Desde 1808, porém, um filtro de seleção negativa instalou-se no Rio de Janeiro. E cumpriu darwinianamente o seu papel. Não era mais do feito d’armas nem da ousadia empreendedora ou do financiamento privado de Bandeiras que se poderia subir na vida. Surgira um meio mais fácil. E de lá a velha doença europeia veio arrancando o Brasil à sua americanidade. Sai Reinado entra Império, sai Império entra República, nunca a corrupção pelo privilégio foi tão extensamente socializada. Impossível prosperar sem se compor com o Sistema. Quem não se deixou contaminar já morreu, se não física, com certeza econômica e politicamente. Afundou no lúmpen. Está reduzido a cuidar de sobreviver até amanhã ao tiroteio...
No contexto do isolamento perfeito entre o País Real e o Oficial que atingimos em função do monopólio até da prerrogativa de pedir votos ao povo reservado aos membros dessa privilegiatura, o desafio que se apresenta ao solitário agente que os governos importam do País Real para lidar com a economia dos desprivilegiados que eles nunca viveram não é apenas o de convencer o povo do ponto de vista do presidente e seu governo, mas antes o de convencer o presidente e seu governo a firmarem um ponto de vista diverso daquele que formaram como agentes da privilegiatura alienada que foram até ontem. Só então, e na medida do sucesso sempre relativo dessa primeira operação, poderão partir para a tentativa de convencer os caronas e os caronas dos caronas do Estado aqui fora de que não haverá escapatória ao amargo fim se transferirem o tratamento do problema para onde ele não está.
A minoria com super-privilégios – a dos donos do Estado e seus funcionários – é de meros 0,5% da população. E a minoria com hiper-privilégios é uma fração dentro dessa fração. Só a cumplicidade da maioria pode, portanto, explicar a resiliência dos privilégios de parcela tão ínfima do eleitorado num país que em algum momento ainda vota.
Dois fatores elucidam esse falso mistério. O primeiro é a falta de enraizamento do País Oficial no País Real que enseja esse nosso sistema eleitoral, que não permite identificação entre representados e representantes uma vez eleitos. A bordo de um partido bem aquinhoado de dinheiro “público” de campanha eles não precisam mais dos eleitores nem para se reeleger. Podem dedicar-se exclusivamente ao único jogo de soma zero, que é o do poder, no qual o Brasil é meio, e não fim. Daí o espantoso na afirmação do solerte Paulinho da Força de que para derrotar Bolsonaro convém manter os 210 milhões de brasileiros semiafogados mais alguns anos debaixo d’água ser apenas a sinceridade com que foi feita, e não o significado do que foi dito, como este jornal lembrou em editorial.
Mas o segundo fator é que é o mais insidioso. Agora mesmo, no Olimpo do Judiciário, está sendo armada a cama para Rogério Marinho, o articulador da reforma. O formidável poder de chantagem e intimidação que essa minoria dentro da minoria privilegiada detém pelo controle do gatilho do acionamento (ou não) da lei é o que tem decidido as paradas. A corrupção, inerente à condição humana, é eventual. Mas a corrupção institucionalizada, aquela que nos rouba com a lei, e não contra a lei, essa é sistemática e transfere todo santo dia montanhas de dinheiro das favelas para os palácios, que, no entanto, podem continuar posando de virtuosos, o que a faz triplamente subversiva.
Para que possamos sair desta nossa Idade das Trevas, o Brasil inteiro terá de rever o seu amor bandido pelo pequeno privilégio. Mas o Brasil “indignado”, em especial, este terá de reconsiderar fria e racionalmente quanto do “pega ladrão” em que se deixa a toda hora embarcar é gritado para fazer ou para impedir que se faça justiça, ou o sol jamais voltará a brilhar.
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