quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Por que chegamos a Jair Bolsonaro?

Temos que tentar pensar por nós mesmos e nos perguntar numa atitude filosofante, vale dizer, que busca causas mais profundas que aquelas meramente analíticas das ciências: "Por que o Brasil chegou a este sinistro personagem histórico que contradiz qualquer racionalidade ética e política?”





Há um sem número de excelentes análises do anti-fenômeno Jair Messias Bolsonaro, predominando as de ordem sociológica, histórica e econômica. Creio que devemos cavar mais a fundo para captar a irrupção deste Negativo em nossa história.

A reflexão ocidental, devido aos limites culturais de nosso arraigado individualismo, quase não desenvolveu categorias analíticas para analisar totalidades históricas. A de Hegel, em sua Filosofia da História, vem eivada de preconceitos, inclusive sobre o Brasil, e dispõe de poucas categorias aproveitáveis. Arnold Toynbee, em seus 10 volumes sobre a história mundial, trabalha com um esquema fecundo mas limitado: desafio e resposta (challenge and response) com o inconveniente de não conferir relevância aos conflitos de todo tipo, inerentes à história. A Escola francesa dos Annales, em suas variações (Lefebvre, Braudel, Le Goff) incluiu várias ciências mas não nos ofereceu uma leitura da história como totalidade. Não deixam de ser inspiradoras as categorias desenvolvidas por Ortega y Gasset no seu famoso estudo sobre Esquemas das crises y otros ensaios.

Temos que tentar pensar por nós mesmos e nos perguntar numa atitude filosofante, vale dizer, que busca causas mais profundas que aquelas meramente analíticas das ciências: por que o Brasil chegou a este sinistro personagem histórico que contradiz qualquer racionalidade ética e política?

De antemão devemos dizer que todo existente não é fortuito, pois é fruto de um preexistente, de larga duração, que cabe à razão desentranhar. Ademais há que pensá-lo sempre dialeticamente: junto ao negativo e sombrio acompanham sempre como acólitos as dimensões positivas e portadoras de alguma luz. Não nos é concedido ter apenas luz ou trevas. Todas as realidades são crepusculares, mesclando luz e sombras. Mas o nosso foco nesta reflexão se concentra nas sombras.

Vou lançar mão de algumas categorias: a das sombras recalcadas, a teoria do caos destrutivo e generativo, a compreensão ampliada do karma no diálogo entre Toynbee e do filósofo japonês Daisaku Ikeda e os princípios do thánatos e do eros, associados à condition humaine de seres sapiens e simultaneamente demens.

A consciência brasileira é dominada por quatro sombras que nunca até o presente foram reconhecidas e integradas. Entendo a categoria “sombra” no sentido psicanalítico da escola de C.G. Jung e discípulos, tornada categoria amplamente aceita pelas demais escolas. Sombra seriam os conteúdos nefastos que uma cultura com seu consciente/inconsciente coletivo se recusa a assimilar e assim os recalca e se esforça por afastá-los da consciência coletiva. Tal repressão impede um processo de individuação nacional coerente e sustentado.

A primeira comparece à sombra do genocídio indígena. Segundo Darcy Ribeiro haveria uma população de cerca 5-6 milhões de indígenas de centenas de línguas, fato único na história mundial. Eles foram praticamente dizimados. Restaram os 900 mil atuais. Lembremos o massacre de Mem de Sá em 31 de maio de 1580, que liquidou com os Tupiniquim da Capitania de Ilhéus. Por um quilômetro e meio ao longo da praia numa distância de alguns metros uns de outros, jaziam centenas de corpos de indígenas assassinados, relatados como glória ao rei de Portugal.

Pior ainda foi a guerra declarada oficialmente por D. João VI em 13 de maio de 1808, que dizimou os Botocudos (Krenak) no vale do Rio Doce, por acharem que eram incivilizáveis e incatequisáveis. Essa guerra oficial manchará para sempre a memória nacional. Ailton Krenak, cujos antepassados sobreviveram, nos lembra essa vergonhosa guerra oficial de um imperador impiedoso, tido por bom.

