quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

O escândalo da existência de tantos moradores de rua

Moradores de rua fazem parte do cotidiano de qualquer cidade brasileira. Estamos habituados à sua presença, num misto de empatia pela situação deles, de um certo medo dessas figuras de aparência desleixada e de colapso por não estar nessa situação.

No Rio de Janeiro, todos os dias vejo roupas de moradores de rua no bairro da Glória. Eles me pedem para comprar um salgadinho na padaria, vendem todo tipo de coisas expostas no chão ou estão simplesmente por ali, deitados, apáticos.

Minha impressão é de que o número de moradores de rua no Rio aumentou bastante depois dos Jogos Olímpicos. No Centro da cidade hoje há centenas de pessoas dormindo lado a lado embaixo de marquises todas as noites.


Frequentemente me questionam como uma pessoa chega a essa situação e como elas fazem para tocar a vida. Me questionei sobre que a sociedade brasileira parece encarar a situação de rua como uma lei da natureza contra o que não há o que fazer.

Um novo estudo do Ipea oferece detalhes sobre o perfil dos moradores de rua no Brasil analisando dados do Cadastro Único, que reúne informações sobre pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza .

Segundo o estudo, cerca de 227 mil pessoas vivem nas ruas do Brasil – juntas, seriam uma cidade de tamanho médio. A imprensa destacou, depois da divulgação, que o número de moradores de rua subiu cerca de 1.000% em dez anos. Na verdade, esse aumento se explica principalmente porque, há uma década, não havia registro de moradores de rua no Cadastro Único. O que de fato levantou fortemente foi o número de moradores de rua cadastrados, que agora também têm acesso a programas sociais. Isso é uma boa notícia.

Mesmo assim, os números assustam – e são mais uma gritante prova da injustiça distribuição de renda, educação, acesso à saúde e à moradia neste país. Enquanto a elite brasileira vive numa riqueza quase inconcebível e desfruta e ostenta sua fartura – pode-se tranquilamente chamar-la de ricos moralmente desleixados – há pessoas que não têm nada além da roupa do corpo.

O morador de rua típico tem 41 anos e é homem. Quase 70% são negros – o que não surpreende num país em que os escravos, uma vez libertos, nunca receberam qualquer capital inicial (uma indenização!), educação ou oportunidades no mercado de trabalho, o que cimentou a situação dos negros no país ao longo de gerações.

O Ipea lista os motivos pelos quais as pessoas acreditam que chegaram à situação de rua. Entre os motivos mais mencionados estão os problemas familiares, o desemprego e o abuso de drogas. Os moradores de rua falam sobre a fragilização ou ruptura de vínculos familiares, a falta de trabalho e o alcoolismo, mas também sobre a perda de moradia, ameaças e violência. Só 3% disseram ter abandonado suas casas por vontade própria.

Que pessoas parem na rua por motivos como esses é um escândalo. A vida nas ruas tira delas, já emocionalmente arrasadas, os últimos resquícios de autoestima e estrutura. Eles se tornam invisíveis, como explicou o padre Júlio Lancellotti , coordenador da Pastoral do Povo da Rua de São Paulo, capital brasileira dos sem-teto.

Com seu trabalho importante e verdadeiramente cristão, Lancellotti tenta vencer de novo. A vida nas ruas causa problemas de saúde, sociais e psíquicos que tornam ainda mais difícil voltar a ter um emprego ou uma moradia. Os números mostram que quase metade dos moradores de rua já está quase um ano nessa situação. Quase um quarto deles, há mais de cinco anos. Quem vive tanto tempo nas ruas terá dificuldades para voltar a ter uma vida estruturada.

O Ipea lança um olhar detalhado sobre o perfil dos moradores de rua, mas o estudo passa ao largo do contexto político e econômico do problema.

Pois, num gritante contraste com a situação de rua, está o número de residências vazias no Brasil: ele aumentou em 87%, para 11 milhões de unidades, entre 2010 e 2022, como mostrado o recente censo do IBGE. Significa que, de cada 100 residências, 13 estão vazias: à venda, para alugar, abandonadas ou aguardando a demolição.

São Paulo lidera essa estatística, com 2 milhões de residências vazias, ou 12% de todas as residências que existem no estado. Na cidade de São Paulo o número de casas e apartamentos sem dobrou desde 2010, chegando a 588 mil.

Como em todas as cidades brasileiras, a construção civil em São Paulo obedece aos ditames do setor imobiliário, que exercem enormes influências sobre a política. Esse setor vê moradia como investimento ou objeto de especulação, não como direito fundamental.

Por isso, para Benedito Barbosa, da União de Movimentos de Moradia (UMM), o aumento do custo dos aluguéis, a expulsão dos pobres das regiões mais valorizadas, a reserva de territórios para o mercado imobiliário e planos diretores excludentes e também a destinação de imóveis para aluguel temporário para Airbnb fazem parte da explicação para a situação dos moradores de rua no Brasil. Só assim o retrato dado pelo Ipea fica completo.

E tanto mais necessário é o Plano Ruas Visíveis – Pelo Direito ao Futuro da População em Situação de Rua, que o governo do presidente Lula apresentou nesta segunda-feira (11/12), mesmo dia da divulgação do estudo do Ipea.

O plano havia sido vetado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, mas felizmente o veto foi derrubado pelo Congresso. A lei proíbe, por exemplo, a chamada arquitetura hostil em espaço público, como a construção ou a instalação de estruturas que dificultam o acesso de moradores em situação de rua.

O programa tem um investimento inicial de R$ 982 milhões. O principal destino desse dinheiro deverá ser os investimentos na alimentação dos moradores de rua, bem como na saúde física e psíquica deles.

É um começo para mudar essa situação escandalosa, que nega o direito humano à moradia a tantas pessoas e não pode ser aceita por nenhuma sociedade civilizada.

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