Os escândalos (antes ocultos) que explodem pelo País mostram a caminhada rumo à maturidade. Foi-se o medo a que a omissão nos condenara e que nos fazia parte do crime, até sem o saber. E apareceu o velho conluio entre poder público e setor privado. A cada dia, novo horror e a mesma engrenagem. Só varia a soma.
Surge então a bofetada, vinda daquele pessoal do espelho retrovisor. Sem entenderem o presente, nossas chamadas elites continuam ausentes do futuro. Desejarão restaurar o passado de alienação e torpor em que nada vemos? Quando invocam grandes realizações ou obras, tudo brilha como os anéis de vidro e falso ouro com que, na infância, brincávamos de reis e rainhas – tudo mentira e ilusão. Fatos recentes mostram quão ativa está a mentalidade do espelho retrovisor.
A balbúrdia na Câmara dos Deputados em torno da rejeição da denúncia para investigar o presidente Temer por corrupção fez esquecer (ou tapou) o que o ministro Gilmar Mendes disse à imprensa ao recomeçarem os trabalhos do Supremo Tribunal. Quando todos (à exceção dos delinquentes) aplaudem a determinação com que o procurador-geral Rodrigo Janot e o Ministério Público enfrentam o crime organizado, eis que Gilmar Mendes pede “a volta de um mínimo de decência, sobriedade e normalidade” à Procuradoria e aos procuradores. De fato, aludia à futura procuradora-geral, Raquel Dodge.
O que é isso senão mudar a óptica com que se vê o crime? Será decência voltar à leniência e permissividade de anos atrás, em que se “engavetava” ou somente se via a letra da lei, sem penetrar no âmago do horror? É isso normalidade? Ou isso gerou o assalto à Petrobrás e tudo o que fez da gestão pública um antro de enriquecimento pessoal? E que criou no Brasil um estranho capitalismo privado mantido por dádivas do Estado?
Disse o ministro que a Corte “ficou a reboque das loucuras do procurador Janot”, com o que contradisse o próprio juízo comum (fonte do Direito) de que o poder judicial e o Estado existem para extirpar o crime, não para permitir que se estenda ou se multiplique. Que “loucuras” praticaram Janot e os procuradores da Lava Jato ao desnudarem a promíscua orgia de políticos, altos funcionários, empresários, doleiros e “operadores” dos partidos?
Ou queríamos que Janot “afrouxasse” e que a investigação se tornasse cartorial e burocrática, com carimbos e teóricos pareceres, com circunlóquios como o nariz do Pinóquio? A Procuradoria podia ter sido mais dura com os irmãos da Friboi (que deram a pista e hoje soltos), mas por estratégia os deixou para mais tarde.
A crítica (ou ataque) de Gilmar a Janot atinge também o próprio STF, que ele disse ser “muito concessivo” e que, “a reboque do procurador, contribuiu para esta bagunça completa”. Desejaríamos o quê? A bagunça de antes, quando nada sabíamos (ainda que desconfiássemos) e os hoje sentenciados e presos (ou com tornozeleiras) posavam de nobres grão-duques do nosso reino republicano?
Tempo de ventania, agosto mostra o encantamento do espelho retrovisor.
A Câmara dos Deputados negou licença para o Supremo Tribunal investigar e julgar o presidente da República por crime de corrupção, como pedia o procurador-geral. Por si só, isso não constituiria deslize nem causaria espanto, não fosse o caminho percorrido.
Primeiro, o PMDB mudou seus membros na Comissão de Constituição de Justiça para que rejeitassem o parecer do relator, que opinara por aceitar a denúncia. Começava aí a transformação do poder em balcão de negócios. Logo, o Palácio do Planalto armou uma rede de convencimentos ou velados subornos, liberando as “emendas ao Orçamento” com que os deputados atendem a seus currais eleitorais, em especial no Norte e Nordeste. Logo, a persuasão direta: dois ministros da intimidade presidencial, Eliseu Padilha e Moreira Franco (ambos réus na Lava Jato) amarraram o apoio necessário.
Alguns partidos, como PMDB, PP, DEM, PRB e outros da base alugada, “fecharam questão” rejeitando a investigação. Não se tratava sequer de julgar o presidente, mas de lhe dar a oportunidade de demonstrar inocência. Assim, em ação planejada, junto com o Planalto acabaram obstruindo a Justiça. E a Câmara que votou a lei da transparência – para que de tudo se tome conhecimento – agora evitou que se esclareçam atos pouco transparentes da mais alta autoridade da República.
Após o resultado, Temer fez um pronunciamento pela TV sem mencionar a causa de tudo, a denúncia do procurador-geral. Limitou-se a elogiar seu próprio governo e a lugares-comuns, dizendo que o ato da Câmara (que não especificou) era “uma conquista do Estado de Direito que mostra a força das instituições”. Não tocou na força da ética, como se não fosse o núcleo de tudo.
Também na oposição houve incongruência. A licença para investigar o presidente é questão ético-moral inerente à respeitabilidade do cargo, mas o PT banalizou-a. Seus deputados votaram “contra a reforma trabalhista” ou “previdenciária”, contra isso e aquilo, temas ausentes do jogo. Votavam pelo “fora Temer”, não pelo crime a investigar. Seria pelo telhado de vidro na própria casa?
Só uns poucos – do PSOL e da Rede aos 21 dissidentes da bancada do PSDB – tocaram na tecla certa e, naquele 263 a 227, votaram vendo o futuro pela frente, não pelo retrovisor.
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