A principal nota das presidenciais brasileiras não foi a vitória de Lula, foi a força do bolsonarismo que, com 49 milhões de votos, mudou a paisagem política brasileira. Mas a insistência em imitar Trump – desconfiança nos resultados, ausência na posse do sucessor, alimentação de uma base negacionista – colocaram Bolsonaro no comando de uma marcha de mortos-vivos demasiado perigosa que dificilmente terá um apoio sólido.
Dois anos e dois dias depois, a história repetiu-se como tragédia e farsa de uma assentada. O Capitólio de 6 e janeiro de 2021 e a Praça dos Três Poderes de 2023 serão recordados em conjunto por muito tempo. Já sabemos que o assalto de Washington não liquidou Trump, bem pelo contrário, e que o seu poder sobre o Partido Republicano só começou a ser posto em causa quando a sua estrela eleitoral brilhou pouco ou nada nas intercalares do ano passado. Ainda sabemos pouco sobre o triplo assalto de Brasília, mas hoje Bolsonaro cruzou o Rubicão e os partidos de centro e direita começarão a tentar limitar o seu raio de ação.
O sistema político brasileiro é uma cópia aproximada do americano. Mas tem uma enorme diferença no número de partidos – nascem como cogumelos e caem como tordos –, que conseguem eleger representantes ao nível municipal, estadual ou federal. Na ressaca do impeachment de Dilma e da Operação Lava Jato (que varreu tudo, do PT ao centro-direita), Jair Bolsonaro conseguiu facilmente caminhar sobre as águas e surgir como aglutinador de todos os que queriam afastar o PT do poder.
Os seus defeitos, excessos, bizarrias, casos de indigência ou de simpatia declarada pela ditadura militar e pela tortura eram imensos. Mas a corrupção no PT era tão descarada que a promessa de limpeza do sistema foi facilmente conseguida. Quatro anos depois, em 2022, foi bem diferente. Quando se apresentou a votos Bolsonaro era o político mais detestado do Brasil. Perdeu para o segundo mais detestado do Brasil, Luiz Inácio Lula da Siva.
Lula era o político com mais capacidade agregar uma frente contra Bolsonaro, mas também o mais fácil de atacar. No fim da sengunda volta ficou claro que o bolsonarismo estava bem vivo e que tinha mudado a paisagem política brasileira, revolucionando o tradicional centro-direita brasileiro, nas ideias, nos valores e na prática. Mas ficou também claro que na enorme massa de 49 milhões de eleitores existia um grupo mais pequeno que se recusava a acreditar no resultado. Isso não acontecia por acaso; a ideia foi sistemática e laboriosamente trabalhada por Jair Bolsonaro desde o verão de 2021, quando começou a pôr em causa a seriedade do apuramento de votos.
A desconfiança do sistema eleitoral, somada à guerra aberta com o poder judicial foram seladas com o silêncio e ambiguidade do Presidente derrotado. Esteve calado dias e dias depois das eleições, deixou que o país fosse paralisado por cortes de estradas, nunca felicitou o opositor, deixou que a ideia de golpe eleitoral galopasse nos grupos de WhatsApp dos seus apoiantes, ao mesmo tempo que cresciam os pedidos de uma intervenção militar. Faltou à posse, saiu do país dois dias antes e rumou aos EUA de férias, onde estará pelo menos até ao final do mês.
Tendo o poder de, com poucas palavras, desmobilizar os acampamentos que os seus apoiantes fizeram junto aos quartéis, nunca o usou. Sabendo que podiam marchar sobre Brasília, nunca os travou. Quando escrevo este artigo – cinco horas depois do assalto – continua em silêncio. Talvez o rompa, provavelmente com a ambiguidade de sempre, de quem precisa de alimentar a sua base mais militante nem que seja à distância, no exílio temporário na Flórida. O problema de Bolsonaro é que essa base – que nunca o abandonará – cruzou uma linha demasiado perigosa.
Os militares, que alinham com Bolsonaro, estarão declaradamente contra isto. As policias dificilmente poderão contemporizar com mais selfies ao lado de vândalos. Os governadores terão que defender a sua lei e ordem. Os empresários, que têm horror ao caos e à desordem, não vão alinhar em mais nada. Os mercados detestaram as primeiras medidas de Lula, algumas com tiques venezuelanos. Mas ainda detestam mais a anarquia no poder.
Em três meses o bolsonarismo passou de movimento bem vivo a uma marcha de mortos-vivos que se arrastam pelos jardins de Niemeyer para partir vidros, destruir quadros e arrancar portas em delírio. Uma imitação demasiado grotesca e fraca da partitura de Trump e que dificilmente conseguirá manter a força durante muito tempo.
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