O estado do mundo parece agora constrangedoramente bíblico, de Holofernes a Herodes, do desmazelo de Jó à fuga de Ló (e suas mulheres sem nome), do dilúvio à Besta do apocalipse. E a situação do Brasil está tão louca e desgovernada que, se extraterrestres ou demônios já estiverem entre nós, não será uma notícia particularmente surpreendente. Estamos esperando o quê? Passar isentos, guardar os nossos, e amanhã o quê? Vamos caindo dos nossos sonhos, mas nunca estamos acordados o suficiente? Nego à minha filha o mundo como o louco Domenico, que trancou sua família em casa durante anos a pretexto de protegê-los do fim dos tempos. Quase agradeço à nossa distração, que há cinquenta dias fez indolor o último momento de tantas coisas que, se soubéssemos últimas, nos teria desesperado completamente. Agora vamos nos desesperando aos poucos, enlouquecendo da boa loucura de atentar para o contagioso de cada gesto antes reflexo, vamos reaprendendo com os bichos o faro e as orelhas espetadas quando começam os gritos de uma briga na avenida, e todo dia é uma briga, uma guerra contra pestes visíveis e invisíveis, e o expediente aflito do esconjuro para espantar a morte que fala em comunicados oficiais, surfando a curva sempre mais alta do número de suas vítimas. Nem é mais visto como um pendor romântico pensar em termos de despedida, nem precisamos de encenar um quadro de artista para olhar de repente com melancolia para tudo e nada, com pena dos nossos pequenos mundos temporariamente perdidos. Temporariamente? Ainda pensamos que amanhã vamos reabrir a porta pulando o vão desses dias como apenas um recesso forçado, uma falha restaurável no piso? Ou vamos nos prometer qualquer mudança que, à menor tentação de normalidade, descumpriremos? Ou já estamos trabalhando numa passagem, ainda sem bem atinar como, e o luto alheio é também o nosso, e a vida que vier, para além da nossa vontade, será depois da vida que tínhamos?
Mariana Ianelli
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