sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Moralismo e autoritarismo

Uma série de decisões absurdas tomadas nos últimos dias pela Justiça vem, infelizmente, corroborar a ideia de que a sociedade brasileira está padecendo de uma gravíssima enfermidade. Não bastasse andarmos assolados pela corrupção, pela violência urbana, pelo caos do sistema de saúde, pela mediocridade do ensino, vamos sendo asfixiados por um moralismo fundamentalista inimaginável até alguns anos atrás, que pouco a pouco pavimenta a estrada para a entronização do autoritarismo político. Pois, senão, vejamos.

No dia 20 de janeiro de 2016, ao descobrir que a filha de 13 anos havia perdido a virgindade, o pai espancou-a com um cabo elétrico, causando oito lesões de 22 centímetros nas costas, e ainda humilhou-a, cortando seus cabelos com uma tesoura. Na semana passada, o réu foi inocentado pelo juiz Leandro Jorge Bittencourt Cano, do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Guarulhos (SP), que afirmou em sua sentença que o pai buscou apenas corrigir a garota. “O agente aplicou moderadamente uma correção física contra a sua filha, gerando uma lesão de natureza leve”. Ele também disse que caso tivesse uma filha e ela cometesse o mesmo ato, tomaria idêntica atitude. “Quanto ao corte dos cabelos, ao que tudo indica, a finalidade do réu não era de humilhar a filha. A intenção dele era que a filha não saísse de casa”, concluiu o condescendente juiz...

Já Waldemar Cláudio de Carvalho, juiz federal da 14ª Vara do Distrito Federal, concedeu liminar ao pedido da psicóloga Rozângela Alves Justino, em processo contra o Conselho Federal de Psicologia (CFP), que lhe havia aplicado censura por oferecer uma terapia de reversão sexual a seus pacientes, conhecida como cura gay. Segundo o juiz, não deve o psicólogo deixar “de estudar ou atender àqueles que voluntariamente venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura". Rozângela é membro do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos e uma das fundadoras do Exodus Brasil, organização cristã interdenominacional, subordinada ao Exodus Global Alliance, que tem como objetivo “unificar e equipar cristãos para ministrar o poder transformador de Jesus Cristo àqueles de alguma maneira envolvidos na homossexualidade”...

Em Jundiaí (SP), o juiz Luiz Antônio de Campos Júnior, da 1ª Vara Cível, decidiu impedir a exibição da peça de teatro O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu,que estava em cartaz na unidade local do Serviço Social do Comércio (Sesc). A obra, criada pela dramaturga escocesa transexual Jo Clifford, mostra Jesus Cristo nos dias atuais, encarnado na pele de uma mulher transexual. Segundo o juiz, a peça é “atentatória à dignidade da fé cristã, na qual Jesus Cristo não é uma imagem e muito menos um objeto de adoração apenas, mas sim o filho de Deus”...

Sem precisar recorrer à Justiça, o Movimento Brasil Livre (MBL) conseguiu acabar com a exposição “Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira”, que estava no Santander Cultural, em Porto Alegre (RS). A mostra, que propunha uma reflexão sobre gênero e diversidade sexual, reunia 273 obras de 90 artistas brasileiros, entre os quais Ligia Clark, Candido Portinari, Alfredo Volpi e Adriana Varejão. Segundo a Arquidiocese de Porto Alegre, a exposição utilizava “de forma desrespeitosa símbolos, elementos e imagens, caricaturando a fé católica e a concepção de moral que enleva o corpo humano e a sexualidade como dom de Deus”...

Moralismo fundamentalista e autoritarismo político sempre andam de mãos dadas. Por isso, não é surpreendente que essas decisões judiciais – três exemplos entre muitos – ocorram no momento mesmo em que um general do Exército, Antônio Hamilton Martins Mourão, violando a hierarquia, afirma claramente que as Forças Armadas estão preparadas para intervir militarmente, caso o Judiciário não consiga resolver “o problema político”, referindo-se à corrupção que grassa no país. A fala do insubordinado general contou com o aplauso compreensivo do ex-capitão do Exército e pré-candidato à Presidência da República, deputado Jair Bolsonaro, que argumentou: “O general falou como um brasileiro qualquer que está indignado com esse estado de putrefação da política brasileira”...

Em São Paulo, os 18 jovens presos no ano passado, por participar de um protesto contra o presidente não eleito Michel Temer, acusados de associação criminosa e corrupção de menores, terão sua primeira audiência no dia 22. O Ministério Público Estadual justifica sua acusação por terem sido apreendidos com o grupo frascos de vinagre, materiais de primeiros socorros, um disco de metal e uma câmera fotográfica, além de uma barra de ferro, que, segundo os jovens, teria sido “plantada” por policiais.

Na época, o grupo contava com a participação entusiasmada de um certo Balta Nunes, que veio, no dia da prisão, revelar-se um agente infiltrado do Exército, o capitão Willian Pina Botelho. Excelente reportagem do EL PAÍS, publicada no dia 23 de outubro de 2016, assinada por Marina Rossi, mostrava a estranha e obscura ligação de Botelho com o general de brigada, Manuel Morata de Almeida, que participou do DOI-CODI nos fins dos anos 1970 e início dos 1980. Após o êxito de sua ação, Botelho foi promovido a major, “por merecimento”...

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