O atual governo, de uma ignorância supina em antropologia, considera os povos indígenas originários como sub-humanos que devem ser forçados a entrar nos nossos códigos culturais para serem humanos e civilizados. O descuido que mostrou por suas terras invadidas e pelo abandono face à Covid-19 beira um genocídio, passível de ser levado ao Tribunal Internacional Penal por crimes contra a humanidade.

A segunda sombra é nosso passado colonial. Não ocorreu uma descoberta do Brasil mas uma pura e simples invasão, destruindo o Idílio inicial pacífico descrito por Pero Vaz de Caminha. Deu-se um encontrão profundamente desigual de civilizações. Logo se iniciou o processo de ocupação e violência em função das riquezas aqui existentes. Todo processo colonialista é violento. Implica invadir terras, submeter os povos, obrigá-los a falar a língua do invasor, incorporar suas formas de organização social e a completa submissão desumanizadora dos dominados. Desse processo de submetimento surgiu o complexo do vira-lata, achar que é bom só o que vem de fora ou de cima, de abaixar sempre a cabeça e abandonar qualquer veleidade de autonomia e de projeto próprio.

A mentalidade de boa parte dos estratos dirigentes se consideram ainda de certa forma coloniais, por mimetizarem os estilos de vida e assumirem os valores de seus patrões que foram variando ao longo de nossa história. Hoje se constituiu uma expressão humilhante para toda a nação, o fato do atual chefe de Estado fazer uma viagem especial aos USA, saudar a bandeira norte-americana e prestar um rito explícito de vassalagem ao presidente Donald Trump, extravagante, egocentrado e tido por notáveis analistas estadunidenses como o mais estúpido da história política.

A terceira sombra, a mais perversa de todas, foi a da escravidão. O jornalista e historiador Laurentino Gomes em seus dois volumes sobre A Escravidão (2019/2020) nos narra o inferno desse processo de inumanidade. O Brasil foi campeão do escravagismo. Só ele importou, a partir de 1538, cerca de 4,9 milhões de africanos que foram escravizados aqui. Das 36 mil viagens transatlânticas, 14.910 destinavam-se aos portos brasileiros.

Estas pessoas escravizadas eram tratadas como mercadorias, chamadas “peças”. A primeira coisa que o comprador fazia para “trazê-las bem domesticadas e disciplinadas” era castigá-las, “haja açoites, haja correntes e grilhões”. A história da escravidão foi escrita pela mão branca, apresentando-a como branda, quando, na verdade, foi crudelíssima e vem prolongada hoje contra a população negra, mulata (54,4% da população) e pobre, como o tem mostrado irrefutavelmente Jessé Souza em A Elite do Atraso: da escravidão a Bolsonaro (2020). Feita a abolição em 1888 não se lhes fez aos escravos nenhuma compensação, foram largados ao deus-dará e compõem hoje a maioria das favelas. Nunca se lhes reconheceu a mínima humanidade. A classe dominante, transferindo o ódio aos escravos, se acostumou a humilhá-los, a ofendê-los até perderem o senso de sua dignidade.

Essa sombra pesa enormemente na consciência coletiva e é a mais recalcada, na afirmação mentirosa de que aqui não há racismo nem discriminação. No atual governo isso foi desmascarado pela violência sistemática contra esta população estimulada pelo próprio chefe de Estado que tem conduzido uma política necrófila. Esta sombra por sua desumanidade evocou pessoas sensíveis como o poeta Castro Alves. Ressoarão para sempre seus versos em Vozes d’África:

“Ó Deus, onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes/ Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito/ Que embalde, desde então, corre o infinito… /Onde estás, Senhor Deus”

Esse grito continua hoje tão lancinante como outrora.

