domingo, 12 de junho de 2022

Shows de parasitas

Há um fio de continuidade entre determinados episódios sob o regime militar e os atuais shows de cantores ditos sertanejos, financiados por prefeituras que dilapidam os seus orçamentos precários, desviando verbas da saúde e da educação.

Esse fio são os pagamentos astronômicos para algo que se apregoa publicitariamente como "cultura". Na época, o "espetáculo" não era musical, mas a reprodução em revistas coloridas das benesses auferidas por remotos municípios nordestinos como consequência dos supostos avanços promovidos pelo regime.

Não eram atividades mediadas por um publicitário ou um jornalista qualquer: o produtor detinha excepcionais condições de pressão, a exemplo de contatos com figuras poderosas, senão a intimidação por meio de documentos especiais, para coagir os ordenadores de despesas de pequenas localidades.


Os resultados eram edições especiais a cores destinadas a fixar a imagem festiva da transformação das condições de vida locais. Chantagem desse peso poderia arruinar por anos um pequeno orçamento municipal. Mas a mediocrização autocrática justificava-se com o nome da cultura, entendida como divulgação e entretenimento.

Um primeiro problema é que "cultura" é noção ao mesmo tempo vital e ambígua. Classicamente, impôs-se como o vínculo existencial que os homens mantêm entre si, articulado como uma totalidade que desenha o espaço-tempo de uma sociedade, logo, as funções institucionais que orientam comportamentos e atitudes.

Por complexa que pareça, essa noção espelhou-se sempre na literatura e nas artes, ajudando a formar cívica e espiritualmente a consciência do homem moderno. Os atos de perceber, sentir, pensar, conhecer e fazer convergem para um "comum", que é o centro aglutinador das instituições e o lugar de produção do sentido social. É isso precisamente o que a modernidade tem chamado de cultura.

Essa aglutinação implica evidentemente hegemonia, ou seja, o poder por consenso. Foi essa a porta de entrada da mídia eletrônica para a conquista de mentes por meio da demagogia e da lógica dos grandes números. Nessa vasta operação batizada de "soft power", as formas culturais mais rebaixadas passaram a disputar o jogo da hegemonia. Simplificadoras, anestesiantes, quase sempre se confundem com a propaganda do poder em exercício.

Daí a importância de políticas culturais contra-hegemônicas articuladas com a educação e a criatividade, como no excepcional período dos "pontos de cultura" de Gilberto Gil e Juca Ferreira. Mas daí também, por efeitos perversos, o fio de continuidade protofascista entre a exploração das prefeituras no passado e a de agora: a cultura como forma parasitária de existência.

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