Espantam, mas não convencem.
Porque é mesmo preciso conhecer a História e aprender com ela. E as semelhanças são gritantes – só não as vê quem não quer:
Vivemos tempos de deceção e frustração com os problemas de um sistema que não consegue atender a todos, tal como na Alemanha dos anos 30.
Há líderes populistas e carismáticos de direita radical que sabem tirar partido do ressentimento, oferecendo respostas simplistas para problemas complexos, tal como na Alemanha dos anos 30.
Atribuem-se culpas coletivas e escolhem-se bodes expiatórios para apontar o dedo, tal como na Alemanha dos anos 30.
Procura-se voltar atrás no tempo e recuar a um passado imaginário, tal como na Alemanha dos anos 30.
Temos novas tecnologias disruptivas que catapultam a propaganda, tal como na Alemanha dos anos 30.
E tenta-se descredibilizar os média tradicionais que denunciam as mentiras, os engodos e os perigos destes, tal como na Alemanha dos anos 30.
Quero hoje, excecionalmente de volta às páginas da VISÃO nestes dias cruciais de resistência e luta, focar-me neste último ponto.
Também na Alemanha nazi, houve casos paradigmáticos. O Münchener Post, por exemplo, foi um pequeno jornal de ideologia social-democrata na Baviera que desde cedo identificou, ainda nos anos 1920, um “certo senhor chamado Hitler” e se lançou numa cruzada contra ele. Hitler rapidamente fez dele mais um alvo a abater, pois claro: passou a referir-se ao jornal e aos seus jornalistas como a “peste de Munique” e dizia que cozinham os seus textos “com veneno”. (A jornalista Silvia Bittencourt tem um bom livro sobre o tema, chama-se Cozinha Venenosa – Um Jornal contra Hitler).
Os repórteres e colunistas heróis foram perseguidos, vítimas de intimidação e violência, e o jornal foi encerrado em 1933, assim que Hitler chegou ao poder. Mas alguns conseguiram resistir: Edmund Goldschagg, ex-editor de política, veio a fundar, anos mais tarde, o prestigiado Süddeutsche Zeitung.
Uma das primeiras vítimas mais notáveis desta perseguição aos média foi Carl von Ossestzky, diretor do Weltbühne, que logo em 1933 foi preso e levado para um campo de concentração. Ruth Andreas-Friedrich foi outra jornalista alemã notável, que viveu uma vida dupla. Trabalhava sob o jugo da censura, mas protegia e abrigava perseguidos políticos e judeus, ajudando-os a fugir.
A imprensa livre morreu muito antes de Hitler ser o genocida que conhecemos. Em poucos meses, todos os órgãos de comunicação social passaram a ser controlados pelo Ministério da Propaganda, debaixo da batuta implacável de Joseph Goebbels, que decidia tudo o que era publicado e punia severamente todos os que ousassem sair da linha definida, da mesma forma que queimava livros e cortava o acesso a rádios estrangeiras, afastando “espíritos não alemães” de todo o espaço público.
O ataque sistemático aos órgãos de comunicação social fez sempre parte das cartilhas dos regimes autoritários, dos dois lados do espectro político. Salazar, Mussolini, Estaline fizeram o mesmo, tal como aconteceu na China, em Cuba, na Coreia do Norte, no Irão, em Mianmar, etc. A lista é longa, e a vida de jornalista livre e crítico uma profissão de risco em todas as geografias, e tanto pior dependendo do tipo de regime que está no poder.
Nos dias de hoje, Donald Trump inaugurou um novo estilo de atacar a imprensa livre. Com os seus “engenheiros do caos”, lançou-se numa concertada estratégia de descredibilizar os jornalistas e os órgãos de comunicação social mainstream, que logo apelidou de lamestream (lame significa “aleijado” ou “coxo”) e fake news. Uma moda copiada por todo o globo. Em português nasceu a expressão “jornalixo”, para atacar todos os jornalistas e órgãos de comunicação social tradicionais e, sobretudo, os não abertamente alinhados com o discurso da nova direita radical.
O que é que tudo isto tem a ver com a VISÃO?, perguntarão. Pois tem tudo.
Há duas semanas, André Ventura foi um dos primeiros a congratular-se com a possibilidade de fecho da VISÃO, e depois logo seguido por vários obedientes deputados. “Parece que a Visão vai à falência. É normal, quem fez da sua vida atacar o Chega e atacar-me a mim, é normal que as pessoas tenham dito chega. É para aprenderem: quando atacam aqueles que defendem o povo, o povo é que acaba por olhar para o lado e dizer ‘vocês é que têm de acabar’”, publicou num vídeo nas redes sociais, repetindo a ideia em vários posts.
São várias mentiras em tão poucas palavras, como é costume: 1. A VISÃO foi fundada em 1993 e tem uma vida de jornalismo de qualidade muito antes de aparecer o Chega; 2. A VISÃO não fez vida a atacar o Chega, e sim a denunciar violações aos valores fundamentais em que foi fundada: a democracia, a liberdade, o humanismo (valores que, infelizmente, o Chega detesta e ataca); 3. Não foi a VISÃO que foi à falência, mas o grupo Trust in News que detém outras 15 revistas e que foi vítima de dívidas acumuladas pelo acionista, sendo que a VISÃO foi sempre o motor que deu margem de contribuição positiva para o grupo e que, ainda agora, no meio deste caos, vende cerca de 9 000 exemplares, tem à volta de 6 000 assinantes e fatura perto de muitos milhares de euros por mês. Se a VISÃO fechar, não será certamente por falta de leitores ou de mercado: será sim por causa de uma gestão gravemente danosa e incompetente – esta é a minha opinião e assumo-a (e foi ela que me levou a pedir a demissão no final de 2023).
A liberdade de imprensa incomoda. Esta semana, o ex-jornalista e comentador incisivo Filipe Santos Costa foi atacado em direto na CNN Portugal, num momento de entrevista a Ventura por um painel, com acusações de “representante do Partido Socialista”.
A alegria seria idêntica se uma iminência de falência batesse às portas do Expresso, do Público ou do Polígrafo. Centenas de jornalistas empurrados para o desemprego, prejuízos avultados para credores? Pouco importa. É claro que para André Ventura e “sus muchachos” a vida ficaria muito mais fácil se só existisse a sua Folha Nacional, o jornal do Chega que publica sondagens imaginárias e alucinações de seita.
Deixem-me fazer um ponto de honra. O jornalismo, nacional e internacional, cometeu e comete muitos erros. Tem falhas, engana-se, facilita, vai por caminhos ínvios, dá tiros nos pés, tem dificuldade em lidar com os novos tempos digitais. Eu também terei cometido muitos, certamente, no tempo em que fui diretora da VISÃO. Mas a esmagadora maioria do jornalismo que os média tradicionais de referência fazem em Portugal procura ser isento, honesto e comprometido com a busca da verdade.
A palavra “jornalixo” é todo um tratado de ataque não apenas aos média, mas à democracia e à liberdade. Quem a usa fica irremediavelmente apresentado. Porque não há democracia sem imprensa livre e de denúncia. Porque não há liberdade sem jornalistas incómodos e opinadores críticos.
Na música do genérico do belíssimo filme Ainda Estou Aqui, lê-se: “Estou envergonhado / Com as coisas que eu vi / Mas não vou ficar calado / No conforto, acomodado / Como tantos por aí.” Sim, ainda estamos aqui. E, como jornalistas incómodos, havemos de continuar por aí a denunciar, a criticar e a opinar. Gostem os poderes instalados e os líderes autoritários ou não.

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