O mesmo banco indica que vivem em estado de extrema pobreza os que recebem o equivalente a US$ 1,90 por dia, R$ 140 por mês. São 15,2 milhões de pessoas nessa situação, em 2017, um aumento de 1,7 milhão em relação ao ano anterior, mais do que a população de cada uma de 14 capitais brasileiras ou do que várias outras grandes cidades. Na melhor das hipóteses, essa importância dá apenas para prolongar o advento da morte por carências inadmissíveis, a maior das quais é a de alimentação. Trata-se de um nível genocida de pobreza.
Outros fatores são mais decisivos na causa da pobreza. A proporção de casais com filhos nessa situação é de 30,4%, o que apenas sugere que a solidão da mãe sem marido ou companheiro não é o único nem decisivo fator da pobreza extrema. Mesmo que não existissem diferenças nas proporções por cor da pele, ainda assim existiriam graves fatores de empobrecimento. Não é o fato de que haja preconceito de cor no Brasil que explica a extrema pobreza. Ele apenas a agrava.
Dados estatísticos sobre a pobreza, como esses, indicam tendências gerais. Dizem pouco sobre o que a pobreza é. Referem-se ao quanto, e não ao como. Referem-se à pobreza calculada, mas não à pobreza vivida. É o abismo entre o cálculo e o vivencial que possibilita o desvendamento das invisibilidades da pobreza, as ocultações da distância entre os que, de um lado, pensam, analisam e explicam o que a pobreza é tecnicamente e, de outro, os que padecem suas consequências.
Nesse meio estão as estratégias de sobrevivência de quem tem menos do que o necessário para viver, de quem está aquém do que faz de um homem, de uma mulher, de uma criança, um ser humano. Nele estão também as insuficiências e limitações dos métodos de avaliação e cálculo das quantidades que revelam demográfica e economicamente, mas também ocultam o que a pobreza sociologicamente é.
Se fosse possível inserir o "como" nos cálculos do quanto, teríamos um retrato mais realista da pobreza. Provavelmente, os casos mais dramáticos, mais graves, do que o IBGE classifica como de pobreza extrema, não entram nas contas pelas quais se mede o nível de pobreza de parte da população brasileira. São os dos que não têm domicílio, referência das amostras de pesquisas desse tipo.
Caso dos que moram nas ruas, embaixo de pontes e viadutos. Em cidades como São Paulo, multidões dormem sob o Minhocão, o quilométrico viaduto que atravessa a cidade, ou sob marquises como a da Faculdade de Direito ou à porta de lojas da praça Antonio Prado, onde foi a igreja e o cemitério da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.
Há os que moram em gavetas vazias de túmulos de cemitérios como o do Araçá, mulheres e homens, tendo como vizinhos de leito os cadáveres dos que ali repousam. Caso de uma senhora preta já de idade, com quem conversei a respeito enquanto fazia sua maquiagem matutina para sair à rua, pois é proibido lá permanecer. Ou um jovem branco, de cerca de 20 anos de idade, a quem perguntei se não tinha medo de passar a noite entre dois mortos, o da gaveta de cima e o da gaveta de baixo. "Não", explicou-me ele, "nunca me fizeram mal. Estou aqui por causa dos vivos, os que estão lá fora. Deles eu tenho medo".
Há os que moram nos barracos mais miseráveis das favelas, onde há uma hierarquia social que reproduz e agrava as desigualdades da sociedade brasileira. Pobre explorando pobre. Ou gente não tão pobre fazendo a mesma coisa. A maioria dos animais domésticos das grandes cidades brasileiras tem melhor nível de vida e melhor assistência médica do que moradores de favelas de São Paulo, cujas condições de vida conheço.
Numa delas, os "cômodos" de restos de madeira ou de papelão estão distribuídos ao longo de um canal de esgotos, que os atravessa por dentro. Geralmente, gente jovem, gente que trabalha. Gente cuja miséria barateia o custo do trabalho nos setores que a emprega, como o de catadores de papel ou de metais para reciclagem.José de Souza Martins:
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