Felizmente, ela não estava doente. Quando a encontrei na redação, perguntei-lhe o que havia acontecido. Ela disse que o pai de 64 anos havia sido internado e intubado. A doença o pegara. “Não é só uma gripe, não”, ouvi. Fiquei surpreso. Imaginei que, diante de todos os protocolos de segurança que adotamos, ela já estivesse ciente da gravidade da situação. Indaguei, então, se ela havia encontrado o pai recentemente, porque isso a obrigaria a fazer quarentena. “Não, seu Mario, ele até ia ver muito a gente quando o ônibus era gratuito para ele, mas depois que suspenderam, faz tempo que a gente não se vê. Ontem, tentei ver no hospital, não deixaram. Ele vai ficar uns 20 dias lá, né?”
O soco de realidade pegou forte: ali estava uma brasileira humilde que acreditara na enormidade dita e repetida por Jair Bolsonaro e seu bando de que a Covid não passa de uma gripezinha. Ali estava uma brasileira humilde cujo pai de 64 anos sofrera com a decisão do prefeito Bruno Covas, criatura de João Doria, de suspender a gratuidade do transporte coletivo em São Paulo para idosos entre 60 e 65 anos, para atender à voracidade dos donos das empresas de ônibus que maltratam a população com um serviço de péssima qualidade.
Se alguém aí disser que sou “socialista fabiano”, saiba que o que vemos no Brasil nada tem a ver com racionalidade e capitalismo. É só o aguçamento da perversidade que nos castiga desde sempre, sob governos alegadamente de esquerda, direita ou centro. Não existe ideologia no país. Existe ferocidade. Existe ignorância. Existe cupidez. Existe crueldade. Perversidade que nunca usou máscara.
Ontem, quando foi batido o recorde de mortes diárias por Covid, Bolsonaro lambuzava-se com leitão, em almoço com outros cretinos, enquanto a falta de direção levava governadores mais uma vez a bater cabeça sobre o que fazer diante do agravamento da pandemia, mais preocupados com as consequências eleitorais de um lockdown de verdade do que propriamente com a sobrevivência dos pobres. Os grandes empresários ausentaram-se da cena, depois de conseguir publicidade com ações de benemerência no início da pandemia. Não entenderam ainda que a imunização em massa é a única saída econômica e que se trata de coisa séria demais para ficar na mão dos políticos. Ministros do Supremo concentram-se em usar mensagens roubadas por hackers para destruir uma das poucas coisas boas que conseguimos ter nos últimos anos — e, assim, garantir que tudo continue como sempre foi, com ou sem pandemia. Nas nossas vidas individuais, não sabemos mais o que fazer: tranco o meu filho de 15 anos em casa, em outro ano de solidão e sedentarismo completos? A escola vai continuar com as poucas aulas presenciais? Cadê a vacina?
Com exceção de Israel, Reino Unido e Estados Unidos, onde a vacinação avança velozmente, o descalabro é geral. Na França, Alemanha e Itália, por exemplo, milhões de vacinas ainda não foram aplicadas por causa de desorganização, entraves burocráticos e resistência da população aos imunizantes. A desorganização e a ignorância não são monopólios brasileiros, mas os nossos risonhos lindos campos têm mais flores do mal, e elas não fenecem. Enquanto os outros entrarão nos trilhos mais rápido, deixando os campos devastados para trás, não há perspectiva de que isso venha a ocorrer ainda este ano no Brasil. Nem trilhos temos. Estamos largados e pelados, nas mãos de gente atavicamente tão perversa quanto estúpida. Resta esperar que os Estados Unidos consigam mesmo atingir a imunidade de rebanho no meio do ano, para que possam exportar e doar as vacinas que financiaram e produziram para estes e demais tristes trópicos. Confiemos na Sétima Cavalaria.
Não, não é uma gripe, Adriana, e lhe dedico este desabafo que você não sabe que poderia fazer.
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