quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Que República é essa?

Uma jovem senhora completa 128 anos: a República Federativa do Brasil. A via mais recente de sua certidão de nascimento é a Carta Magna de 1988. Ali está dito que nossa República, Estado democrático de direito, está fundamentada na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político (CF, Art. 1º).

Um sinal especial, congênito, está no Parágrafo único desse artigo: todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.

As aparências enganam. Dona República anda muito maltratada. Persistem, a envelhecê-la precocemente, a profunda desigualdade social, o patrimonialismo, o clientelismo, a ausência de espírito público, a corrupção sistêmica, o arranjo partidário de fantasia. Dona República mora na casa mal assombrada do capitalismo de máfias ou de compadrio.
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Que soberania é essa em que são vendidas a grandes consórcios internacionais, na bacia das almas, as reservas do pré-sal?

Que cidadania é essa que aceita a implementação de políticas de impacto – como privatização de tudo e cortes orçamentários brutais na área social – reagindo mais pelo desencanto do que pela indignação?

Que dignidade da pessoa humana é essa quando há 45,5 milhões de patrícios na pobreza aguda?

Onde há dignidade numa sociedade em que crescem as manifestações de truculência autoritária, de ódio ao que é diferente, de agressão aos direitos das mulheres, dos negros, dos índios, dos LGBT?

Para onde foram os valores sociais do trabalho numa ordem econômica em que 83% dos trabalhadores formais ganham até três salários mínimos, em que cresce o “precariado”, quando entra em vigor vulnerabilização jamais vista dos direitos dos que trabalham, fulminando uma CLT que já incorporara 75% de atualizações (várias delas, aí sim, necessárias)?

Onde está a livre iniciativa, se 90% dos que aqui vivem não podem ter iniciativa empreendedora alguma, por falta de condições e oportunidades?

Livre iniciativa só para os “de cima”, como os do grande capital financeiro, para quem não há crise? (Os quatro maiores bancos do país tiveram mais de 10% de lucros no último trimestre).

Que pluralismo político é esse das grandes quadrilhas partidárias, do condomínio do poder?

Da casta que trama, com êxito, modos e meios de se proteger e se reproduzir, de “estancar a sangria” que as investigações do corrupto conluio público-privado começaram a revelar?

Onde o pluralismo no sistema em que as maiorias sociais são desestimuladas a se organizar, para que jamais possam se tornar maiorias políticas?

Por fim, que poder é esse que emana do povo, mantido à margem das decisões sobre sua vida – tarifa do ônibus ou trem, preço da cesta básica e dos aluguéis, por exemplo? Massa “domesticada” pela tele-ilusão criadora de falsos consensos, estimulada ao cuidar apenas de si, sob a égide do individualismo?

Oswald de Andrade (1890-1954) disse que “o Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”. No país da rica biodiversidade acossada por tremenda devastação ambiental, não é hora de dizer adeus, de desistir, de renunciar. Ao contrário, vamos reproclamar a República, e praticar seus valores!

Chico Alencar

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