terça-feira, 4 de julho de 2023

‘Narrativa’: a nova fraude ideológica

Desde as últimas décadas do século passado, a chamada Teoria do Discurso tem trazido importantes aportes às Ciências Sociais – não apenas à Sociologia e à Ciência Política, mas também à História e ao Direito, entre outras disciplinas. Mediante a incorporação e reelaboração dos conhecimentos linguísticos recentes, ela ampliou consideravelmente a compreensão de diversos fenômenos característicos das formações sociais contemporâneas – em especial, dos novos processos sociais e políticos que as constituem.

Revestem-se de especial importância, aos fins deste artigo, os principais conceitos cunhados pelos formuladores da nova teoria – a começar, pelo de discurso. Diferente de sua acepção vernacular, ou mesmo do senso comum do vocábulo, não se trata aqui daquilo que se fala ou diz – ou ao menos, não apenas disso. O que se fala ou diz, consiste na fala, conceito distinto e abarcado pelo de discurso – que remete, além dela, a quem, para quem, sobre quem ou o quê, para quê e porque se fala. Donde se chega a outro conceito fundamental para a compreensão dos fenômenos discursivos – o de sujeito; melhor dizendo, de sujeitos – aquele que fala e aquele a quem se fala.


Consideradas estas noções, os estudiosos definem o discurso como a articulação de significados socialmente existentes; o que importa sobremaneira destacar nesta definição, é que o discurso não cria verdades – ou mentiras – mas, isto sim, articula, organiza sentidos que estão presentes, embora dispersos, diluídos entre os sujeitos sociais que busca atingir. Um exemplo, entre tantos que se poderia apontar: o discurso sobre violência e criminalidade não inventa seus conhecidos temas – o aumento da insegurança, a frouxidão da lei e da justiça, a impunidade, etc – antes os recolhe na realidade social e os reordena no imaginário dos sujeitos destinatários, na direção desejada pelo sujeito emissor, neste caso, o endurecimento penal e o autoritarismo estatal.

Estas referências aos conceitos básicos da teoria do discurso, e à sua relevância como instrumento de análise política, são feitas aqui a propósito da emergência, nas falas dos partidários da extrema direita, de uma expressão de conteúdo vazio e indeterminado, mas revestida de aparência supostamente técnica.

Trata-se do termo narrativa, a toda hora invocado pelos adeptos do neofascismo como presumível justificativa para seus atos, e também como alegado artifício ou estratagema de seus inimigos – não apenas a esquerda, mas também os integrantes dos Tribunais Superiores, em especial o STF e o TSE, em virtude dos inquéritos e processos ali instaurados em resposta a seus comportamentos criminosos e antidemocráticos.

Em suma, quanto a estas acusações, não passariam as mesmas de meras “narrativas” oriundas daqueles setores, interessados em atacar as lideranças patrióticas; e, curiosa e contraditoriamente, propugnam estes mesmos direitistas, como método a adotar em sua “guerra cultural”, o uso generalizado de…narrativas.

De qualquer sorte, o que importa destacar a propósito, desde logo, é a absoluta ausência, entre os conceitos da teoria do discurso ou mesmo da ciência da linguagem, de uma tal ideia ou noção. E ao observador atento não escaparão os verdadeiros sentidos e alcance da palavra, ao que parece tão cara à novilíngua fascistóide. Com efeito, encadear os fatos em uma sucessão aparentemente lógica – embora não necessariamente apoiada na realidade, ou até mesmo destituída deste apoio factual – na defesa de uma posição na disputa dialética, outra coisa não é senão apresentar uma versão dos acontecimentos.

Efetivamente, a tal “narrativa”, não passa disto: do procedimento, tão conhecido e corriqueiro, de apresentação de uma versão, isto é, de relato de fatos, objeto de controvérsia, segundo a ótica de partícipe do conflito, e dirigido explicitamente à sustentação de seu interesse no mesmo. É o que ocorre rotineiramente no debate judicial, no qual as partes fazem a “exposição dos fatos” (expressão usada pela lei processual) que eventualmente dão suporte às suas pretensões. Ou ainda nas matérias jornalísticas, que apresentam os diferentes relatos acerca das ocorrências noticiadas – inclusive seguindo (ou devendo seguir) a expressa recomendação quanto a “ouvir o outro lado”. E também nas discussões políticas, dentro e fora dos parlamentos, quando os oponentes expõem suas diferentes versões sobre os episódios ocorridos.

Em todos estes casos é de “narrativas” que se trata, ou seja, de versões, de relatos parcializados de fatos controversos – o que, considerados em tais contextos, nada têm de impróprio ou condenável.

O que não se pode aceitar, no entanto, é o uso indevido desta expressão como forma de reduzir o debate político à mera invocação de argumentos puramente cerebrinos, na defesa de posições insustentáveis frente aos princípios democráticos consagrados na Constituição e nas leis da República. Trata-se, este procedimento inovador, de mais um truque típico das chamadas fake news, ou mesmo de fake opinions, artifícios de que se utilizam a nova extrema direita global, sobretudo no universo fluído e ainda infenso de controle das ditas redes sociais digitais: a alusão, repetida ad nauseam, a fatos inverídicos, ou mesmo verdadeiros, mas distorcidos.

Deve-se salientar que não se está diante de recurso dialético apenas equivocado – mas, repita-se sempre o alerta, frente ao emprego de ardil discursivo fraudulento, contra o qual se deve reagir veementemente, por meio da permanente confrontação das versões trazidas à discussão pública com a realidade dos fatos – o juízo de verdade ou verossimilhança; bem como as submetendo ao exame de sua consistência lógica interna – o juízo de coerência.

Efetivamente, diante deste desafio que se apresenta, na luta ideológica contra a nova extrema direita, os democratas e progressistas devem esgrimir os instrumentos da razão contra a manipulação discursiva autoritária dos significados socialmente existentes. Com inteira consciência, entretanto, da impossibilidade absoluta de convencimento de seus adversários – melhor dizendo, inimigos, pois assim se comportam – movidos que são, estes, por crenças irremovíveis pela argumentação racional.

Mas visando, isto sim, à parte expressiva da audiência pública (ainda) não interpelada pelo discurso neofascista.

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