quinta-feira, 19 de maio de 2022

Jair Berlusconi estrebucha

“Deve fazer uma provocação por dia, tanto melhor se inconcebível e inaceitável. Isto lhe permite ocupar as primeiras páginas e as notícias de abertura da mídia e ser sempre o centro das atenções. Em segundo lugar, a provocação deve ser tal que a oposição seja obrigada a aceitá-la e a reagir com energia. Conseguir produzir todos os dias uma reação indignada das oposições permite se mostrar ao próprio eleitorado como vítima de uma perseguição”.

Ao fim de uma semana em que o presidente Jair Bolsonaro disse que as eleições podem ser “conturbadas”, chamou de “psicopatas” e “imbecis” quem classifica as manifestações em sua defesa de atos antidemocráticos, desafiou quem um dia se arvore a prendê-lo, conclamou o “povo bem armado, que jamais será escravizado” e, por fim, entrou com ação no Supremo contra um de seus ministros por “abuso de autoridade”, a descrição acima parece lhe cair como uma luva.

Data, porém, de quase 20 anos atrás, quando Umberto Eco pôs-se a descrever o modo Silvio Berlusconi de governar. Bem antes de Donald Trump, foi o ex-primeiro-ministro italiano quem antecipou o que viria a ser bolsonarismo no poder. O artigo, escrito em 2003, foi editado em livro que, no Brasil, teve publicação póstuma (“A passo de caranguejo”, Record, 2022).

O bisavô do presidente é de Anguillara, a 256 quilômetros da Milão de Berlusconi. Quando o ex-primeiro ministro estreou na política, a Itália emergia da operação “Mãos Limpas”, inspiradora da “Lava-Jato”, parteira de Bolsonaro. Filho da classe média alta italiana, Berlusconi valeu-se de fortuna, construída com um império de comunicação, para fazer política com o discurso de que não roubaria porque já era rico. Bolsonaro sempre foi político mas chegou à Presidência com o discurso de que não roubaria porque com ele também ascenderiam as Forças Armadas.


A tutela militar logo se esvaiu e Bolsonaro, sem ser dono de um império midiático, valeu-se das redes sociais, incipientes na era Berlusconi, como arma de seu poder. Não só ele, como também seus adeptos, vide Daniel Silveira. Olha só o que Umberto Eco diz sobre eles: “Para criar provocações em cadeia, não é só você que deve falar, mas é preciso deixar o caminho livre para os mais desvairados entre seus colaboradores”.

Bolsonaro hipnotiza a audiência com vaivéns em torno de temas como o da Petrobras, no seu terceiro presidente, todos ameaçados pela mudança na política de preços da empresa, nunca concretizada. Eco também já previra: “A técnica consiste em lançar a provocação, desmenti-la no dia seguinte (“vocês me entenderam mal”) e lançar imediatamente uma outra, de modo que para esta se dirijam as atenções tanto da nova reação da oposição como do renovado interesse da opinião pública”.

Se Emmanuel Macron valeu-se de seu embate com Bolsonaro, personagem proscrito da opinião pública internacional, isso tampouco foi uma novidade. Eco lembra que tanto Jacques Chirac quando Leonel Jospin, ex-presidentes franceses contemporâneos de Berlusconi, se valeram da oposição ao seu modo de governar para ganhar votos: “Prestem atenção, sou uma pessoa de bem, não vou fazer no meu país o que Berlusconi está fazendo na Itália”.

Sobra até uma carícia na auto-estima tupiniquim. Umberto Eco não podia prever, em 2003, que um Bolsonaro se abateria sobre a nação brasileira. Mas, ao comentar as acusações que se faziam contra Berlusconi, acaba por acalmar o complexo de vira-latas de quem se vê como o único povo incapaz de distinguir o conflito de interesse da proteção do presidente aos filhos: “Dá vontade de rir, portanto, quando teimam em sensibilizá-lo falando do conflito de interesses. A resposta que se ouve por aí é que não importa a ninguém que Berlusconi cuide dos próprios interesses se ele prometer que defenderá os interesses deles”.

No berço do primeiro experimento republicano da história, Berlusconi vivia às turras com o judiciário e acabou sonegado por sonegação. Eco, porém, era cético sobre os limites desta estratégia de denunciar o golpismo constitucional. A Itália é aqui: “A esses leitores não vale dizer que Berlusconi modificaria a Constituição, primeiro porque eles nunca a leram (...) Se um artigo da Constituição for depois modificado, para eles é irrelevante”.

O que resta à oposição além dos mais de 140 pedidos de impeachment que fazem a fortuna de Arthur Lira? A reação é necessária senão o mandatário vai tentar elevar a escala das provocações para testar os limites. Pelo menos é o que diz Eco: “Se a opinião pública não reagiu com suficiente energia, isto significa que até mesmo o mais ultrajante dos caminhos poderia ser, com a devida calma, percorrido. Este é o motivo pelo qual a oposição é obrigada a reagir, ainda que saiba que se trata de pura e simples provocação, porque, caso se calasse, abriria o caminho para outras alternativas”.

Se ficar calado é ruim, denunciar a escalada de desvarios tampouco é suficiente. Eco, que cresceu sob o fascismo, rejeitava a designação para Berlusconi ("as redações dos jornais estão abertas"). O que deveria vir depois que o candidato que lidera prometeu "jogar o fascismo no esgoto da história?"

"Suas próprias provocações”, escreveu Eco. A lua-de-mel de Lula e Janja? Eco tem outras ideias: “A capacidade de conceber planos de governo, sobre problemas aos quais a opinião pública é sensível, e de lançar ideias sobre futuras disposições do país, de tal maneira que obrigue a mídia a dar ao menos o mesmo espaço que dá para as provocações de Berlusconi”.

O escritor pregava a união da oposição. Tinha poucas esperanças sobre isso mesmo sem ter conhecido o PSDB. Insistia, porém, que a oposição fizesse a opinião pública perceber um outro modo de governar, nem que, para isso, fosse preciso usar as mesmas armas de Bolsonaro, quer dizer, de Berlusconi. A cobertura do casamento nas redes sociais lulistas foi por aí, mas Eco resolveu contrariar: “Se você diz às pessoas que o governo errou ao fazer isso ou aquilo, elas podem não saber se você tem ou não razão. Se, no entanto, você disser às pessoas que gostaria de fazer isto ou aquilo, a ideia poderia atingir a imaginação e o interesse de muitos, suscitando a pergunta sobre por que a maioria não o faz”.

Corria o segundo de quatro mandatos de Berlusconi quando Eco escreveu. A longevidade de seu poder, que somou nove anos, sugere que os italianos ignoraram os alertas do escritor, morto em 2016. Aos 85 anos, Berlusconi passou, o presidente estrebucha e o noivo aposta no "amor" petista contra o “ódio” bolsonarista. A ver quem faz eco.

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