Meu irmão cursava tornearia no Senai e estudava, por correspondência, desenho mecânico. Ainda hoje me vem à memória a curiosidade que me coçava quando aportavam em nossa casa os envelopes pardos, gordos, do Instituto Universal Brasileiro. Ele saía cedo para a escola, retornava para o almoço, guiando sua bicicleta Philips preta com frisos dourados, freio contra-pedal, voltava para a escola e no finzinho da tarde, após uma longa jornada, que incluía às vezes exaustivas partidas de futebol de salão, é que afinal sentava na pequena sala e abria os envelopes. Ali permanecia até o começo da madrugada, munido de régua, compasso, transferidor, a responder as questões propostas pelos exercícios.
Minha irmã, que tomava conta de mim, liberando minha mãe para se dedicar, com tranquilidade, a bater roupa no tanque e quarar as peças na capoeira, aproveitava para ouvir os programas da Rádio Cataguases, sonhadeira. Ela gostava de, junto com as outras meninas das casas vizinhas, tomar sol no quintal minúsculo, separados todos por frágeis cercas de bambu, esticadas em toalhas e lambuzadas com um líquido, que bem poderia ser urucum, que bem poderia ser Coca-Cola, que as deixavam sempre com a pele vermelha, nunca bronzeadas. Eu não entendia, como ainda não entendo, aquelas tardes de silêncio e suor, em que elas se entregavam à tarefa de imitar lagartixas...
Em geral, pela época do Natal, com todos nós em férias na escola, minha mãe carregava a família, menos meu pai, para a roça, em Rodeiro, uma colônia italiana a uns 50 quilômetros de Cataguases. Lá não havia festa, com distribuição de presentes e ceia à meia-noite. Limitávamos a assistir a Missa do Galo e regressar a pé, palmilhando uma légua de brutal escuridão, até a casa-sede da pequena porção de terra coberta de capim-gordura, voçoroca e cupim, que chamavam pomposamente de Fazenda do Paiol. O 25 de dezembro, para mim e para meus primos, era um dia qualquer. Mas, por um motivo que não sei precisar, não viajamos naquele ano.
E, então, senti no ar a corrente que eletrizava os colegas do cortiço. Caminhávamos pelas imediações e de dentro das casas piscavam as luzinhas das árvores de natal. Na rua do Comércio e adjacências, papais-noéis balançando sinos convidavam os fregueses a entrar nas lojas, enfeitadas de estrelas cadentes e cobertas de papel-crepom vermelho. No coreto da praça Rui Barbosa, um enorme presépio encenava para os transeuntes a pobreza do nascimento de Cristo numa manjedoura, entre animais. De todos os lugares jorravam músicas natalinas. As pessoas aparentavam possuídas por algo que não sabia determinar, mas que as deixavam diferentes.
Não fiquei desapontado quando descobri que todas as crianças recebiam presentes do Papai Noel, menos eu e meus primos – apenas constatei que, evidentemente, ele nunca iria nos encontrar naquela lonjura, que nem luz elétrica tinha. Mas agora com toda certeza ele me compensaria por todos aqueles anos de atraso. E manifestei, pela primeira vez, meu desejo: queria ganhar vários carrinhos, um para cada ano enfurnado em Rodeiro. Disse isso para minha irmã, disse isso para meu pai, disse isso para minha mãe. E devorei ansioso os dias quentes e sufocantes que me separavam da mágica Noite de Natal.
Dezembro é a estação das enchentes em Cataguases. O rio Pomba, que corta a cidade ao meio, impávido e cordato, resolve, nas proximidades do Natal, tornar-se turbulento e ganancioso, invadindo as ruas e as casas e expulsando a população para os lugares mais altos. O cortiço no qual morávamos ficava a poucos metros da margem e no verão havia sempre alguém de olho nas nuvens escuras que se formavam lá para os lados de Barbacena, nascedouro do rio Pomba, e de ouvidos atentos na Rádio Cataguases, que, em contato com cidades rio acima, transmitia boletins de hora em hora sobre o volume das chuvas.
Não foi diferente aquele ano. Na manhã do dia 24 de dezembro, acordamos com as águas beirando as casas e subindo a tal velocidade que os últimos móveis já foram retirados com os adultos mergulhados até à cintura. Pessoas corriam de um lado para outros e a todo momento carreavam notícias cada vez mais preocupantes. Caiu uma tromba-d’água em Tabuleiro do Pomba. Tem uma barragem prestes a estourar. A rodoviária está inundada. Boatos logo desmentidos, mas que alvoroçavam a nós, os indigentes. Fato era que das casas geminadas que compunham o cortiço onde morávamos só vislumbrávamos os tetos.
