A crônica não é lisonjeira, na terra que preza a dupla Law and Order. Mas boa maioria dos juízes norte-americanos opera na mesma zona cinzenta entre atividades judiciais e partidárias. É o que o jornal The New York Times batizou de “realismo legal”. Os magistrados labutam, na essência, em horizonte político (J. Bybee, k.: All Judges are Political, except when they are not, acceptable hypocrisies and the Rule of Law, Stanford Law Books, 2010).
Se nos Estados Unidos ocorre o conúbio de tribunal e política, que dizer do Brasil? A União Nacional dos Juízes Federais (Unajuf) quer magistrados em pleitos e partidos (Estado, 14/3). Mas aqui nenhum juiz é sufragado pela stulta plebs. Nossas togas são escolhidas em concursos, sem favores e votos do eleitor. A dignidade do tribunal, em terras brasileiras, não seria conspurcada por ofertas de pizzas e bebidas gratuitas aos cidadãos. Os juízes pertencem a uma estirpe superior. Seu ânimo e suas sentenças nada devem aos escrutínios em que se pronuncia o “leigo”. Tais enunciados, entretanto, resumem uma ilusão. Estamos aqui em pleno domínio do mito, cauim sorvido em talagadas que reiteram a dormência geral.
Segundo Thomas Spargo, os juízes são políticos “except when they are not”. O sentido da frase é tarefa da mais árdua hermenêutica. Nos Estados Unidos, adianta Bybee, “muitos reconhecem que o processo judicial é permeado pela política. Outros parecem acreditar que as decisões judiciais são definidas por fundamentos puramente legais”. Mas cerca de 87% dos juízes, em 39 unidades da Federação, passam pelas urnas. Aqueles pleitos não diferem dos efetivados para os demais Poderes públicos. E eles custam muito financeiramente. Em 2004 a eleição para a Suprema Corte de Illinois gastou mais do que 18 das 34 eleições para o Senado realizadas no mesmo ano. Anúncios na TV e outros meios são garantidos por grupos de interesse e partidos políticos (Cf. Bybee, J. (Ed): The Collision of Courts, Politics, and the Media, Stanford, 2007).
Custos chamam doadores, doadores nem sempre (o Brasil é prova) buscam alvos legais. Logo, a fé na obediência imparcial e objetiva à Constituição sofre abalos. A média das pesquisas feitas entre 1989 e 2009 mostra que 67% dos entrevistados consideram os juízes imparciais. Mas 70% têm certeza que as sentenças trazem máculas políticas. Para atenuar o problema desde 1940 alguns Estados empregam recrutamento diverso do das urnas. É o “Plano Missouri”. Comissões não partidárias avaliam candidatos e os recomendam. Aos cidadãos é perguntado apenas se aprovam ou não os juízes; 34 Estados usam variantes do “Plano Missouri”. Tais consultas são menos onerosas do que as outras.
Mas, cautela! O processo ordenado supostamente no mérito dos candidatos, adianta Bybee com provas, “pode envolver politicagem (politicking) e lobbies nos bastidores”. O âmbito federal, no qual os juízes não passam por eleições, é mais confiável? Indicados pelo presidente, acolhidos por senadores, magistrados têm permanência garantida, desde que seus costumes sejam pautados pelo decoro. Encantador universo do sonho. Na vida real não é assim. Na Suprema Corte “independente do povo, dos legisladores e de todo poder sob o firmamento”, os juízes “percebem a si mesmos independentes do próprio céu” (Shklar, J. N., Legalism: Law, Morals, and Political Trials). A seleção para os pretórios federais, hoje, “é um assunto altamente político, com funcionários eleitos que perseguem os nomeados para resolver problemas importantes de partidos e proeminentes grupos de interesse” (Hart, H. L.A., The Concept of Law). Poderíamos seguir as teses do autor e de outros sobre a Justiça enleada em política nos Estados Unidos, na França, na Alemanha, na Itália, etc. Do jurista Bybee, urge consultar a importante resenha Electing Judges: The Surprising Effects of Campaigning on Judicial Legitimacy”, em Book Review 22, 2012. Para uma análise diversa, Tamanaha, B. Z., Beyond the Formalist-realist Divide: The Role of Politics in Judging, 2010.
No Brasil, causa tristeza a mendicância – ou o termo chulo usado por Romero Jucá – de quem deseja lugar nos tribunais superiores e no Supremo. A lista de votos inclui muitos fornecidos por congressistas corruptos. Candidatos prometem a políticos, depois presos e condenados, “matar no peito” processos contra eles. Outros aceitam parolagens em chalanas e são aprovados, mesmo constatado plágio em seu doutoramento. Uma consulta à biografia de Saulo Ramos ilustra o ponto. Há diferença entre tais zumbaias e a demagogia dos juízes eleitos pelos cidadãos? Os nossos candidatos à toga não distribuem pizzas aos parlamentares. Eles prometem – se entregam é outro assunto – leniência explícita ou velada. São curiosos os encontros entre julgadores e réus, no segredo dos gabinetes ou no exterior. Salamaleques, num Congresso que tudo troca, parecem piores do que a bajulação das massas. A promiscuidade se transforma em regra. Procuremos saídas que mantenham a dignidade do juiz, da lei, do cidadão honesto. O Estado brasileiro, nos três Poderes, exala miasmas irrespiráveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário