quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Democratizar ou popularizar?

Numa de minhas peregrinações pela Índia, assisti a uma apresentação de música clássica que durou a noite inteira, no bairro Mylapore, em Madras, que parecia o labirinto de uma favela. Rodamos horas num emaranhado de ruelas, deixamos o táxi e caminhamos até o local do concerto. “Não queremos que qualquer um descubra este lugar!”, me disse o diretor do Instituto de Música Carnática da Índia.

Lá, a música é como a oração num templo; não se vende ingresso. Uma cultura elitista? A palavra não se aplica. É a cultura da preservação como conceito, que não se baseia no consumismo.

Aqui, hoje, a música clássica parece uma arte em extinção, fora do nosso dia a dia — mesmo nas elites. Quem, no mais alto meio social, político e cultural, aceita dizer que desconhece Picasso? Mas não se tem pudor em afirmar que não conhece e não entende Stravinsky, Debussy... o que dirá Claudio Santoro!

A obra de arte, em sua manifestação pura — das artes cênicas ao cinema —, não traz garantia de retorno fácil e imediato. É um bem da humanidade. Quem abraça essa vertente é um escolhido, um predestinado. A música-arte sofre ainda mais porque não representa uma commodity e não é um objeto a ser vendido, exibido numa galeria, coleção pessoal ou museu. É usufruída como o ar que se respira, o alimento da alma. Quem tem a chance deste deleite é bem aventurado.


Por isso, devemos democratizar a arte sem popularizá-la. Democratizar é torná-la acessível ao maior número possível. Já popularizá-la implica apor uma nova roupagem — usando qualquer método para torná-la mais palatável? Deturpando–a?

Num país que enfoca prioritariamente a cultura de massa e o resultado rápido e populista, tudo o que não traz esse retorno vai sendo rotulado de “elitista”, perdendo seu lugar como arte e educação. Nossa cultura é diversificada, tem de ser encarada como tal — e nivelar por baixo não acrescenta nada.

A música clássica continua viva, embora pareça submergir como um Titanic. Fervilha, em sua existência como música-museu e também música-invenção. Matéria efêmera, necessita do intérprete para chegar ao ouvinte, alguém que acredite que a música, para continuar a ser uma arte viva, precisa ser continuamente criada. O intérprete não pode se tornar apenas um representante vivo de compositores mortos.

Estou investindo num inusitado formato: o projeto Desmistificando a Música Contemporânea. Passo minha experiência única e pessoal por meio de palavra, música, imagem cênica e vídeo. Estou alcançando crianças e espectadores de diversas camadas sociais e lugares diversos da cidade. Quero provocar a curiosidade do espectador e ampliar sua experiência perceptiva e cognitiva. Stravinsky e Cage para quem nunca os ouviu — isso é delirantemente bom de fazer!

Precisamos de espetáculos destinados não só ao deleite do público em geral mas que provoquem, instiguem, lembrando os audaciosos artistas que fizeram a arte avançar; que tragam à luz fatos desconhecidos, despertando a curiosidade pela música contemporânea. Há que enriquecer a cadeia de produção artística, acreditando na capacidade de ousar nas novas gerações. É isso — ou é ficar eternamente preso no círculo vicioso da arte popularizada e unicamente voltada para o consumo imediato.

Jocy de Oliveira

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