terça-feira, 5 de maio de 2015

O tratamento errado do erro

Quando for capaz de aceitar que a cada um só cabe o que lhe é devido, talvez a política admita inscrever a justiça no catálogo das virtudes

"O Homem Errado”, de Alfred Hitchcock (1956)
Caros militantes de agora, esqueçam a luta de outrora: eis a conclusão, podem começar a refletir. O partido não tem qualquer responsabilidade nessa situação que envolve a política. A direção tudo decidiu baseada em leis e costumes vigentes. Ponto. Todas as discussões sobre essa questão devem ter em mente o imenso crédito político que desperdiçamos quando decidimos sufocar nossas divergências internas e passamos a prestigiar as grandes operações de paraquedismo político. Mas foi isso que nos permitiu ancorar o partido no aparelho de Estado e a seu soldo empolgar o povo soberano. Saibam: a prática desvirtua a teoria. Ponto.

Só a direção é capaz de compreender a imensa complexidade que apresenta o governo e toda necessidade de azeitar a máquina, abandonar objetivos doutrinários, contratar especialistas em propaganda, mudar orientação. Todos devem estar firmemente convencidos de que não havia outro caminho a ser tomado por quem não pretendesse a derrota. Lealdade é evitar buscar explicação própria e de forma independente.

A admiração pelo ato gratuito que está na origem da nossa formação é uma etapa vencida. O sofrimento e a angústia devem ser partilhados por todos em nome da unidade de ação. É importante que nos dediquemos a enfraquecer argumentos contrários, combater premissas, chegar antecipadamente a resultados favoráveis para aprisionar a discussão no círculo do interesse do país e, assim, abrigar a direção, que tudo decidiu, por trás do partido, que tudo sofreu. Ponto final.

Não é a primeira vez na história da esquerda que a origem e o crescimento da crise de seus partidos estão no tratamento errado do erro. Quem não reconhece o erro não vive a dificuldade moral da sua atitude e se condena a repeti-la. Porque erro não se melhora. Erro deve ser abolido. Especialmente em países como o nosso, onde a democracia ainda não exige dos agentes públicos um piso institucional básico impossível de ser ultrapassado.

Talvez por isso, a honestidade entre nós seja própria da índole pessoal de cada um, uma vez que a igualdade perante a lei não impõe nenhuma exigência ao caráter. Quando for capaz de aceitar que a cada um só cabe o que lhe é devido, talvez a política admita inscrever a justiça no catálogo das virtudes.

Enquanto isso, a corrupção continua essa tecnologia aplicada a uma moral mundana e arrogante: coroa, eu ganho; cara, você perde. Necessita de um meio artificial, um encontro não espontâneo, uma dependência espiritual da mentira. A ficção em que prospera, expulsa o impossível da mente do indivíduo e o faz achar que tudo é possível.

Se oferece como atividade extrativista, em ambiente de valores que não se quantificam. É de gestão arcaica e antieconômica: prefere muita vigilância e pouca transparência. Seu sentimento aflora livre da interdição afetiva, um se divide em dois, dispensa a alma de agir pela vergonha ou pela culpa, impõe descompasso com a estima pública.

Já é hora de a política mudar de perspectiva e aceitar a cultura da culpa, para evitar erros, e a da vergonha, para torná-los intoleráveis.

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