Jessé Souza, em sua obra já referida, mostrou de forma convincente como a classe dominante, para impedir qualquer avanço das maiorias marginalizadas, projetou sobre elas toda a carga de negatividades que acumulou face aos escravos a essa “massa damnata” com requintes de exclusão, discriminação e verdadeiro ódio que nos espanta e nos revela níveis inacreditáveis de desumanização.

A quarta sombra é a constituição de um Brasil só para poucos. Raymundo Faoro (Os donos do poder) e o historiador e acadêmico José Honório Rodrigues (Conciliação e reforma no Brasil, 1982) nos têm narrado a violência com que o povo foi tratado para estabelecer uma ordem, fruto da conciliação entre as classes opulentas sempre com a exclusão intencionada do povo.

Escreve José Honório Rodrigues: “A maioria dominante foi sempre alienada, antiprogressista, antinacional e não contemporânea. A liderança nunca se reconciliou com o povo; negou-lhe seus direitos, arrasou sua vida e tão logo a viu crescer ela lhe negou pouco a pouco sua aprovação, conspirou para colocá-la de novo na periferia, no lugar que julga que lhe pertence” (Conciliação e reforma no Brasil, 1982, p.16). Não foi o que exatamente a maioria dominante e seus aliados fizeram com Dilma Rousseff primeiro e depois com Lula? Mudam as estratégias mas nunca seus propósitos de um Brasil só para eles.

Nunca houve um projeto nacional que incluísse a todos. Projetou-se um Brasil para poucos. Os outros que se lasquem. Assim surgiu não uma nação, mas como mostrou detalhadamente Luiz Gonzaga de Souza Lima, num livro que seguramente será um clássico, A Refundação do Brasil: rumo a uma civilização biocentrada (2011), foi fundada a Grande Empresa Brasil, desde os inícios internacionalizada em função de atender aos mercados mundiais ontem e até os tempos atuais. Assim temos um Brasil profundamente cindido entre poucos ricos e as grandes maiorias pobres, um dos países mais desiguais do mundo, o que significa um país violento e cheio de injustiças sociais. Machado de Assis já havia observado que há dois Brasis, o oficial (este de poucos) e o real (das grandes maiorias excluídas).

Uma sociedade montada numa bifurcação, sobre uma injustiça social perversa nunca criará uma coesão interna que lhe permitirá um salto rumo a formas mais civilizadas de convivência. Aqui imperou sempre um capitalismo selvagem que nunca conseguiu ser civilizado. E quando os filhos e filhas da pobreza conseguiram acumular uma força de base suficiente para chegarem ao poder central e atenderem demandas básicas das populações humilhadas e ofendidas, logo os descendentes da Casa Grande e a nova burguesia nacional se organizaram para impossibilitar este tipo de governo de inclusão social. Deram-lhe um golpe vergonhoso, parlamentar, mediático e jurídico para desta forma garantirem os níveis de acumulação considerados dos mais altos do mundo e manterem os pobres no lugar que lhes cabe, na periferia e na marginalizada de pobre e miserável.

O escritor Luis Fernando Verissimo num twitter de 6 de setembro de 2020 bem resumiu: “O ódio está no DNA da classe dominante brasileira, que historicamente derruba, pelas armas se for preciso, toda ameaça ao seu domínio, seja qual for sua sigla”. É esta classe de abastados que nem elite é, porque esta supõe certo cultivo de humanidade e de cultura, que sustenta o atual governo ultradireitista e fascistoide por não lhes ameaçar a forma abusiva de acumulação; antes, através de seu ministro da Fazenda, discípulo da escola de Viena e Chicago, comparece como o grande demolidor da soberania nacional. O presidente nada sabe e entende o que seja soberania nacional.
O caos destrutivo e generativo

Outra categoria que nos poderá fazer entender melhor nossa atual situação sombria é aquela do caos em sua dupla função destrutiva e construtiva.

