terça-feira, 30 de março de 2021

Desculpe o clichê, mas 'Até quando?!'

Era um jornal popular, regido pelas regras de fisgar o leitor no meio da rua. Todo dia a redação precisava pôr em manchete algo que tirasse o cidadão da apatia de passar pela banca e, assoberbado dos próprios problemas, ir em frente sem comprar o exemplar.

Eu trabalhava lá e usei o recurso algumas vezes. Quando o acúmulo de indignação ia além do que permitia uma manchete convencional, quando o espaço da página era insuficiente para noticiar o descalabro em detalhes, aumentava-se o corpo das palavras – e aí, no uso sem constrangimento do clichê, gritava-se veemente na orelha do freguês: “Até quando?”.

Sei que isso foi no tempo do calor senegalesco, dos bravos soldados do fogo, e hoje soa inadmissível o elogio do lugar-comum num conceituado órgão de imprensa. O clichê é uma caixinha sem surpresas. Os manuais de redação pedem distância dessa insidiosa moléstia, desse inimigo soez. Não agrega valor. H.L Mencken, o jornalista americano sem papas na língua, dizia – “é o conforto dos medíocres”.


Eu estou surfando nessa nostalgia jornalística porque mais três mil pessoas vão morrer hoje de covid-19, amanhã seremos 315 mil mortos, e apesar de todos o assombros com essa realidade já terem sido escritos no mais escorreito português 2021, acho que voltou a hora de acrescentar uma exclamação à interrogação e, às favas com Mencken!, radicalizar na veemência furibunda do velho grito de guerra: “Até quando?!”.

Nelson Rodrigues reclamava que, ao proibir o uso do ponto de exclamação, os jornais tinham perdido o sentido de estarrecimento, de boqueabrir o leitor, que uma notícia precisava ter. Dava como exemplo o texto de Émile Zola em favor do capitão Dreyfus, um dos momentos mais importantes da história do jornalismo. A dramaticidade do libelo era evidente, mas foi potencializada quando o redator do “L’Aurore” riscou o título careta do original de Zola – “Carta ao sr. M. Félix Faure, presidente da República” – e tascou no lugar o inesquecível, jornalístico e apropriadamente bem pontuado “Eu acuso!”.

O drama em cartaz nos jornais precisa do punhal acusatório de todos os pontos de estupor à disposição no parque gráfico, e que eles venham associados ao chocalho afetivo, tão Brasil, das frases feitas, das ladeiras íngremes, da beleza interior, do caráter sem jaça e da vontade de dançar como se não houvesse amanhã. Não é um país, é um clichê.

Ontem, foi anunciado que o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, um tradicional centro de pesquisa, seria reaberto como Palácio Imperial, controlado pelos Orleans e Bragança, num aceno aos valores da monarquia. Até quando?!

Anteontem, um ministro disse que lockdown não dá certo porque ninguém combinou com as pulgas, e elas continuam transportando o vírus para todos os lados. Até quando?!

Na contramão das regras do bom gosto, o palavrório de expressões gastas pelo uso, cercado de pontos de espanto por todos os lados, é um fuzuê de emoções descontroladas, inerentes à condição humana. O prazer de falar com a boca cheia. Nesta hora em que se busca a palavra exata, se impeachment, se genocida, mas nenhuma devolve o país à sua gramática de felicidade, é preciso usar o dicionário completo. Parodiar o poeta. Deixar o purismo de lado e pedir socorro a todas as palavras, todas as expressões, sobretudo os barbarismos universais. Falta vacina de lá, que sobre exclamação daqui!!! 

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