Aceitar um teto é uma ruptura com um sistema no qual o “Estado” tudo podia e cada governo empurrava para o próximo questões cruciais. Se a “República” de 1889 veio para consertar uma sociedade feita de mestiços condenada pela mistura, ela sempre operou imperialmente.
Não é, pois, por acaso que até hoje falar nos limites do “Estado” arrepia certos setores. Um dos argumentos aponta para cortes de investimentos nas chamadas “questões sociais”, como se investir nos direitos fundamentais dos cidadãos não fosse uma formidável questão social, pois é justamente nesta esfera que mais se aplicam critérios gerenciais eficientes e sagrados. Num Brasil de demagogos, estamos todos fartos de Robin Hoods ao contrário, do bando que se elege com os pobres e vira compadre dos ricos.
A discussão dos limites de gastos vai contra todo o simbolismo do poder à brasileira. Os palácios para morar, as secretárias, os aspones, jatinhos, frotas de automóveis, guarda-costas, passaportes diplomáticos, ajudas infindáveis de custo... Uma ética de favores desenhada para enriquecer graças ao aumento dos gastos públicos e às custas do trabalho da sociedade.
No teto está um ator não convidado. É a consciência do trabalho para todos e para cada um. Num Estado com gastos limitados, será imprescindível saber o que cada um produz e quanto recebe para gerenciar tal ou qual ministério, diretoria, conselho e repartição pública. Será preciso acabar a velha distinção entre trabalho (a ser feito pelos comuns) e emprego, a ser apropriado por nós, de acordo com nossas relações pessoais e jogos partidários. Quem trabalha tem como recompensa míseras aposentadorias; mas já para os funcionários públicos, a aposentadoria é promoção. Limite de gastos implica em competência no cargo estatal Será preciso transformar chefes aparentados ou companheiros em patrões concretos, motivados pelo mercado e compulsivamente competitivos. O emprego não pode mais deixar de implicar em trabalho para o Brasil.
Nada mais brasileiro do que o brasileirismo de ter um Estado politicamente aparelhado, na confirmação da coisa pública como propriedade de um governo eleito. Do mesmo modo que o emprego deve virar trabalho, o governo não pode perder de vista os deveres do Estado e este, os interesses de um Brasil inserido num mundo globalizado.
Um Estado bem gerenciado vai obrigar os ocupantes de cargos públicos a realizar aquilo que mais odiamos: a prestação de contas dos nossos gastos. O teto pode transformar o povo pobre que deveria ser nosso eterno vassalo em patrão.
Mas se existem limites, espera-se que o tão falado “corte da própria carne” venha de cima. O teto é uma vitória indiscutível do governo Temer, mas onde cortar será a prova crítica da sua sinceridade gerencial. Se temos 12 milhões sem emprego, não podemos tergiversar com os velhos nababos instalados no topo do nosso republicanismo.
Nada mais fácil do que receitar para os outros. O caso americano não me deixa mentir. Donald que não é o Duck, mas o Trump, desafia as fórmulas feitas. A primeira é a do ardil burguês nas democracias liberais, pois ele prova que muita grana não compra tudo, muito menos uma Presidência: um cargo que requer um ator capaz de compreendê-lo para desempenhá-lo. A segunda é que somos todos crianças quando se trata de entender nossas coletividades. Como é que de um país com um sistema educacional invejável sai um Trump? Descobrir como esses Donalds são fabricados é o enigma que leio nos jornais e revistas de lá. O grande “The New York Times” disse que o nosso Congresso é um circo e tem até um palhaço, o Tiririca. E o que temos hoje na America fundada por fugitivos do Mayflower e por levas de imigrantes que atualizaram os ideais liberais e igualitários dos seus “pais fundadores”?
Ora, temos o Trump dos muros, da mente fechada e do machismo à americana. Pior que isso, corremos o risco de ver o país capaz de destruir o mundo com um presidente que pode destruí-lo. Eis o tamanho da inana.
Roberto DaMatta
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