Tudo começou com a observação de fenômenos aleatórios como a formação das nuvens e particularmente o que se veio chamar de efeito borboleta (pequenas modificações iniciais, como farfalhar das asas de uma borboleta no Brasil que pode, no fim, provocar uma tempestade em Nova York porque tudo está relacionado com tudo em todos os momentos e circunstâncias, constituindo uma constante cosmológica). Além disso faz-se a constatação da crescente complexidade que está na raiz da emergência de formas de vida cada vez mais altas (cf.J. Gleick Caos: criação de uma nova ciência, 1989). O universo se originou de um tremendo caos inicial, o big bang. A evolução se fez e se faz para colocar ordem neste caos.

O sentido originário é o seguinte: o caos possui uma dimensão destrutiva: põe fim a um certo tipo de ordem que chegou ao seu clímax. Mas por detrás do caos destrutivo se escondem dimensões construtivas de uma nova ordem. E vice-versa, por detrás da ordem se escondem dimensões de caos de tal forma que a realidade é dinâmica e flutuante sempre em busca de um equilíbrio. Ilya Progrine (1917-2003), prêmio Nobel de Química em 1977, estudou particularmente as condições que permitem a emergência da vida. Segundo este grande cientista, sempre que existir um sistema aberto, sempre que houver uma situação de caos (longe do equilíbrio) e vigorar uma não-linearidade dos fatores é a conectividade entre as partes que gera uma nova ordem (cf. Order out of Chaos, 1984). Foi neste contexto que irrompeu a vida como um imperativo cósmico.

Inegavelmente vivemos no Brasil uma situação de completo caos. No contexto do Covid-19 que está dizimando quase 200 mil vidas, temos um presidente totalmente omisso e sem qualquer preocupação com o destino cruel de seu povo, um negacionista com uma estupidez e arrogância, própria de pessoas autoritárias com sinais de insanidade mental.

As autoridades que têm poder como o Congresso Nacional, o MPF, o STF e outras revelam-se omissas, assistindo inertes e irresponsáveis o genocídio que está ocorrendo. Creio que a história será implacável para com as omissões destas autoridades que nada fizeram face a tanto descaso do destino de milhões de famílias que choram seus mortos. O atual presidente cometeu tantos casos de grave irresponsabilidade que mereceria jurídica e eticamente um impeachment ou uma pura simples destituição por um acerto de lideranças apoiadas por multidões nas ruas.

Consola-nos o fato de que há oculto dentro desse caos humanitário uma ordem mais alta e melhor. Quem vai desentranhá-la e fazer superar o caos?

Precisamos constituir uma frente ampla de forças progressistas e opostas às privatizações e da neocolonização do país para desentranhar a nova ordem, abscôndita no caos atual mas que quer nascer. Temos que fazer esse parto mesmo que doloroso. Caso contrário, continuaremos reféns e vítimas daqueles que sempre pensaram corporativamente só em si, de costas e, como agora, contra o povo.

Por fim valho-me de uma categoria, oriunda do Oriente, que relida à luz das novas ciências da Terra e da vida nos podem trazer elementos esclarecedores. Trata-se da categoria do Karma, objeto de um longo diálogo de três dias entre o historiador Arnold Toynbee e o filósofo japonês Daisaku Ikeda (cf. Elige la vida, Emecé, B. Aires, 2005).

O karma é um termo sânscrito originalmente significando força e movimento, concentrado na palavra “ação” que provoca sua correspondente “re-ação”. Este aspecto coletivo parece importante, porque, como já assinalei acima, não dispomos no ocidente de categorias conceptuais que deem conta de um sentido de devir histórico, de toda uma comunidade e de suas instituições nas suas dimensões positivas e negativas.

Cada pessoa é marcada pelas ações que praticou em vida. Essa ação não se restringe à pessoa mas conota todo o seu ambiente. Trata-se de uma espécie de conta-corrente ética cujo saldo está em constante mutação consoante as ações boas ou más feitas, vale dizer, os “débitos e os créditos”. Mesmo depois da morte, a pessoa, na crença budista, carrega esta conta por mais renascimentos que possa ter, até zerar a conta negativa.

