Foi assim que ele me ficou na lembrança, pessoa real em todo o esplendor da majestade, desde a primeira vez que o vi, quando menina, no museu Goeldi, do Pará. Tinham-no posto sem companheiros, ocupando um grande viveiro de tela grossa; sempre se mostrava pousado num velho tronco morto (ou talvez imitação de tronco feita em cimento) como se desdenhasse o chão, como se a simples ideia de chão fosse um insulto à força impotente das suas asas cativas. E como eu começava a aprender história do Brasil e andava muito enternecida com o triste fado do senhor dom Pedro II, associei uma figura à outra, igualmente comovida com a sorte daquele outro monarca solitário, desterrado também, se acabando fora do seu reino carregado a terras estranhas, – a própria imagem da realeza, abatida mas sempre digna. E foi então que estranhei pela primeira vez ave tão bela, solene, triste e nobre, carregar consigo o grotesco nome de urubu.
Passei depois muitos anos sem ver um urubu-rei – quando agora dei com outro, no jardim zoológico da Quinta da Boa Vista. Primeiro vimos o nome na placa, no meio dos vários abutres, e logo saímos à procura da ave real, correndo a vista pelos galhos mais altos das árvores supostas do viveiro. Mas sua majestade não pousava acima do chão. Sua majestade fora flagrada num flagrante de intimidade, sua majestade comia a sua ração de carne do almoço – e andava.
Como se desmoronam, Senhor, com algumas simples passadas, a legenda e a majestade de um rei! Sua majestade andava – qual, sua majestade gingava, arrastava os pés, balançava os ombros, como se ameaçasse dar rasteiras num terreiro – no famoso passo do urubu malandro. Imagina! Luís XIV, com manto de arminho e chapéu de pluma, atravessando um salão na cadência cafajeste de um bamba de gafieira – e tereis uma ideia do que eu vi então. Estava explicado por que a ave bela e nobre, de olhar terrível, irmã do condor e da águia chamava-se urubu. Podia ter plumagem de rei, podia ganhar o senhor dos Andes em esplendor e tamanho – mas o andar, reflexo da alma, era andar de urubu. E não só o andar dos pés, mas do corpo todo, o jeito canalha de entortar o pescoço, grelando a carniça, o arrastar da asa, a lentidão balouçante do gingado – tudo era só urubu, urubu catingueiro, urubu de quintal, urubu de monturo.
E com isso – dói dizê-lo, mas a verdade é que o senti mais aproximado de nós; perdi-lhe o medo. E se já não parecia animal heráldico, de maneira mais primitiva, mais de acordo com o nosso barbarismo – senti-o que era o nosso animal totem. Porque nos contrastes desse bicho estão representados os nossos contrastes, – a majestade e a rasteira, o capoeira e o príncipe gigante dormindo em berço esplêndido, a morrer de fome, de amarelão e de tísica. A terra de Tiradentes comparecendo durante quinze anos ao beija-pé de Getúlio, Brasil Urubu-Rei, coroa de ouro na cabeça, pé descalço no tamanco, pátria nossa tão amada, benza-te Deus que bem precisas, e te livre da gaiola e te dê para voar o céu grande onde teus pés não te traiam, e só as asas poderosas te sustentem, te levantem, te carreguem para os caminhos da luz do sol.
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