Ernest Hemingway, no seu consagrado livro “O velho e o mar” ouve o velho Santiago — um pescador pobre e azarado, mas íntegro e inteiramente e orgulhoso do seu papel de caçador de peixes — refletir sobre a virtude apaziguadora chamada esperança.
Ao leitor que não passou pelo livro, lembro que Santiago estava “saloio” ou azarado. Na Amazônia brasileira, dir-se-ia “empanemado” porque abusou de pescar em demasia algum peixe ou porque exagerou na caça de algum animal, tirando do meio ambiente, do qual o predador faz parte, mais do que seria suficiente para a sua sobrevivência. Nos anos 60 (imagine!) publiquei um estudo desse princípio revelador de que, para além da oposição entre sociedade e natureza, há inúmeras e claras interdependências.
Hemingway perpetuou no “Velho e o mar” a sua mais pungente parábola. Um crítico abalizado poderia dizer que tudo o que escreveu foi mitologia, mas eu não preciso ir tão fundo ou insinuar um peixe tão grande. Apenas sugiro que, como um velho ainda mais velho que o velho Santiago, eu reitero o que seria para mim, que não me entendo como azarado (mas teria muitos motivos para fazê-lo), o que seria encontrar nos oceanos deste mundo um extraordinário marlim?
Seria como ganhar sozinho uma loteria e, aparentemente, desfrutar de uma forma de liberdade que até hoje não me foi facultada? Que sonhos pode um velho sonhar? Aliás, será que os velhos sonham com grandes espadartes ou somente — como o velho Santiago — com os leões que ele, um dia, admirou nas areias de uma praia africana?
O que sucede com um velho que pega um enorme peixe, o qual lhe apascente o seu respeitável sentimento de finitude? No caso do velho Santiago, há um enorme regalo inesperado; há a luta para dominá-lo e — em seguida — o inevitável: a presença dos tubarões que começam a devorar a suculenta e nobre carne do peixe pescado...
Ganha-se sozinho uma fortuna. Mas eis que é preciso dividi-la. No momento da distinção, surgem os predadores, e eles chegam de todos os lados, pois são da casa e da rua, do porão e do sótão, do jardim e do quintal. Cada qual abre um sulco na carne do peixe pescado e come furiosamente o seu pedaço. O velho Santiago, como todo velho que por sorte pegou um peixão, luta para defender o símbolo de sua ressurreição. Nesta luta contra o roubo do seu trabalho, ele fere as mãos, usa uma faca sem fio e sente o imenso cansaço dos velhos. Mas Santiago não desiste nem mesmo quando vê o sonho desabar e verifica que não há vida sem tubarões ladravazes, safados e façanhudos — de dentes afiados e, acima de tudo, famintos ao seu redor.
Inveja, ressentimento, feiura, doença, má-fé, burrice, incompetência, hipocrisia, tristeza, preguiça, agressividade, ódio, medo, ignorância, radicalismo, desonestidade — essas doenças todas são (e estão) nos tubarões, mas também não podem ser ignoradas no pescador nem no marlim. A vida tem suas quotas de maldade e bondade, de amor e ódio, de intenção e de acaso.
Quem sabe os velhos não mereçam suas velhices viris, alegres, repletas de saudade e prazer? Quem sabe a fábula do velho Hemingway não é sobre essa capacidade de lutar contra predadores com virilidade? Ou sobre a transitoriedade das riquezas sendo devoradas pelos vermes, como dizia o velho Machado de Assis?
Reli Hemingway obrigando-me a assistir aos capítulos finais desse bizarro impeachment de Dilma Rousseff. A pescaria do marlim, com sua quota de heroísmo e esperança, dá-me alento nesses tempos sombrios que eu jamais esperava viver na minha velhice.
Seria um despautério tentar forçar um drama no outro. Afora a minha identificação com a velhice do velho Santiago, eu, no drama do impeachment, apenas vi tubarões e tabaroas. Uma delas legitimando moralmente o seu clube. Vi igualmente tubarões esbravejantes, mas todos mordendo. Um tubarão graúdo perdeu o rumo, sugeriu maluquice. A ideologia, eis o que aprendo, substitui o instinto. De minha parte, eu faço como velho Santiago: não perco a esperança.
Roberto DaMatta
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