Quando tentou, pouco antes, a presidência da Câmara dos Deputados contra Rodrigo Maia, do DEM, obteve meros quatro votos dos parlamentares. Tinha dificuldades para encontrar uma legenda que o abrigasse e até mesmo um nome a vice. Era tido como personagem pitoresco, movido a arroubos radicais. Um xenófobo, homofóbico e racista de carteirinha, que abominava as liberdades de gênero e opinião, com um temperamento provocador, instigando emoções extremas. Bolsonaro erigiu, mesmo assim, um personagem sob medida para uso eleitoral nesse escrutínio. Caiu nas graças do povo, tendo como reflexo mais de 57 milhões de votos – feito extraordinário para quem mal havia emplacado meia dúzia de projetos de lei na longa temporada de quase 30 anos e sete mandatos no Congresso. No fundo, no fundo, Bolsonaro surfou a onda de um sentimento difuso da população, misturando medo e esperança, desencanto e rebeldia. No Brasil, como de resto em boa parte do mundo, há uma espécie de histeria conservadora que impacta a vida das pessoas e coloca de ponta-cabeça comportamentos e princípios, resvalando no retrocesso.
O capitão reformado despontou por encarnar esses valores. A evangelização do moralismo entrou na ordem do dia. Não é difícil encontrar quem aposte em transformações concretas na rotina dos brasileiros por conta dessa ascensão da ultradireita por aqui. Nas escolas, livros didáticos podem ser revistos e o hábito, superado faz tempo, de cantar o Hino Nacional antes das aulas pode voltar a vigorar. Na TV, programas de cunho erótico-sexual já começam a sofrer com o fenômeno da baixa audiência. Nas ruas, o patriotismo virou moda. Sinal de “novos” velhos tempos. Nos idos de 60, o então presidente Jânio Quadros, tido como um delegado de costumes, celebrizou-se não apenas pela vassoura na mão a varrer corruptos como também por proibir o biquíni na praia e multar apostadores do jogo de bicho e das corridas de cavalo. Queria uma faxina do que encarava como maus costumes, tal qual Bolsonaro tenta hoje. Amparado por militares e religiosos, que deram esteio a sua campanha com o viés nacionalista do “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, Bolsonaro se converteu no terceiro presidente dos quadros do exército eleito diretamente pelas urnas. Antes dele, Hermes da Fonseca, ainda na infante República, fez uma gestão marcada pela ocupação dos estados federativos com a missão de combater oligarquias. Eurico Gaspar Dutra, em meados do século passado, que havia montado trincheira de resistência ao Tenentismo – a célebre rebelião de oficiais que saíram em marcha dos quartéis para protestar contra as práticas políticas correntes nos anos 20 –, proibiu o comunismo e mandou intervir nos sindicatos. Essas experiências, um tanto usurpadoras de direitos individuais, sobranceiramente autoritárias, acendem o sinal de alerta sobre eventuais desvios de conduta do futuro mandatário. A partidarização da caserna, seja no Brasil ou em outros países – majoritariamente terceiro-mundistas –, não produziu até aqui exemplos engrandecedores. Ao contrário. Para ficar em um único caso, a Venezuela do comandante Hugo Chaves é o retrato triste da degradação social que essa combinação pode provocar. Na teoria pura do Estado, assim como em uma república é imprescindível e inerente a tripartição dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) é incompatível a um membro das Forças Armadas, que têm de zelar por tal tripartição, integrar um desses poderes. Salvo na situação do postulante de farda seguir para a reserva antes de almejar qualquer cargo eletivo. Mesmo nessas circunstâncias, como é a de Bolsonaro, a mistura pode ser uma aventura perigosa. A partidarização dos quartéis flerta com a quebra da ordem e da hierarquia, confunde poder originário e derivado e, quase sempre, descamba para a anarquia. O indivíduo talhado no ambiente de rigidez e disciplina dos quartéis, com o apoio das armas, pode se ver seduzido pelo poder desproporcional que o voto e o clamor das ruas lhe entregam e usar indevidamente a soma desses instrumentos.
Está marcado na história, às vezes até em forma de golpes de Estado. Mesmo a “Quartelada”, que levou a derrubada da monarquia e a proclamação da República, traz em seu ímpeto original uma rebelião contra a ordem constituída.
O presidente Bolsonaro, nos novos tempos que se descortinam, precisa dar demonstrações cabais de que vai respeitar as instituições e os ditames da Carta Magna. Necessita de uma vez por todas perceber que há uma grande diferença entre fazer campanha e administrar um país, com as complexidades, diferenças regionais e de pensamento do Brasil. Que o futuro chefe da Nação desça do palanque em paz para governar para todos. Sem rancores ou perseguições indevidas, movido pelo sentimento de verdadeiro estadista que sabe não corresponder ao desejo da maioria, mas que se esforçará para atender aos anseios gerais.
Ele terá de encontrar, pela natureza do posto onde não cabem inspirações tirânicas, novas formas de conciliação e proximidade com o universo ideológico que não compartilha de suas ideias e exprime ainda medo e desencanto. O candidato que catequizou fiéis e foi chamado de “mito” por alguns está devendo grandeza de espírito especialmente quando repudia a crítica.
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