O que parece novo, desta vez, é que a reação não provém de núcleos externos ao sistema e incompatíveis com ele, mas de todo um contingente interno que se sente alijado pelo progresso. Não é possível antecipar se o atual surto representa uma onda passageira ou o prenúncio de um futuro tenebroso e distópico.
Num livro imenso e persuasivo, "Os Anjos Bons da Nossa Natureza" (Companhia das Letras, 2013), o psicólogo evolutivo Steven Pinker havia demonstrado como a violência vem se reduzindo nos últimos séculos, e despencou na segunda metade do século 20. No ano de 2002, por exemplo, mais pessoas morreram por suicídio (873 mil) do que a soma de mortos em conflitos armados, crimes comuns e atentados (741 mil).
"Progress" (Oneworld Publications, 2016), do pesquisador sueco Johan Norberg, mostra que evolução parecida aconteceu sob diversos ângulos mensuráveis. O livro não traz novidades, mas compila uma série impressionante de estimativas esparsas. Desde 1800, por exemplo, embora a população tenha aumentado 7,5 vezes, a riqueza per capita se multiplicou por dez.
Não se trata de fantasia aritmética. A subnutrição, que afetava metade das pessoas em 1945, hoje atinge pouco mais de 10%. Em 1980, 25% tinha acesso a rede sanitária; hoje são mais de 60%. O índice de pobreza absoluta, em que sobreviviam 44% da população em 1981, caiu em 2015 para 10%. A expectativa de vida, estagnada em 30 anos durante séculos, chegou a 50 anos na década de 1960 e hoje está em 71.
As calamidades que nos acometem ou ameaçam são subproduto do próprio progresso, refletido na exaustão de recursos, no adensamento maníaco das metrópoles e na superpopulação, que deve escalar dos atuais 7,4 bilhões até passar de 11 bilhões no final do século, quando se estima que a universalização dos padrões de classe média a faça refluir.
Àquelas melhoras se deve acrescentar que a escravidão está quase extinta, os direitos das minorias são reconhecidos em número crescente de países, pessoas com deficiência têm mais apoio logístico, há menos ditaduras. Claro que essa evolução vale pouco para a parcela substancial ainda excluída dela, e não estanca a impaciência com a demora em erradicar de vez, se não a infelicidade, ao menos a miséria.
Impaciência que não é compartilhada pelo historiador israelense Yuval Noah Harari, para quem o avanço científico está se acelerando de tal modo que no horizonte de duas ou três gerações a espécie terá se libertado não só da escassez e da violência, mas da própria morte, no sentido de a reprogramação genética e a fusão entre humano e máquina virem a propiciar longevidade indefinida.
Harari é um historiador de longos períodos com talento extraordinário para ver a floresta mais do que as árvores. Como todo divulgador inspirado, comete generalizações e simplificações brutais. Sua inventividade vai além dos vislumbres sarcásticos de sua prosa (sobre redes sociais, por exemplo: se lhe dão algo de graça, provavelmente o produto é você).
É autor de dois livros de enorme ambição explicativa, "Sapiens - Uma Breve História da Humanidade" (L&PM, 2015) e "Homo Deus - Uma Breve História do Amanhã" (Companhia das Letras, 2016), o segundo talvez menos interessante que o primeiro ou redundante demais com ele, ambos dilatados até o tamanho requerido pelo consumidor americano, que gosta de livros como baldes de pipoca, bem volumosos.
Seu forte é abordar linguagem, capitalismo, democracia etc. como sistemas de crença religiosa, fantasias compartilhadas numa infinidade de conexões intersubjetivas que multiplicam a capacidade prática do conjunto. Como todo profeta, porém, Harari mantém-se ambíguo, contemplando um cenário de ficção científica em que a humanidade se dissolve no oceano cósmico dos algoritmos, o que pode ser tanto aterrador como uma ótima ideia.
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