Muitos não tiveram opção. Tome-se o exemplo de Félix Maradiaga, aliado de primeira hora da fase inicial do governo Ortega. Ocupou cargos políticos de peso, como o Departamento de Reintegração de Combatentes e a Secretaria Geral do Ministério da Defesa, até declarar sua intenção de concorrer à Presidência do país. Em 2021, tornou-se um dos presos políticos de Ortega. Durante 18 meses, permaneceu jogado em cela escura, sem acesso a material de leitura, telefonema, visita ou correspondência. No 611º dia, em plena madrugada de 9 de fevereiro de 2023, um agente penitenciário acordou todos da cela de Maradiaga ordenando que se vestissem. Dali foram encaminhados a vans de vidros vedados. Desconheciam seu destino até serem despejados na pista do aeroporto de Manágua. Apesar de algemados, tiveram de assinar uma declaração que continha uma só linha: “Eu (nome) deixo o país por vontade própria rumo aos Estados Unidos”. Um grupo de diplomatas do Departamento de Estado que acompanhou o embarque dos 222 prisioneiros expulsos por Ortega lhes disse:
— Agora vocês estão livres.
Livres? Em longo relato à National Public Radio (NPR) dos Estados Unidos, Maradiaga relembra a montanha-russa emocional:
— Entramos no voo fretado e continuamos em silêncio por alguns minutos. Depois começamos a cantar o Hino Nacional, a rezar, ouvimos um dos diplomatas americanos dizer que estávamos voando para Washington.
Somente ao desembarcar no aeroporto internacional Dulles, no Estado da Virgínia, ficaram sabendo que sua cidadania havia sido roubada. Ortega os condenara a ser apátridas, à morte cívica. Entre os acusados de “traição à pátria” estavam sete possíveis candidatos à sucessão de Ortega, advogados, jornalistas, ativistas, ex-aliados dissidentes. A identidade cívica de outros 94 adversários políticos do regime que já viviam no exterior também foi apagada. Em graus variados, os governos de México, Espanha, Colômbia, Estados Unidos e Equador lhes ofereceram proteção, nacionalidade ou cidadania plena. Maradiaga optou por continuar sendo apátrida:
— Sou nicaraguense e tenho o direito de continuar sendo nicaraguense.
Como se sabe, pelo mesmo decreto de expulsão, todos os bens, propriedades e ativos em empresas dos agora apátridas foram confiscados. Ainda no mês passado, até mesmo o casarão colonial da Fundação Luisa Mercado, que já fora interditado no ano anterior, foi vandalizado pela polícia de Ortega. Desde 2018, início dos protestos de massa contra o autoritarismo, mais de 3 mil ONGs e instituições culturais foram fechadas pelo regime. A Luisa Mercado não era uma qualquer. Fora presidida pelo escritor Sergio Ramírez Mercado, prêmios Cervantes, Carlos Fuentes e Alfaguara de Literatura, banido do país desde a publicação de seu romance “Tongolele no sabía bailar”, que conta a história de um agente de Segurança Interna de um Estado repressivo. Ramírez, que serviu o país como vice-presidente na fase inicial do governo sandinista (1985-1990), foi uma das primeiras vozes a apontar para a falência democrática do regime. Vive a dor do exílio na Espanha e sofreu amargor adicional recente quando a Suprema Corte nicaraguense anulou seu diploma de Direito. Pequenas vinganças de ditaduras rotas.
— A Nicarágua é quem eu sou, o que tenho e nunca deixarei de ser nem de ter. É minha memória e minhas lembranças, minha língua e meu escrever, minha luta e minha liberdade. Quanto mais tiram a Nicarágua de mim, mais Nicarágua tenho em mim — escreveu em postagem no Twitter.
Para o bispo Rolando Álvarez, que cumpre pena de 26 anos na prisão La Modelo e nesta semana teve o direito de recusar ser um expatriado a mais, seu endereço cívico é ali, na ditadura de Daniel Ortega. Seus sapatos conhecem o caminho da luta.
Não há teoria da relatividade democrática capaz de justificar tantas décadas de arbítrio. Melhor mudar de teoria, presidente Lula. E de prática.
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