Seu primeiro Governo (1985-1990) foi um desastre econômico. A inflação chegou a 7.000%. Ele tentou nacionalizar os bancos, as companhias de seguro e todas as instituições financeiras, uma medida que teria não só acabado de arruinar o Peru, mas também eternizado no poder o seu partido, a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA). Nós o impedimos com uma grande mobilização popular hostil à medida, que o obrigou a recuar. Seu apoio foi decisivo para que a eleição presidencial de 1990 fosse vencida por Alberto Fujimori, que dois anos depois deu um golpe de Estado. Alan García precisou se exilar. Seu Governo seguinte (2006-2011) foi muito melhor do que o primeiro, embora, infelizmente, deteriorado pela corrupção, sobretudo associada à construtora brasileira Odebrecht, que venceu licitações de obras públicas muito importantes, corrompendo altos funcionários. O Ministério Público justamente o investigava sobre esse assunto, e havia determinado sua prisão preventiva por dez dias, quando ele decidiu se suicidar.
Um tempo antes, García tentou pedir asilo no Uruguai, alegando ser vítima de uma perseguição injusta. Mas o Governo uruguaio negou o pedido por considerar – com toda justiça – que no Peru atual o Poder Judiciário é independente do Governo e que ninguém é assediado por suas ideias e convicções políticas.
Durante seu segundo Governo, eu o vi diversas vezes. A primeira foi quando o fujimorismo quis impedir a abertura do Lugar da Memória, que mostraria os seus vários crimes políticos cometidos sob o pretexto da luta antiterrorista. A seu pedido, aceitei presidir a comissão que implementou esse projeto, que hoje – felizmente – é uma realidade. Quando ganhei o Nobel de Literatura, ele telefonou para me parabenizar e me ofereceu um jantar no Palácio do Governo, no qual tentou me incentivar a ser candidato à Presidência. “Achei que tínhamos feito amizade”, brinquei. Acredito que o vi pela última vez numa peça em que eu atuava, As Mil e Uma Noites.
Mas acompanhei bem de perto toda a sua trajetória política e o protagonismo que ele teve nos últimos 30 anos da vida pública do Peru. Era mais inteligente que a média dos que em meu país se dedicam a fazer política, com muitas leituras, e um orador fora do comum. Uma vez o ouvi dizer que era lamentável que a Academia de Letras só incorporasse escritores, fechando a porta aos “oradores”, que segundo ele não eram menos originais e criadores do que os primeiros (imagino que o dizia seriamente).
Quando García assumiu a liderança da APRA, fundada por Haya de la Torre, o partido estava dividido e, provavelmente, em um longo processo de extinção. Ele o ressuscitou, tornou-o muito popular e o levou ao poder, algo nunca logrado por Haya, seu mestre e modelo. Um de seus maiores méritos foi ter aprendido a lição de seu desastroso primeiro Governo, no qual seus planos intervencionistas e de nacionalização destruíram a economia e deixaram o país muito mais pobre do que estava. Ele percebeu que o estatismo e o coletivismo eram absolutamente incompatíveis com o desenvolvimento econômico de um país. Em seu segundo mandato, estimulou o investimento estrangeiro, as empresas privadas e a economia de mercado. Se ele tivesse combatido a corrupção com a mesma energia, teria feito uma gestão magnífica. Mas nesse campo, ao invés de avançar, retrocedemos, embora certamente não com a intensidade vertiginosa dos roubos e saques de Fujimori e Montesinos que, acredito, estabeleceram um limite inalcançável para os Governos corruptos da América Latina.
Teria sido ele um político honesto, comparável a um José Luis Bustamante y Rivero ou a um Fernando Belaúnde Terry, dois presidentes que saíram do Palácio do Governo mais pobres do que entraram? Acredito sinceramente que não. E o digo com tristeza porque, embora tenhamos sido adversários, não há dúvida de que havia nele traços excepcionais, como o carisma e a energia inesgotável. Temo, contudo, que participasse dessa falta de escrúpulos, dessa tolerância aos abusos e excessos tão comuns entre os dirigentes políticos da América Latina que chegam ao poder e se sentem autorizados a dispor dos bens públicos como se fossem deles, ou, o que é muito pior, a fazer negócios privados ainda com isso que violem as leis e traiam a confiança dos eleitores.
Não é realmente escandaloso, uma vergonha sem desculpas, que os últimos cinco presidentes do Peru sejam investigados por supostos roubos, propinas e negócios ilícitos cometidos durante o exercício de seus mandatos? Essa tradição, que vem de longe, é um dos maiores obstáculos para que a democracia funcione na América Latina e os latino-americanos acreditem que as instituições estão ali para servi-los, não para que os altos funcionários encham o bolso saqueando-as.
O disparo efetuado por Alan García na cabeça poderia querer dizer que ele se sentia injustamente perseguido pela Justiça. Mas, também, que desejava que aquele estrondo e o sangue derramado corrigissem um passado que o atormentava e agora retornava para cobrar responsabilidades. Os indícios são sumamente inquietantes: as contas abertas em Andorra por seus colaboradores mais próximos, os milhões de dólares entregues pela Odebrecht ao então secretário-geral da Presidência, agora preso, e a outra pessoa muito próxima, seu próprio nível de vida tão acima do que afirmou ter, ao fazer a declaração de bens antes de assumir o primeiro mandato: “Meu patrimônio é este relógio.”
No Peru, já faz tempo, há um grupo de juízes e promotores que surpreenderam a todos pela coragem que demonstram ao combater a corrupção, sem se deixarem amedrontar pela hostilidade desencadeada contra eles pela mesma esfera do poder que enfrentam, investigando, revelando os culpados, denunciando a má gestão dos poderosos. E, felizmente, apesar do silêncio covarde de tantos meios de comunicação, há também alguns jornalistas que apoiam o trabalho desses funcionários heroicos. Esse é um processo que não pode nem deve parar, pois o país depende dele para sair finalmente do subdesenvolvimento e fortalecer as bases da cultura democrática, para a qual a existência de um Judiciário independente e honesto é essencial. Seria trágico que, na compreensível emoção provocada pelo suicídio de Alan García, o trabalho desses juízes e promotores fosse interrompido ou sabotado, e que os poucos jornalistas que os apoiam fossem silenciados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário