sábado, 4 de março de 2017

A pós-mentira na era da pós-verdade

Deve-se ter em alto apreço a verdade e em alto preço a mentira já que a mentira, chamada de o pior dos roubos, parece agora ampla e irrestrita a esconder malfeitos.

Os otários mendazes e os bobos de todas as cortes nos relembram a receita da mentira: o mentiroso mente primeiro para si mesmo. E, na opinião de Aristóteles, aquele que o faz por dinheiro é um caráter detestável. Dostoiévski nos Irmãos Karamazov: quem mente para si mesmo não consegue distinguir nenhuma verdade. Verdade vem de veritas. Mentira vem de mente. E a mente simplesmente mente...

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Vamos a Platão em “Teeteto”, na análise clara do português José Trindade dos Santos. A “opinião falsa” pode surgir: a. de duas coisas que se sabem; b. de duas que se não sabem; c. de uma que se sabe com outra que não se sabe; e d. de uma que se não sabe com outra que se sabe. Simples?

Não. Benjamin Constant admite o direito de mentir por amor aos homens. Se todos dissessem a verdade, não seria possível a vida em sociedade, não sobreviveriam governos...

Nesses tempos de pós-verdades, deverá ter vez também a pós-mentira. Assim, a lava-jato é uma fábula. As delações, calúnias premiadas. O caixa 2 é lorota eleitoral. As eleições mesmas, uma tapeação. Medidas provisórias são um embuste. As CPIs, logros.

Os empréstimos aos amigos são ludibrios, já que saem deles ludibriados. O milkshake é servido depois de um shake-hands. Mulas entregam envelopes a mulas. A economia vai bem, a política vai mal. A política vai mal, a economia vai bem. Pedro Álvares Cabral está preso em Bangu. O Bangu quer contratar o goleiro Bruno.

Santo Agostinho escreveu os tratados “De Mendatio” (Sobre a Mentira) e “Contra Mendatium” (Contra a Mentira). Neles, a mentira é condenada. Sem a verdade, a salvaguarda heideggeriana do ser, não se vive.

Hoje, a mentira pode ser fraude ou engano propositado. Até a Constituição, na garantia da ampla defesa, admite a omissão da verdade; a verdade, nos tempos da pós-mentira, essa será sempre relativa.

Verdade e história não andam sempre juntas na “acontecimentalização” de Foucault, como explica Candiotto na Revista Kriterion do velho Vellosão: “aquilo qualificado de verdadeiro não habita num já-aí; antes é produzido como acontecimento num espaço e num tempo específicos. No espaço, na medida em que não pode ser válido em qualquer lugar; no tempo, porque algo é verdadeiro num tempo propício, num kairós”.

Voltemos a Platão, agora na República, livro 2: “E quanto à mentira por palavras? Quanto e a quem é útil, a ponto de não merecer desprezo? Não será em relação aos inimigos e aos chamados amigos, quando, devido a um delírio ou a qualquer loucura, intentam praticar má ação, a fim de desviar?” Somos todos bobos.

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