O grande historiador e pensador Toynbee dá-lhe outra versão, nos quadros do paradigma ocidental, que me parece esclarecedora e nos ajuda a entender um pouco também a nossa história. A história é feita de redes relacionais dentro das quais está inserida cada pessoa, ligada com as que a precederam e com as presentes. Há um funcionamento kármico na história de um povo e de suas instituições consoante os níveis de bondade e justiça ou de maldade e injustiça que produziram ao largo do tempo.

Este seria uma espécie de campo mórfico que permaneceria impregnando tudo. Não se requer a hipótese dos muitos renascimentos, como na tradição oriental pressupõe, porque a rede de vínculos garante a continuidade do destino de um povo (p.384). As realidades kármicas impregnam as instituições, as paisagens, configuram as pessoas e deixam seus sinais na cultura de um povo. Esta força kármica atua nos processos sócio-históricos, marcando os fatos benéficos ou maléficos. C.G. Jung em sua psicologia arquetípica notara, de alguma forma, tal fato.

Apliquemos esta lei kármica à nossa situação sob a regência nefasta de Bolsonaro. Não será difícil reconhecer que somos portadores de um pesadíssimo karma, em grande escala, derivado do genocídio indígena, da superexploração da força do trabalho escravo, pela colonização predatória, das injustiças perpetradas contra grande parte da população, negra, mestiça e pobre pela burguesia endinheirada e insensível, jogada na periferia, com famílias destruídas e corroídas pela fome e pelas doenças.

Tanto Toynbee quanto Ikeda concordam nisso: “a sociedade moderna (nós incluídos) só pode ser curada de sua carga kármica, através de uma revolução espiritual no coração e na mente (p.159), na linha da justiça compensatória e de políticas sanadoras com instituições justas como vem apregoando insistentemente o Papa Francisco em suas encíclicas sociais e ecológicas, Laudato Si e Fratelli tutti. Sem esta justiça mínima a carga kármica não se desfará.

Mas ela sozinha não é suficiente. Faz-se mister o amor, a solidariedade, a compaixão e uma compaixão universal, especialmente para com as vítimas. É a proposta central e paradigmática da Fratelli tutti. O amor será o motor mais eficaz porque ele, no fundo, “é a última realidade” (p.387). Uma sociedade incapaz de efetivamente amar e de ser menos malvada, jamais desconstruirá uma história tão marcada pelo karma negativo e desumano, realizado, estranhamente, dentro de uma cultura cunhada pelo cristianismo, diuturnamente traído. Eis o desafio que a atual crise sistêmica nos suscita.

Não apregoaram outra coisa os mestres da humanidade, como Jesus, Buda, Isaías, São Francisco, Dalai Lama, Gandhi, Luther King Jr e o Papa Francisco? Só o karma do bem redime a realidade da força kármica do mal. E se o Brasil não fizer essa reversão kármica permanecerá de crise em crise, destruindo seu próprio futuro como o está fazendo, entre mentiras, fake news, ironia e zombaria, o necrófilo e insano presidente deste país.

Estas são expressões bem conhecidas no Ocidente e não se necessita de maiores explanações. Vale lembrar que se trata de princípios e não simplesmente de dimensões acidentais. Princípio é aquilo que faz ser todos os seres ou sem o qual os seres não irrompem na realidade. Assim foi desenvolvido por Sigmund Freud o princípio do thánatos que acompanha o eros que convive em cada ser humano. O thánatos emerge como aquela pulsão que leva à violência, à destruição e, no termo, à morte. Temos a ver com o Negativo na condição humana ao lado do Positivo e do Luminoso que, assim o cremos, irão finalmente triunfar.

