Foi a primeira pergunta que me fiz, na abertura da CPI do Genocídio. Não havia. Uma CPI municiada apenas por depoimentos, papelada e gravações de áudio, pareceu-me um retrocesso tecnológico diante das possibilidades visualmente comprobatórias oferecidas pelo vídeo.
Até agora, os desmentidos e tira-teimas limitaram-se às evidências arquivadas nos celulares dos senadores da oposição. Ainda é pouco.
Só após o depoimento do ex-ministro Pazuello cogitou-se de contratar uma agência de checagem online e em tempo real, um VAR das afirmações negacionistas feitas à Comissão, inclusive por seus integrantes governistas.
Se essa varredura já se mostrara urgente e crucial na inquirição do ex-chanceler Ernesto Araújo, as contradições e mentiras despejadas na CPI pelo ex-ministro da Saúde a tornaram imprescindível, até para conter o ímpeto falaz da tropa de choque do governo, que, alinhada com o modus operandi bolsonarista, não economiza dados, no mínimo discutíveis, quando não comprovadamente defasados e falsos, para livrar a pele do presidente, tumultuar e desacreditar o trabalho da Comissão.
Alguns deles são tão alinhados com o presidente que ainda nem aprenderam a usar a máscara direito, como demonstrou o senador cearense Eduardo Girão, no segundo dia de depoimento de Pazuello.
O escritor J.P. Cuenca resumiu em quatro frases como operam os jagunços parlamentares do Genocida: “Eles sabem que estão mentindo. Nós sabemos que eles estão mentindo. Eles sabem que nós sabemos que eles estão mentindo. Nós sabemos que eles sabem que nós sabemos que eles estão mentindo”.
Políticos mentem para sobreviver e superviver, mas nada se compara aos que compõem e servem ao atual governo. Mentir é a segunda natureza dos bolsonaristas - ou mesmo a primeira no caso do presidente, que, segundo o jornalista José Geraldo Couto, só disse uma verdade desde que assumiu o governo: “Se a esquerda voltar ao poder, vamos todos para a cadeia”. A ver.
Se o depoimento de Ernesto Araújo foi quase um show de rinocerontite à Ionesco, ao qual faltou, para ser completo, quem lhe perguntasse sobre suas crenças terraplanistas, o de Pazuello tirou 10 em cinismo, omissões, enganosa soberba e espantoso autossacrifício.
Embora nada supere, a meu ver, aquele momento em que o ex-chanceler respondeu a Renan Calheiros: “Fui orientado a isso”, o relator insistiu: “Por quem?”, e Araújo confessou: “Não sei”. Não tenho dúvida de que se combinassem encenar, num quartel qualquer, O Mágico de Oz, nem mesmo um marechal tiraria do ex-ministro da Saúde o papel do Leão Covarde.
Poucos aqui talvez ainda se lembrem do caubói medroso consagrado por Bob Hope na comédia O Valente Treme-Treme. Pois bem, Pazuello revelou-se um tremendo general treme-treme. Com ilustre lastro literário-cinematográfico.
Metáfora de ferimento em combate popularizada pelo escritor Stephen Crane, no romance O Emblema Rubro da Coragem, ambientado na Guerra Civil americana e publicado em 1895. Nele, um medroso soldado do Exército da União, perdido de seu batalhão e com vergonha de ser punido como desertor, procura neutralizar sua covardia deixando-se ferir por uma bala inimiga.
O primeiro “emblema rubro da coragem” de Pazuello foi, ironicamente, a covid. Ao tentar fugir da raia, virou chacota na TV e nas redes sociais, comprometendo a imagem do Exército. Tão evidente ficou seu pânico de enfrentar a CPI que Zé Simão não resistiu à tentação de identificá-lo como um “general da Activia”.
O segundo “emblema” foi o apelo a um habeas corpus, que, autorizado, com ardilosa ressalva, pelo ministro Lewandowski, condenou-o à autoincriminação até sem abrir a boca. Só aí, exposto à implacabilidade do se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, o ex-ministro, convencido de que só quem vai a campo ganha por w.o., surpreendeu a todos abrindo o bico. Falou pelos cotovelos e pazuellos. Não sem antes submeter-se a um treino intensivo de lorotagem. Lascou-se.
E nos lascamos. Ouvir Pazuello falar, com todos aqueles ‘esses’ chiados, por alguns e poucos minutos, já é um suplício auditivo, imagine ao longo de seis horas. O general prestaria enorme gentileza aos circunstantes de modo geral se evitasse o uso do plural em público.
Seu terceiro “emblema rubro da coragem” foi o piripaque de que foi providencialmente acometido no intervalo do primeiro para o segundo tempo, depois de confrontado com uma afirmação em contrário da AGU.
“Falador passa mal”, alertava um velho samba gravado por Jorge Veiga, mote retomado, com umas três décadas de distância, por outros sambistas. Falar mentiras, numa CPI, pode “dar cana”, para usar a expressão do ministro Salles, naquela fatídica reunião ministerial em que ele recomendou “passar a boiada” enquanto a covid monopolizava as atenções de suas eventuais futuras vítimas.
O quase desmaio do general foi outra demonstração de bolsonarismo explícito. Na campanha para a prefeitura do Rio, em 2016, Flávio, primogênito do presidente, quase desfaleceu diante das câmeras da Band, quando debatia com Marcelo Freixo. O confronto direto de ideias parece ter sobre a familícia Bolsonaro o efeito de uma criptonita vagotônica.
Gozaram à beça o Pazuello por ter dito que deixou o governo ao dar por cumprida sua missão. O general, ao menos daquela vez, não mentiu. Sua missão não era salvar vidas, nem sua reputação, e sim o presidente, blindá-lo a qualquer custo. É preciso ter um bocado de coragem para ser tão subserviente.
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