segunda-feira, 5 de agosto de 2019

O calvário das crianças Guarani Kaiowá contaminadas por agrotóxicos

Eram cerca de 15 crianças Guarani Kaiowá, com idade entre 6 e 9 anos, sentadas à mesa do refeitório da escola indígena da aldeia Guyraroká. Tomavam o café da manhã, servido sempre antes do início das aulas, às 6h. Mas naquela manhã de segunda-feira, enquanto comiam a merenda, os estudantes foram surpreendidos por uma nuvem branca de pó de calcário e agrotóxico, trazida pelo vento de uma área vizinha à comunidade. Em poucos minutos, toda aldeia foi coberta. E assim permaneceu, entre os dia 6 a 11 de maio, período em que vários indígenas —em sua maioria crianças e idosos— apresentaram sintomas de intoxicação por pesticidas, como irritação da pele, enjoo, diarreia e dores de cabeça.

A aldeia Guyraroká ocupa uma área de 55 hectares retomada pelos Kaiowá, em Caarapó, Mato Grosso do Sul, a cerca de 275 quilômetros da capital Campo Grande, onde aguarda pela demarcação de suas terras. A escola da comunidade fica a 50 metros da cerca que separa o território indígena (TI) da fazenda Remanso II. As crianças foram as primeiras a serem afetadas, ao ingerem os alimentos cobertos pelo pó. “Não tivemos como evitar. Elas já estavam com o leite e o pão na mão, mas tiramos o que deu tempo de tirar. A poeira pegou a gente de surpresa. Tinha um cheiro forte. Tentamos cobrir o que foi possível na cozinha”, contou a cozinheira Gilma Guarani Kaiowá.

Nos dias que seguiram, as hortas da comunidade e os alimentos também foram prejudicados. “Não temos muita comida na aldeia. Fica complicado jogar fora, porque é o que a gente tem pra comer. Tentamos proteger, mas a poeira cobriu tudo. Afetou todo mundo, de bebê a idoso. Muita gente passou mal”, afirma a líder indígena Erileide Guarani Kaiowá. Ela explica que não é de agora que a aldeia tem feito denúncias sobre a situação na região. A Guyraroká é composta por 120 pessoas Guarani Kaiowá, sendo a maioria crianças e adolescentes. Cercados por plantações de cana, soja e de milho, os indígenas ficam expostos à aplicação de pesticidas, que frequentemente são pulverizado nas áreas rurais por aviões e tratores.


Elaine Guarani Kaiowá, 80 anos, ainda enfrentava os sintomas de intoxicação por defensivos agrícolas quando a reportagem esteve na aldeia, em junho. Segundo ela, sua filha e a neta também passaram mal. “Muito enjoo, diarreia e dor cabeça”, conta. Os moradores também afirmam que 15 galinhas e dois cachorros das famílias morreram envenenados. Sem acesso fácil a médicos e remédios, a anciã relata que recorreu às raízes e plantas medicinais para tratar os sintomas, mas teme que o avanço das plantações sobre as áreas indígenas acabe com as opções naturais para tratamentos.“A gente mora beirando a cerca. Nossas coisas pra fazer comida ficam tudo ali [aponta para um lugar onde as panelas estavam secando]. A gente não tem médico. Não tem remédio. O que resta é ir atrás das raízes, que daqui uns dias não vai ter mais, nossas florestas estão tudo virando pasto e lavoura”.

Outros indígenas também recorrem às raízes e plantas medicinais ao invés da medicina tradicional devido às ameaças que relatam sofrer. É o que conta C. que prefere não revelar seu nome por segurança, segundo quem os moradores já escutaram que se, os Kaiowá fossem ao hospital regional, os fazendeiros pediriam “um favor” aos agentes de saúde. “Eles dizem que podem pedir para trocar o remédio, para não nos atenderem. Tem indígena aqui que já escutou que ‘pelo menos assim a gente morre mais rápido’”, afirma.

Adelaide Guarani Kaiowá estava em casa quando a poeira tomou todo o seu terreno. Ela e os dois filhos saíram o mais rápido que puderam do local. “Eu cheguei a gritar para o homem que estava no trator pedindo pra parar, mas não adiantou. Passamos muito mal. Todos aqui em casa ficaram muito enjoados e com dor na barriga”.

Os Kaiowá reclamam que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não tem conseguido garantir um atendimento médico adequado à comunidade. “A gente liga pra lá, mas eles nunca podem atender. Falam que não tem gasolina e nem dinheiro para abastecer o carro, que falta medicamento e profissionais”, diz Erileide. O Ministério da Saúde alega que passou por dificuldades jurídicas para solucionar o pagamento da prestação de serviços executados por organizações não governamentais (ONGs) aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), mas que “os recursos destinados às entidades conveniadas que prestam serviços para assistência à saúde indígena já foram efetivados no dia 3 de junho”. Contudo, uma reportagem do jornal O Estado de S.Paulo publicada em 30 de junho relatou a precariedade do atendimento à saúde indígena na região, apesar de a organização responsável pela administração e execução do serviço ser a recordista no recebimento de verba do Governo Federal para este fim.

Quanto à falta de atendimento médico aos indígenas intoxicados, o escritório da Sesai em Caarapó afirmou que ficou sabendo do caso somente depois de dias pela mídia local, e que não houve denúncias da aldeia Guyraroká a respeito, nem pedido de atendimento médico. O órgão comunicou a Vigilância Sanitária, que esteve na aldeia, um mês depois do ocorrido, para coletar amostras da água e alimentos, a fim de verificar se houve contaminação.

Já o Ministério Público Federal informou que está investigando a situação. “Segundo relatos e provas colhidas no local, houve aplicação de produtos químicos em plantação a menos de dez metros da comunidade indígena, que foi seriamente atingida, causando mal estar e diversos sintomas físicos, principalmente em crianças e idosos”, afirmou o MPF.

A família de Marlinho Guarani Kaiowá também foi afetada pelo veneno. O indígena é filho de Ambrósio Vilhalva, um dos principais líderes da etnia, assassinado em 2013. “Hoje, a gente vive aqui cercado de cana e milho. Já acabaram com as nossas florestas. É difícil encontrar caça. E nossa água e comida acabam envenenadas por esses produtos. Eles nos cercam como se fôssemos porcos, mas o Guarani Kaiowá é guerreiro e enquanto houver um de nós vivo vamos lutar pela nossa terra, pelos nossos direitos”, diz Marlinho, emocionando-se ao lembrar a luta do pai.

Nenhum comentário:

Postar um comentário