A foto mais nojenta que vi, nos últimos tempos, mostra um rapaz com algumas crianças num campo de futebol. Não há nenhuma violência explícita naquela foto ou qualquer coisa que chame a atenção. Na verdade, ela não teria nada de demais se o rapaz não fosse o goleiro Bruno, e as crianças não fossem pequenas fãs, admirando o seu ídolo e lhe pedindo autógrafos. Ela resume o principal ponto de várias discussões que venho tendo desde que ele foi solto: o autor de um crime hediondo não pode ter emprego de herói, ponto. Ressocialização é uma coisa, elevar facínoras a lugar de destaque é outra.
— Ah, mas é o trabalho dele, é o que ele sabe fazer.
Lamento. Matar um semelhante traz certos inconvenientes ao criminoso, ou deveria trazer, entre eles o de permanecer em relativa obscuridade. A mensagem que a libertação e a contratação desse delinquente passam à sociedade é que a celebridade é mais importante do que a decência e que liquidar uma pessoa com requintes de crueldade é um ato perdoável: sequestre, torture, mate, alimente os seus cães com o cadáver, passe meia dúzia de anos na cadeia e retome a vida como se nada tivesse acontecido. A fama aguarda, benfazeja.
É isso mesmo? É isso que queremos ser como sociedade? É isso que queremos ensinar às nossas crianças?
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Para mim, o principal culpado por esse gigantesco equívoco moral é o ministro Marco Aurélio Mello, que autorizou a libertação de Bruno. Sim, eu entendi as inúmeras reportagens que li: há respaldo na lei para a decisão do ministro. Pudera não! O mínimo que se espera da decisão de um ministro é que ela tenha respaldo legal. Mas justiça não se faz apenas com respaldo legal e argumentos técnicos. Se fosse só isso, ninguém precisaria de juízes: bastaria criar um banco de dados com correspondência entre crimes, penas e circunstâncias, e estaria tudo resolvido. Com muita rapidez e incalculável economia para os cofres públicos.
Juízes existem porque cada caso é um caso e porque a lei não é ciência exata. Juízes existem para que a sociedade perceba que há limites para certas ações e que há quem cuide para que a ordem seja mantida. O assassino Bruno solto e mais uma vez glorificado, tirando selfies com fãs e dando autógrafos para crianças, é tudo o que o Brasil não precisa neste momento — um momento em que, para cada lado que se olhe, há um criminoso se dando bem e zombando da coletividade.
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Parabéns, ministro Marco Aurélio. Aí está a sua justiça.
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Adriana Ancelmo é uma espécie de goleiro Bruno na sua modalidade: há a mesma falta de humanidade e de empatia num roubo tão despudorado do dinheiro público quanto no esquartejamento de um corpo dado como alimento aos cães. A madame não sujou as mãos de sangue diretamente, mas foi responsável por mais miséria e mais mortes do que o goleiro. A diferença — por enquanto — é que ela, felizmente, foi impedida de sambar na cara da sociedade.
— Ah, mas e as crianças, coitadas? Estão com pai e mãe presos, essa é uma situação pouco comum.
Lamento. Lamento muito mesmo, de verdade. Muito. Nenhuma criança no mundo deveria ter pais tão canalhas, que em momento algum pensaram em como as suas ações poderiam se refletir na alma e no futuro dos filhos. A primeira preocupação com o bem-estar dessas crianças deveria ter partido deles: que exemplo estavam dando, que tipo de cidadãos imaginavam estar criando?
Pai e mãe presos, vale dizer ausência de ambos os pais, não é, porém, uma situação incomum. Quantas crianças cujas mães estão presas não têm pai em casa? Arrisco dizer muitíssimas. Arrisco dizer também que a família Cabral tem muito mais condições para sustentar as crias dos seus parentes encarcerados do que 99,9% das famílias das demais presidiárias.
No mais, a valer essa interpretação da lei, ter filhos pequenos seria salvo conduto para cometer qualquer crime. Se a madame for para casa, todas as outras presas, cujos crimes nem se comparam aos seus, deveriam também ir para casa.
O juiz Marcelo Bretas que me perdoe, mas mandar Adriana Ancelmo para a sua prisão domiciliar com privada japonesa é a mesma coisa que soltar o goleiro Bruno num time de Varginha. Além da desfeita que isso significa para o povo, será que ele acredita que ficar afastada de telefones e de internet é punição suficiente para quem desviou tanto dinheiro público? E será que ele acredita mesmo que, num universo de babás, motoristas, cozinheiras e porteiros amigos, ela ficaria sem celular? Sério isso? E as crianças, estudariam como? Ficariam, elas também, sem computador? Sem uma única linha de comunicação com o mundo? Sem poder ligar para os amigos e para os parentes? Elas merecem isso? E se acontecesse alguma emergência com uma delas, quem ligaria para o médico?
Bem pensada a sua sentença, juiz Bretas, parabéns.
E obrigada, desembargador Abel Gomes. É bom constatar que ainda há bom senso no Judiciário.
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