Além disso, é espantoso descobrir que toda essa tonelagem de valores é invisível aos seus membros. O crente não tem consciência da sua crença. O feitiço é tão grande a ponto de pensarmos que falamos uma língua quando é a língua que nos fala. E só tomamos consciência disso quando nos confrontamos com a aparente algaravia de um outro idioma. O encontro com o outro obriga a perceber a diferença e a diferença é o limite que condena a traduzir e a tentar compreender.
A diversidade agencia dúvidas, conduz a escolhas e engendra o inimigo capital dos crentes: a liberdade, o ceticismo e o inesperado abraço da compreensão. O caminho da transcendência anunciada por alguns santos, poetas e filósofos.
Mesmo quando o crente conhece outras crenças, ele não as percebe como alternativas, mas as encara dentro de uma matriz que vai do infantil e do eventualmente divertido até chegar ao “esquisito”. Daí para o errado, o proibido, o censurável, o louco e o abominável, é um passo.
Mas como toda rigidez contém o seu contrário, só a crença produz descrença. E, assim, toma o infiel como desafiador - o outro absoluto -, como forte ou superior justo porque ele resiste. A religião abolida torna-se feitiçaria; a ideologia reprimida vira virtude, a música censurada é a mais ouvida. E o estrangeiro branquela e louro, engalanado por sotaques, é tido como mais civilizado; enquanto o nosso familiar universo misturado é apresentado como doente e atrasado.
Para o nosso lado permanentemente colonizado, os estrangeiros brancos - os “de fora” - sempre foram superiores. Eles contrastam com os negros africanos e os nativos que, no Brasil, constituem uma ficção chamada de “povo”. Na nossa mitologia, cada qual tem uma cota de poder.
Mas nenhuma atinge o ideal atribuído aos “brancos”, que reiteram o paradigma clássico segundo o qual o herói civilizador é um superestrangeiro. Só que eles não vieram do céu, como os deuses, mas nos “descobriram”. Assim, imperadores e imperatrizes austríacas que falavam com sotaque, mandavam na multidão de mestiços e negros dominados por costumes tidos como exóticos e atrasados. De um lado, a Corte; do outro, o Brasil...
O modelo de cima e de fora proibia o de dentro, lido como inferior e doente. Aceitamos costumes de fora tanto quanto ignoramos as nossas práticas cotidianas. Tudo o que é de fora é “legal”. Tudo o que é de dentro é visto como “tupiniquim” - como atraso. Daí resulta essa imensa segmentação entre a máquina administrativa, com seus formalismos supostamente civilizados, e o Estado e a sociedade feitos de jeitinhos nos quais se concretiza o mal-estar de uma indisfarçável ilegalidade recorrentemente produzida. Ilegalidade que cresce na medida em que recusamos levar a sério hábitos e estilos de vida e inventamos leis que não podem pegar. De fato, que fazer quando o compadrio e o parentesco puxam para a nomeação do sobrinho, contrariando a regra que criminaliza o nepotismo costumeiro? O administrador público segue a lei até ser capturado pela força das crenças embutidas nos costumes. Achar que costumes mudam com leis é uma crença que, como diz Gilberto Freyre, promove enormes mudanças formais, mas deixa intocados costumes e crenças para os quais essas mudanças foram dirigidas. Mudamos as leis, mas não preparamos a sociedade para as mudanças por elas requeridas. Seria muito melhor diminuir o fervor legalista para dar mais atenção às demandas dos costumes. Pois a sua força só será domesticada quando eles forem reconhecidos, compreendidos e, na medida do bom senso, atendidos.
Enquanto isso não for realizado, vamos continuar a ter Estado e sociedade como inimigos. Cada qual cavando a sepultura do outro como é o caso dessa crise interminável na qual as demandas da amizade se confundem com as responsabilidades dos cargos e poderes.
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