quatro séculos

Quatrocentos anos é tempo demais. Será? Quatro séculos cingem minha família mais próxima — meus avós nasceram no XIX; meus netos, se houver, chegarão ao XXII. Quatro séculos também nos separam dele. Ou talvez devesse escrever Ele, com maiúscula mesmo, qual divindade suprema. Ele, o maior de todos nós, que um dia já nos debatemos com as palavras na tentativa, sempre vã, de deixar rastros escritos. De nada adianta. Ele já escreveu tudo, pouco mais de quatro séculos atrás, nem faz tanto tempo assim. Ele quem? William Shakespeare, oras.

Que teria Shakespeare, cujo nascimento e cuja morte são lembrados neste final de abril, a dizer ao Brasil de hoje? Meu palpite é que encenaria aqui sua última tragédia, aquela que o crítico Harold Bloom chamou de “sua peça política”, que o poeta T. S. Eliot preferia a Hamlet — e que o próprio Shakespeare não teve tempo de montar em vida: Coriolano, a tragédia do general romano incapaz de se curvar às regras do jogo político para conquistar o poder. “O protagonista é um exército de um homem só, a maior máquina de matar em todo Shakespeare”, diz Bloom. Imbatível no campo de batalha, incorruptível, Caio Márcio derrota o arquirrival Aufídio, general dos volscos, e conquista praticamente sozinho a cidade de Coriolo, de onde empresta o sobrenome. Retorna aclamado como futuro cônsul, líder máximo da incipiente República romana.

Em Roma, não vê sentido em distribuir comida de graça ao povo que passa fome. Não esconde enxergar a plebe como uma multidão de vira-latas fétidos, dependentes das altas castas para sua segurança e prosperidade. Aristocrata, orgulhoso, aceita apenas a contragosto, sob pressão da mãe, Volúmnia, e do senador Menênio, trajar as vestes rituais da humildade para discursar diante da população que despreza. O malogro é completo. Fora criado para a guerra, não para a política. Mentir para agradar a turba era-lhe impossível. “Um papel que jamais farei bem”, diz. Não tarda a emergir uma conspiração urdida por tribunos da plebe, que veem no desdém de Coriolano a semente da tirania. É julgado traidor e expulso da cidade. Como vingança, alia-se a Aufídio e aos volscos para atacar sua Roma natal. Antes do embate final, em que destroçaria seus antigos compatriotas, Menênio e Volúmnia imploram-lhe por clemência. Coriolano cede ao apelo materno. Firma a paz com os romanos, apenas para cair refém de cilada armada por Aufídio.

Shakespeare apresenta os dois princípios em tensão na formação da República romana: a aristocracia, representada por patrícios e generais como o imbatível Coriolano; e a democracia, pelos tribunos que manipulam a plebe como forma de garantir seu quinhão de poder. “Os homens de ambos os lados são apaixonadamente sinceros, porém são guiados pelo extremismo míope”, escreve o crítico David Bevington. “Os tribunos insistem, em nome da multidão, que as vozes das pessoas sejam a lei última de Roma. Coriolano, numa resposta furiosa, vê a multidão e seus tribunos eleitos como inimigos da prerrogativa hierárquica, ameaçando a própria existência do Estado.” As vozes moderadas de Menênio e Volúmnia soam ridículas diante dos dois extremos: o populismo que acredita ser possível distribuir comida de graça a todos e o militarismo que vê no governo aristocrático a única forma de manter a paz e a ordem.

Coriolano já se prestou a leituras antagônicas. O marxista Bertolt Brecht celebrou a revolta da plebe contra o general esnobe. O ator e diretor Ralph Fiennes fez do protagonista, no filme ambientado em Belgrado, um aliado de esquerdistas radicais.

A tragédia de Coriolano é, no fundo, a tragédia daqueles que, reféns de orgulho ou ideologia, são incapazes de compreender a natureza ambivalente da política.

“Se uma conclusão emerge, é que o violento conflito político conduz somente à anulação das instituições civilizadas que as poucas pessoas com moderação, como Menênio, esforçam-se, no meio do fogo cruzado, inutilmente por preservar”, diz Bevington. Eis o recado de Shakespeare ao Brasil do século XXI.

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