Essa volátil sensação de euforia que nos arrebata nesta época do ano serve apenas para nos alienar momentaneamente da realidade. É como as cercas elétricas, os muros altos, as câmeras de segurança e os sistemas de alarme que prometem proteção contra a violência do mundo “lá de fora”, quando, na verdade, não existe o mundo “lá de fora” – estamos imersos na mesma experiência de vida e cada ato que cometemos ou deixamos de cometer modifica de maneira substancial e definitiva tudo e todos que nos rodeiam.
O costume de oferecer presentes de Natal, assim como ocorre hoje em dia, é uma tradição recente, e faz parte do calendário de datas que alavancam a economia – como o Dia das Mães, o Dia dos Namorados, o Black Friday. Aquilo que poderia ser uma manifestação legítima e simpática de lembrança do outro, transformou-se num exercício narcísico: damos presentes na exata medida da nossa expectativa de receber ou então damos presentes como forma de nos impor socialmente. E, hipnotizados pela falsa sensação de bem-estar proporcionada pelo consumo, não medimos as consequências das nossas ações.
Segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, em outubro 61,8% das famílias brasileiras estavam inadimplentes – sendo que 10,1% delas declararam não ter condições de pagar os débitos. Dívidas com atraso de um ano atingem um terço das famílias e 24% do total das famílias endividadas gastam metade da renda para quitar contas e dívidas em atraso. O prazo de endividamento médio, ou seja, o tempo que as famílias levam para saldar suas dívidas, é de 63,8 dias.
Neste Natal, cerca de 13 milhões de pessoas estarão desempregadas – 63,7% do total são pardos ou pretos, segundo definição do Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas). De acordo com o Banco Mundial, 45,5 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza. No entanto, todos, empregados e subempregados, serão, em dezembro, bombardeados com a mesma mensagem: compre, senão você não será feliz. Ou, em outras palavras: felicidade se compra em até doze vezes, sem juros, no cartão de crédito.
O dia 25 de dezembro, antes de ser a data oficial do nascimento de Jesus Cristo, é, aproximadamente, o solstício de inverno, o dia mais curto do ano no Hemisfério Norte. Nesta data, comemorava-se em Roma o Natalis Solis Invicti (“nascimento do Sol Invicto”), festa pagã em homenagem ao deus persa Mitra, um dos mais populares do império. Quando, em 312, o imperador Constantino, que adorava o Sol Invicto, se converteu, pouco a pouco os pregadores cristãos foram assentando as bases da nova religião do Estado sobre as ruínas pagãs. A sobreposição da data do nascimento de Cristo às comemoração do Sol Invicto serviu para a Igreja apropriar-se de algo já fortemente arraigado no imaginário popular.
Hoje, quase ninguém mais lembra que o Natal é uma celebração religiosa. O que menos importa neste dia é recordar o nascimento de Jesus Cristo, mesmo que simulado. Como por uma irônica vingança, a data voltou a ser uma comemoração pagã – troca de presentes, em meio a muita comida e bebida. Ao Natal sucede o réveillon, as férias de verão e finalmente o Carnaval, outra data originalmente religiosa tornada pagã. E quando entrar março, endividados, estaremos às vésperas da eleição presidencial. Implacável, a realidade arrombará a nossa porta...
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