O novo substitutivo libera geral. De mineração em unidades de conservação até asfaltamento de estradas na Amazônia, passando pelo agronegócio extensivo, a lista de atividades que terão dispensa de licenciamento ambiental não cabe num ônibus. E obras do porte da hidrelétrica de Belo Monte, que eventualmente ainda tiverem exigência de licença, não precisarão mais cumprir uma série de condicionantes ambientais para funcionar.
O golpe no licenciamento está sendo dado à vista de toda a sociedade. É que há muita coisa grave acontecendo no país: 90 políticos denunciados por corrupção no Supremo, o Presidente da República e todos os ex-presidentes vivos envolvidos no escândalo da Lava Jato, uma greve geral marcada e um levante prestes a acontecer contra a reforma na Previdência. As pessoas simplesmente não têm tempo de prestar atenção a mais essa traquinagem do Parlamento. Comparada a um país inteiro em convulsão, ela parece de fato uma preocupação menor.
Só que não é. Porque, se o licenciamento for aprovado da maneira como desejam os deputados da bancada ruralista e seus aliados da indústria, o caminho estará aberto para a multiplicação das obras como as investigadas pela Lava Jato — e para a corrupção que vem no pacote. Sob pretexto de reduzir os “entraves” ao “crescimento” do país, os parlamentares estão mandando para o saco a principal ferramenta de controle social de grandes obras de infraestrutura.
Na última segunda-feira, a presidente do Ibama, Suely Araújo, elaborou um parecer devastador sobre o novo substitutivo de Mauro Pereira. Segundo ela, o texto é inaceitável e levará à judicialização, “inviabilizando a segurança jurídica que se intenta alcançar com a Lei Geral [de licenciamento]”.
Entre os principais problemas, além das amplas isenções, está o fato de que a proposta retoma o princípio basilar do “licenciamento flex” de Mauro Pereira: deixa para os Estados e municípios a definição das atividades que precisarão de licenciamento rigoroso. Isso criaria o equivalente ambiental à guerra fiscal, com Estados abaixando sucessivamente o sarrafo dos critérios de licenciamento para atrair mais empreendimentos (afinal, tudo se trata de “desenvolvimento” e “geração de empregos”, né?).
Mas as chicanas jurídicas do texto vão muito além.
Uma das mais perigosas diz respeito a unidades de conservação. Pela lei de 2000 que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, os órgãos gestores de áreas protegidas, como o ICMBio, têm poder de veto nos processos de licenciamento. Isso cai com o substitutivo de Mauro Pereira, o que possibilitaria, por exemplo, construir uma hidrelétrica num rio que corta um parque nacional, mesmo que isso significasse a extinção de uma ou mais espécies.
Sua hidrelétrica vai triplicar a população de uma cidade e pressionar os sistemas de saúde, educação e saneamento? Problema da prefeitura: o empreendedor não tem nada a ver com isso. Pelo novo texto, empreiteiras não serão obrigadas a cumprir condicionantes que impliquem em “implantar infraestrutura de competência do poder público”.
Procurada, a FPA disse que não iria se manifestar sobre o assunto "por enquanto". A CNI não respondeu ao pedido de comentário até o fechamento deste artigo.
A lista de ciladas no texto de Pereira é tão grande e tão caricata que fica difícil saber qual é o objetivo da FPA e da CNI com a proposta. Alguém menos familiarizado com Brasília poderia argumentar que se trata do proverbial “bode na sala”: estica-se a corda de uma negociação com uma proposta absurda para ganhar concessões adiante.
No caso do licenciamento, porém, isso era desnecessário, porque Sarney Filho já entrou na negociação com a FPA cedendo na principal demanda dos ruralistas — a dispensa de licença para agropecuária extensiva. Pode ser simplesmente que eles estejam apresentando essa proposta porque sabem que podem ganhar.
Quem acha que já viu esse filme antes está certo: em 2010, quando a bancada ruralista tinha bem menos poder do que tem hoje, formou-se uma comissão destinada a mudar o Código Florestal. Em 2011, o plenário da Câmara aprovou por imensa maioria a proposta mais absurda de mudança no código, forçando o governo Dilma a entrar numa negociação que já estava perdida desde o início. O resultado todos vimos na aprovação da lei, em 2012, e na explosão do desmatamento na Amazônia nos anos seguintes.
Há poucos motivos para pensar que o licenciamento ambiental terá destino diferente. As Odebrechts da vida agradecem, já que, sem exigências no processo de licenciamento, não terão mais o Ministério Público, os índios, os ambientalistas e “tudo o que não presta” no seu pé, atrasando calendários de obras e exigindo cumprimento de condicionantes. O licenciamento dos sonhos da bancada ruralista e da CNI é também o licenciamento dos sonhos do conluio entre empreiteiras e agentes políticos — aquele com o qual a sociedade brasileira está supostamente enojada.
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