Os investigadores da Operação Calicute, cidade da Índia onde outro Cabral, Pedro Álvares, descobridor do Brasil, conheceu a derrota e teve iniciada a decadência, acreditam que ele operou um “banco paralelo” à sombra de uma empresa transportadora de valores para receber, guardar e distribuir dinheiro vivo para a mulher, Adriana Ancelmo, e a mãe, Magali. E mais uma penca de gatunos amestrados, todos mimoseados com joias, cargos públicos e porcentagens em obras contratadas pelo Estado e outras benesses. Descoberto, localizado e preso, foi fichado e trancafiado numa cela em Bangu. Ainda assim, goza de privilégio inestimável: seus cinco companheiros de cela não são bandidos comuns, que poderiam machucá-lo, mas cúmplices de suas aventuras folgazãs e de suas atuais desventuras.
A forma como lavou dinheiro sujo se assemelha ao dito Departamento de Operações Estruturadas de sua parceira Odebrecht, um sofisticado data center na Suíça. E também reproduz a tecnologia de entesouramento e investimento de uma prática ancestral no Estado que governou. Os bicheiros de antigamente, praticantes do “vale o escrito”, também driblavam os controles fiscais, abrigados sob a definição penal da contravenção, ou seja, quase crime. E frequentavam a fina flor da high society carioca nos melhores salões e, sobretudo, no Sambódromo, dirigindo escolas de samba, coloridas e cultuadas lavanderias de valores. Agora como dantes no quartel de Abrantes, apontadores da loteria popular de Saenz Peña, nome de praça na cidade ex-Maravilhosa, continuam entregando o “prêmio do delegado” e convivendo com crocodilos em piscinas. O furto político era até pouco menos arriscado, mas deixou de ser.
Família Brasil, Luis Fernando Verissimo |
Como na República de Pilatos dos velhos tempos, “uma mão lava a outra” e a mesma água de enxaguar propinas evitou a sofrência de “meu pai não é bandido”, por ela berrado à porta do Hospital Souza Aguiar, no complexo presidiário povoado por feras enlouquecidas de vingança. Afinal, quando Rosinha foi governadora, ele não chegou a ser secretário de Segurança Pública? Como aquele agente funerário que foi chamado para maquiar o filho de dom Corleone no Poderoso Chefão, haveria alguém a quem pedir socorro. Ocorreu-lhe, então, instruir seus advogados a procurarem a mais jovem ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com a qual já mantivera contato, Luciana Lóssio. Nomeada pela presidenta afinal deposta, ela poderia evitar humilhação similar à do ex-afilhado e ora desafeto Cabral. As fotos tiradas à entrada deste no presídio para a ficha criminal foram exibidas nos meios de comunicação com estardalhaço idêntico ao dispensado àqueles flagrantes da festa dos guardanapos na cabeça em restaurante de alto luxo em Paris, que Garotinho divulgou em seu blog.
A pressurosa ministra não permitiu que o pai da compreensiva parlamentar passasse sequer uma noite na companhia cruel de antigos desafetos, mais perigosos do que os cinco grã-finos e o colega ex-governador. Dra. Lóssio fora antes advogada de Roseana Sarney, quando esta, derrotada nas urnas pelo adversário Jackson Lago, retomou o posto de governadora do Maranhão, direito do clã inaugurado pelo pai ainda no tempo em que a lei eleitoral dava ao vencido na eleição o cargo que o adversário o houvesse derrotado de maneira ilícita.
Militante petista investida em mandato inviolável, a caridosa magistrada pouco se importou com a divulgação das instruções do réu em questão a seus causídicos, como divulgada fora simultaneamente a investigação aberta pelo Ministério Público Eleitoral sobre denúncia de tentativa de suborno do juiz pelo acusado. O cargo da jovem senhora é vitalício e conta com a proteção automática dos pares. O nobre colegiado apressou-se a soltar uma nota garantindo que todos os seus ministros têm “idoneidade moral” e que as decisões refletem “profundo embasamento teórico”, antes mesmo que qualquer desavisado duvidasse publicamente desses atributos.
Antes de ser solto pela decisão da misericordiosa ministra amiga, o ex-governador protagonizou esperneio registrado por câmeras, ao som da gritaria histérica da mulher e da filha captada por microfones dos meios de comunicação. Piedosos garantistas de quatro costados reclamaram da humilhação imposta ao insigne acusado. Esqueceram-se de que o episódio motivou decisão histórica da jurisconsulta Lóssio. Graças a sua canetada, a piada do “jus sperniandi” (em latim vulgar, direito de espernear) tornou-se jurisprudência na Justiça Eleitoral tupiniquim.
A cena inusitada, a decisão piedosa e o flagrante pornográfico do investimento imobiliário do secretário de governo de Temer (ex-vice da presidenta deposta), ferindo o decoro da paisagem de Salvador, sob a omissão licenciosa do temeroso chefão, ampliam o alcance de constatação de Gilberto Gil. Este outro baiano cantou: “O Rio de Janeiro continua sendo”.
Pelo visto, o Brasil também reproduz a constatação final de George Orwell em A Revolução dos Bichos: “Todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros”. Quem quer um exemplo? A Comissão de Ética Pública da Presidência começou a votar a decisão se abrirá, ou não, inquérito contra Geddel Vieira Lima, o excelentíssimo padroeiro do espigão: cinco dos sete votos foram a favor e o sexto, José Saraiva, pediu vista para impedir o vexame. Ganhará um docinho de caju de dona Carminha Dantas quem adivinhar quem o indicou para a oportuna sinecura. Pois foi mesmo o fiel escudeiro de Temer – aquele apelidado por Itamar Franco de Percevejo de Gabinete. No fim da tarde da segunda-feira 21 de novembro, pressionado pelos fatos, o próprio Geddel pediu para Saraiva votar pela abertura do inquérito contra ele, o que foi feito por unanimidade. E, assim, confirmou que no governo Temer ele manda parar e seguir. Isso faz com que, como o Rio, o Brasil continue sendo. Sempre e mais o mesmo.
Deus nos acolha e guarde, irmãos sem opa, abandonados neste bordel em cuja parede um quadro de Cristo a tudo assiste e nada fala nem faz para impor a ordem.
José Nêumanne Pinto
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