É conhecida a troca de cartas entre Freud e Einstein sobre a possibilidade da superação da violência e da guerra, ainda nos idos de 1932. Freud respondeu que é impossível diretamente superar o thánatos somente reforçando o princípio do eros através de laços emocionais e pelo trabalho humanizador da cultura (cf. Obras completas III:3,215). Mas termina com uma frase desoladora: ”esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que podemos morrer de fome antes de receber a farinha”.

Ambos os princípios para Freud possuem algo de eterno e deixa em aberto qual princípio escreverá a última página da vida. Mas o princípio do thánatos pode em momentos da história impregnar todo um povo e inundar a consciência de seus líderes produzindo tragédias histórico-sociais.

Estimo que estamos assistindo à emergência terrível do thánatos em estratos importantes da nossa sociedade que ganhou corpo numa figura histórica que exalta a tortura, os ditadores ferozes, distribui armas e se mostra insensível à morte de milhares de seus compatriotas, incapaz de palavras e gestos de solidariedade às milhares de famílias que veem seus entes queridos sendo levados, anônimos, sem os ritos sagrados da despedida e do velório. Nossa sociedade atual possui elementos claros demenciais, em pessoas e em largos estratos da sociedade, afeitos às calúnias, às difamações, inclusive montadas em igrejas que usam e abusam do nome de Deus. Mas tudo isso ganha exemplaridade da figura sinistra e, não raro, ridícula do atual chefe de Estado.

Estes comportamentos mostram igualmente o princípio demens presente junto com o sapiens no ser humano. Vivemos numa civilização mundializada que está sob o domínio do demens. Basta lembrar os 200 milhões de mortos nas guerras dos últimos dois séculos e do princípio de autodestruição já montado com armas nucleares, químicas e biológicas, capazes de pôr fim à vida humana e à nossa civilização, tornadas tais armas ineficazes e ridículas pelo Covid-19.

Esse princípio de demência se mostra claro pelos assassinatos intencionados de negros, pobres e outros com outra opção sexual e um nefasto feminicídio. Tudo isso é chancelado por um presidente com claros sintomas de psicopatia, vergonhosamente tolerado por aquelas autoridades que poderiam e deveriam por crimes de responsabilidade social, denunciá-lo, fazê-lo renunciar ou democraticamente submetê-lo a um impeachment jurídico. Talvez elas mesmas sejam já infectadas pelo vírus do demens, o que explicaria sua leniência e culposa omissão.

O sentido de nossa disquisição possui este significado: tudo o que estava oculto e reprimido em nossa sociedade saiu dos porões onde por séculos se havia ocultado na vã tentativa de negá-lo ou torná-lo aceitável socialmente, até de pintá-lo roseamente, como o fazem vários ministros mentirosos que chegam a ver um ganho na escravidão e no estado colonial. Mas basta um pouco de luz para desfazer esta densa escuridão. Agora se tornou visível e solar. Não há mais como escamoteá-la.

Somos uma sociedade contraditória onde encontramos, ao mesmo tempo, brilhantismo na ciência, na literatura, nas artes plásticas, na música e na riquíssima cultura popular, geralmente feita à revelia de toda a opressão e do mainstream e em tantos outros campos. E ao mesmo tempo, somos uma sociedade que internalizou o opressor, se fez eco da voz dos donos, conservadora e até atrasada quando comparada com países semelhantes ao nosso. Num certo sentido somos cruéis e sem piedade para com nossos compatriotas atingidos pelas maldades perpetradas pelos estratos ultraendinheirados e faltos de qualquer sentido de compaixão para com os milhões caídos na estrada sem nenhum samaritano que se compadeça deles. Passam ao largo sem vê-los e o que é pior, desprezando-os como se não fossem da mesma nação ou da mesma família humana.

