O título não é (totalmente) gozação: o Instituto Lula avisa que o prêmio Luiz Inácio Lula da Silva para aqueles que contribuíram para o desenvolvimento rural foi atribuído… ao Lula. Seria ridículo, se não fosse ridículo. Mas converge com um dos hábitos mais bizarros da esquerda governista do século passado: o do culto à personalidade.
Tudo começou com as homenagens recorrentes ao finado Lenin, morto em 1924 (homenagens cuja progressiva solenidade era precisamente uma cortina de fumaça para a extrema distorção da revolução russa promovida por Stalin). Dessa época é o início do, digamos assim, surto simbólico que levou, entre outras coisas, ao apagamento de Trotsky das fotos históricas – com se mudar uma foto mudasse a própria história.
Não estou dizendo que se Trotsky tivesse podido vencer Stalin a revolução socialista teria sido levada a bom termo (o próprio Trotsky negava a possibilidade da revolução em um só país). Mas o fato é que Trotsky tinha uma percepção cultural bem mais sofisticada, vide as conversas de bom nível com gente como o surrealista André Breton, ou com o casal Diego Rivera e Frida Kahlo (com quem teve um affair ao se refugiar no México, onde acabaria morto).
O culto a Lenin produziria, além da estatuária, itens involuntariamente paspalhos como o broche do Lenin-bebê (foto), que é uma espécie de apropriação de esquerda do milagreiro Menino Jesus. Junto com a virgindade de sua mãe (fecundada por um pai incorpóreo), e a própria vitória de Jesus coincidindo com sua aniquilação física, não é estranho que uma mitologia monoteísta como a cristã se empenhe em situar a fonte da virtude moral fora do corpo. Também não é estranho que a mulher, dotada de útero (ou seja, de um equipamento reprodutor de matéria), seja considerada fonte da tentação viciosa.
O que é esquisitão é que a esquerda supostamente marxista (ou seja, em tese fundada no materialismo dialético, que trata da interrelação dos sistemas sociais com as contingências físicas da produção econômica) viaje nessa maionese simbólica. Como hoje em dia, quando esse é o caso de Nicolás Maduro, que vê o comandante Chavez no c* do cachorro (brincadeira, viu no barro, e piando em um passarinho).
Ou de outro maluco, o nortecoreano Kim Jong-Un, que herdou de seu pai a infalibilidade (isso nem o Papa alega mais) e títulos oficiais que mais parecem nomes de fantasias categoria luxo de Clóvis Bornay, como “Grande Homem Que desceu do Céu” (천출위인), “Suprema Encarnação do Amor Revolucionário Entre Camaradas” (혁명적 동지애의 최고화신) e “Grande Homem, Que É Um Homem de Ações” (실천가형의 위인). Eu maldosamente traduziria como “O Grande Homem Que Caiu na Terra”, “Suprema Encarnação do Amor O Que É Isso, Camarada” e “Grande Homem, Que É Gente Que Faz”.
Brincadeiras à parte, há enorme perigo em envolver um movimento popular com essas simbologias delirantes. Vimos na Rússia uma revolução que, em seu início, mobilizou uma enorme potência criativa – o que pode ser aferido no desenvolvimento explosivo das artes locais, como no cinema (Einsentein, Vertov) e nas poéticas visuais e literárias (Rodchenko, Maiakovski). Stalin se encarregaria de domar e canalizar essa inventividade para a institucionalidade merreca do realismo socialista.
A potência simbólica soviética viria a inspirar, por um lado, a épica nazista, e depois a maoista; e por outro a própria indústria cultural pop. Sim, cineastas russos da década de 1920 como Vertov, Eisenstein e Kulechov são os pais do videoclipe (e as drogas psicodélicas são as mães). Por sorte, chegamos ao século 21 mais equipados para arrastar impiedosamente gente como Maduro e Kim Jong-Un – e Lula – no seu próprio ridículo. Fora um ou outro surto simbólico descontrolado mas rapidamente debelado, como o da Dilma “Coração Valente”, temos (pelo menos uma parte de nós) mostrado resistência a esse tipo de credulidade. Aqui, fizemos flopar um projeto insidioso como o do filme Lula, o Filho do Brasil, peça-chave do lulismo, que passava do bolivariano ao nortecoreano.
Mas onde está, então, na disputa simbólica atual, o resquício de “verdade”, do que interessa? A minha resposta, a sério, é: na zoeira. A grande inteligência coletiva revelada na horizontalidade da internet tem a ver com a disposição (quase incontrolável) de desconstruir o que se apresenta como solene e/ou sagrado, ou seja, vertical. Assim, a rede não é um campo a mais onde o marketing possa lançar suas narrativas sem ter uma recepção crítica. O atraso do PT (ou sua condição patriarcal de “fim de uma era”, e não “o início de outra”) se comprova pela tacanheza narrativa dos chamados blogs progressistas (petistas).
Um novo discurso feminista, por outro lado, começa a marcar posição nas redes. Neste texto, A carapuça do amigo secreto, eu tento estabelecer a importância de uma nova hashtag que somou, à denúncia da #primeiroassédio, um componente de desconstrução e deslocamento. Evidentemente não se trata de negar a seriedade de ocorrências graves mas, ao contrário, impedir que elas sejam sequestradas e abduzidas pelas “grandes narrativas” verticais – inclusive as do “esquerdomacho”.
Por isso eu até entendo a impaciência com que a solidariedade aos parisienses vitimados por ataques terroristas tenha sido tratada por quem “preferia” a solidariedade à tragédia ambiental de Mariana, no Brasil. Por um lado, como especulei neste texto, Meu mártir é mais mártir do que o seu (não), há um componente (cristão e marxista) na busca de narrativas de culpa e punição nas tragédias. Mas, neste caso, houve também o elemento saudável de desconstruir a grande narrativa institucional que tentou se vender em torno de Mariana (acidente, heroísmo, a empresa como co-vítima, a pretensa resposta do estado). Se finalmente está se colocando um dedo na cara da Samarco, da Vale (cujo papel tentou se ocultar), dos governos municipal, estadual e federal, foi (num aparente paradoxo) por conta da pressão das redes virtuais.
Na verdade, a “lama tóxica” não existe no corpo natural da terra. Ela é a resultante de um estupro, o da mineração, e de suas tecnologias mais irresponsáveis. Assim como o abuso de um corpo feminino extrai de uma mulher o seu pior, o abuso da natureza, produto de uma alucinação coletiva patriarcal, conduz a terra ao desequilíbrio e à destruição. Com a chamada esquerda totalmente intoxicada pela ilusão desenvolvimentista, como nota o professor Moysés Pinto Neto, “essa divisão entre direita e esquerda (…) não será a mais relevante para os próximos tempos. A batalha não está mais no campo antitético entre Estado e Mercado, mas entre o crescimento e seus inimigos – os rexistentes ou, usando o termo de Latour, os terranos”.
De certa forma, é a inteligência “terrana” (horizontal) que chega à internet, para desautorizar uma suposta esquerda cuja impertinência narrativa é em tudo similar à da direita. A cara de um peixe morto se parece cada vez mais com uma tragédia – e a cara de um líder autorreferente, autocongratulatório e autocredibilizável como Lula se parece cada vez mais com a de um peixe morto.
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