Perto da meia-noite, reunidos em torno de uma fogueira, ao relento, observando as águas baixarem devagar e manhosamente, alguém lembrou que era a Noite de Natal. De repente, surgiram, não se sabe de onde, uns dois ou três frangos assados, duas garrafas grandes de refrigerantes, uma travessa de arroz com petipoá e uva-passa. O Zé Preguiça, normalmente malvisto por sua boemia, pegou do violão e com a voz possante iniciou o “Noite Feliz”, logo seguido pelo entusiasmo de um coro desafinado. E todos sorriam, e se abraçavam, Feliz Natal! Feliz Natal! Meu pai, que passara o dia inteiro sumido, ajudando a transportar mudanças das casas atingidas pela enchente, aproximou-se de mim e, encabulado, me exibiu uma embalagem azul-celeste, que acomodava toda em sua mão direita. Desapontado, pois a frota por mim imaginada não caberia naquele ridículo pacotinho, o choro travado na garganta, rasguei com raiva o embrulho. Lá estavam seis minúsculos carrinhos de plástico, um para cada Natal perdido.
E, então, senti no ar a corrente que eletrizava os colegas do cortiço. Caminhávamos pelas imediações e de dentro das casas piscavam as luzinhas das árvores de natal. Na rua do Comércio e adjacências, papais-noéis balançando sinos convidavam os fregueses a entrar nas lojas, enfeitadas de estrelas cadentes e cobertas de papel-crepom vermelho. No coreto da praça Rui Barbosa, um enorme presépio encenava para os transeuntes a pobreza do nascimento de Cristo numa manjedoura, entre animais. De todos os lugares jorravam músicas natalinas. As pessoas aparentavam possuídas por algo que não sabia determinar, mas que as deixavam diferentes.
Não fiquei desapontado quando descobri que todas as crianças recebiam presentes do Papai Noel, menos eu e meus primos – apenas constatei que, evidentemente, ele nunca iria nos encontrar naquela lonjura, que nem luz elétrica tinha. Mas agora com toda certeza ele me compensaria por todos aqueles anos de atraso. E manifestei, pela primeira vez, meu desejo: queria ganhar vários carrinhos, um para cada ano enfurnado em Rodeiro. Disse isso para minha irmã, disse isso para meu pai, disse isso para minha mãe. E devorei ansioso os dias quentes e sufocantes que me separavam da mágica Noite de Natal.
Dezembro é a estação das enchentes em Cataguases. O rio Pomba, que corta a cidade ao meio, impávido e cordato, resolve, nas proximidades do Natal, tornar-se turbulento e ganancioso, invadindo as ruas e as casas e expulsando a população para os lugares mais altos. O cortiço no qual morávamos ficava a poucos metros da margem e no verão havia sempre alguém de olho nas nuvens escuras que se formavam lá para os lados de Barbacena, nascedouro do rio Pomba, e de ouvidos atentos na Rádio Cataguases, que, em contato com cidades rio acima, transmitia boletins de hora em hora sobre o volume das chuvas.
Não foi diferente aquele ano. Na manhã do dia 24 de dezembro, acordamos com as águas beirando as casas e subindo a tal velocidade que os últimos móveis já foram retirados com os adultos mergulhados até à cintura. Pessoas corriam de um lado para outros e a todo momento carreavam notícias cada vez mais preocupantes. Caiu uma tromba-d’água em Tabuleiro do Pomba. Tem uma barragem prestes a estourar. A rodoviária está inundada. Boatos logo desmentidos, mas que alvoroçavam a nós, os indigentes. Fato era que das casas geminadas que compunham o cortiço onde morávamos só vislumbrávamos os tetos.
Perto da meia-noite, reunidos em torno de uma fogueira, ao relento, observando as águas baixarem devagar e manhosamente, alguém lembrou que era a Noite de Natal. De repente, surgiram, não se sabe de onde, uns dois ou três frangos assados, duas garrafas grandes de refrigerantes, uma travessa de arroz com petipoá e uva-passa. O Zé Preguiça, normalmente malvisto por sua boemia, pegou do violão e com a voz possante iniciou o “Noite Feliz”, logo seguido pelo entusiasmo de um coro desafinado. E todos sorriam, e se abraçavam, Feliz Natal! Feliz Natal! Meu pai, que passara o dia inteiro sumido, ajudando a transportar mudanças das casas atingidas pela enchente, aproximou-se de mim e, encabulado, me exibiu uma embalagem azul-celeste, que acomodava toda em sua mão direita. Desapontado, pois a frota por mim imaginada não caberia naquele ridículo pacotinho, o choro travado na garganta, rasguei com raiva o embrulho. Lá estavam seis minúsculos carrinhos de plástico, um para cada Natal perdido.
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