Esses ainda se confessam cristãos sem terem nada a ver com a mensagem do Mestre de Nazaré. Os ateus éticos e humanitários estão maia próximos do Deus de Jesus, da ternura dos humildes e defensor dos humilhados e ofendidos, do que estes cristãos meramente culturais que usam o nome de Deus para defender suas nefastas políticas individualistas ou corporativas de um Brasil só para eles. Eles estão longe de Deus por negarem os filhos e filhas de Deus, chamados pelo Juiz supremo de “meus irmãos e irmãs menores” sob os quais ele mesmo se escondia e que serão feitos juízes.

Tem muito de verdade o que escreveu a filósofa Marilena Chaui: “A sociedade brasileira é uma sociedade autoritária, uma sociedade violenta, possui uma economia predatória de recursos humanos e naturais, convivendo com naturalidade com a injustiça, a desigualdade e a ausência de liberdade e com os espantosos índices das várias formas institucionais – formais e informais – de extermínio físico e psíquico e de exclusão social e cultural” (500 anos – Cultura e política no Brasil, n.38, p.32-33). O sonho idílico de Darcy Ribeiro de o Brasil se tornar a Roma tardia e tropical se esvanece nas “vastas sombras”, como diz o Papa Francisco na Fratelli tutti (cap. I). Celso Furtado, entristecido, no final da vida escreveu todo um livro: Brasil: a constrção interrompida (1993).

Todas estas nuvens escuras se condensaram nos últimos anos e ganharam seus sacerdotes e acólitos que as assumem conscientemente, querendo levar o Brasil aos tempos pré-modernos. Se os levassem pelo menos à Idade Média, que tinha suas grandezas desde as majestosas catedrais às grandes sumas teológicas. O Brasil deste projeto retrógrado e irrealizável se tornou uma grotesca farsa e uma irrisão internacional.

O conjunto destas sombras vastas e o domínio do Negático se adensaram na figura do atual chefe de Estado e de seu governo, associado ao seu projeto. Ele é a consequência desta anti-história e sua mais perversa corporificação. Representa o que de pior ocorreu em nossa história e consciente ou inconscientemente tenta dar-lhe o acabamento final. Mas não o conseguirá porque jamais na história os mecanismos de morte e de ódio lograram realizar seu intento, sequer Hitler com todo o seu poderio militar e científico conseguiu lançar ao fundamentos de um Reino de Mil Anos.

Mais vigora um lado positivo desta minha leitura de nossa história. A irrupção destas sombras coletivas nos trouxe claramente o desafio de rejeitar a dependência e concluir a refundação já iniciada há décadas por uma plêiade de políticos patrióticos, por uma gama de intelectuais de primeira grandeza e por dezenas de movimentos sociais de todo tipo. Se não aproveitarmos a presente situação da pandemia que nos colocou a todos na reclusão de um retiro existencial, social e político para pensarmos que Casa Comum queremos construir para habitarmos juntos nela e qual é o lugar do Brasil nessa emergente fase da planetização, seremos condenados a nos tornarmos um país de párias, omitindo-nos na missão de contribuirmos poderosamente na configuração desta Casa Comum, graças à nossa incomensurável riqueza de bens e serviços naturais, necessários para a subsistência da humanidade e da continuidade de nossa civilização.

Os processos históricos não são cegos e sem destino. Eles guardam um Logos secreto que vai conduzindo o rumo das coisas em consonância com o processo da cosmogênese e gera, do meio do caos, ordens superiores com novas possibilidades e horizontes insuspeitados. Qual será nosso lugar, como povo e como nação, no conjunto de todos esses processos? Eles marcam a direção mas quem tem que percorrê-la e construí-la somos todos nós. Não nos é permitido preguiçosamente pisar nas pegadas já feitas. Temos que fazer as nossas pegadas.

Oxalá estejamos atentos ao que a história, apesar do reacionarismo e neofascismo de Bolsonaro e de seus seguidores, nos exigirá. Como outrora dizia Platão: “todas as coisas grandes procedem do caos”. As nossas poderão ter a mesma origem.

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