Somos todos refugiados, refugiados da falta dos nossos direitosNa reunião da ocupação do Hotel Cambridge, no centro de São Paulo, os moradores tinham acabado de saber que a juíza concedera a reintegração de posse do prédio. A fala acima é de um brasileiro. Ela revela a tensão sobre quem teria mais direitos entre aqueles que ali estão, e que ali estão porque seus direitos têm sido sistematicamente violados. Um congolês levanta-se e dá uma resposta imediata:
Cena do filme "Era o Hotel Cambridge" |
Outro se levanta:
– Eu sou refugiado palestino. Vocês são refugiados brasileiros no Brasil.
Carmen da Silva Ferreira, a líder da Frente de Luta por Moradia (FLM) e coordenadora da ocupação do Hotel Cambridge, faz a síntese:
– Brasileiro, estrangeiro... somos todos refugiados, refugiados da falta dos nossos direitos.
Esta é uma cena do filme Era o Hotel Cambridge (Aurora Filmes), que acaba de estrear nos cinemas brasileiros e tem sido recebido com respeitosa atenção nos países por onde tem andado. Não é apenas um filme, é também um livro. E não é apenas um filme e um livro, mas um acontecimento. Às vezes uma obra cultural é tão original que provoca um impacto na nossa forma de perceber o Brasil, a cidade, nós mesmos. Era o Hotel Cambridge – o filme assinado por Eliane Caffé, o livro assinado por Carla Caffé – é um destes cortes no tecido do tempo.
O Hotel Cambridge, personagem central do filme, foi na vida real de São Paulo um hotel de luxo construído no final anos 50 com evocações hollywoodianas. Com o crescimento da cidade e o abandono da região central pelos mais ricos, ele testemunhou sua própria decadência. Em 2004, cerrou suas portas e tornou-se mais um esqueleto do centro, um morto insepulto, abandonado ao vazio. Em 2012, foi ocupado pelo movimento dos sem-teto, uma das forças de maior potência da maior cidade do Brasil.
O hotel foi ocupado por cerca de 140 famílias, mais de 240 crianças. A quantidade de meninos e meninas fica explícita em cuidados como um surpreendente e bem organizado estacionamento de carrinhos de bebê. Na dinâmica da especulação imobiliária, que se impõe como uma lógica questionada por poucos, o fato de o Cambridge ter ficado abandonado por oito anos, juntando lixo e empoçando água, tornando-se um criadouro de mosquitos numa época de dengue, zika e chikungunya, não parece ser um problema para a população.
Já quando o velho hotel foi ocupado para a moradia de quem não tem, os ocupantes são tachados de “invasores” – e a urgência de sua denúncia é apagada pelo processo perverso da criminalização. O grupo de homens e mulheres que ocupou o prédio trabalhou dois meses para tirar de dentro do hotel abandonado mais de 200 caçambas de lixo. “Não aguento mais ser faxineira do Estado”, comenta uma personagem durante a ocupação de outro prédio, às voltas com um duríssimo mutirão de limpeza em que se corre risco de contaminação e acidentes.
O curioso do olhar cristalizado sobre as ocupações dos prédios abandonados há anos, às vezes décadas, é que nele os “vândalos” não são os proprietários e especuladores que abandonam edificações numa região crucial para a cidade e para a cidadania, mas aqueles que querem e precisam resgatar o teto para a vida. Esta inversão ergue uma barreira que torna os integrantes dos movimentos de luta por moradia invisíveis apesar de estarem bem ali, na frente de todos. Quando um juiz decide pela reintegração de posse a partir do interior dos muros do seu gabinete, as bombas de gás da Polícia Militar encobrem ainda mais a realidade com fumaça tóxica, invisibilizando agora pela força.
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