O herói de nossa Independência foi um príncipe português, filho do rei de Portugal, a metrópole que nos havia colonizado. Mas quem assinou o decreto que formalizou a Independência foi a mulher do príncipe, dona Maria Leopoldina, princesa austríaca. Sessenta e sete anos depois, a República foi proclamada por um dos mais íntimos amigos do Imperador, um general que se arrependeu do que fez. A República, um golpe de Estado contra o desejo da maioria da população, foi uma desforra dos senhores de terras contra a Abolição, a libertação dos escravos assinada pela princesa Isabel, a filha do imperador, na ausência deste.
Os primeiros 40 anos de República serviram para dar continuidade ao poder imperial dos latifundiários, através de sucessivas eleições fraudulentas e subestimação permanente do que era popular e nacional. A revolução liberal de 1930, feita para encerrar esses tempos oligárquicos, acabou produzindo a primeira expressiva ditadura no país, o Estado Novo, que durou oito anos. Em 1945, o ditador foi deposto, e o povo elegeu o ministro da Guerra da ditadura como primeiro presidente da nova República. E este, por sua vez, seria sucedido pelo próprio ditador deposto que, assim, voltava ao poder pela vontade do povo, através de uma eleição consagradoramente democrática. Uma nova ditadura imposta por civis e militares, a partir de 1964, só terminaria 21 anos depois, sob a presidência de um político que fora dirigente máximo do partido do regime autoritário.
Nossa surpreendente insanidade segue por aí afora. É como se estivéssemos sempre corrigindo o excesso ou o próprio sentido das revoluções que tentamos fazer. Nunca, em nenhum outro lugar do planeta, se é ou se foi tão fiel ao mote do lorde do “Gattopardo”: mudar para não ter que mudar. Enquanto essa estranha política finge ser um projeto em desenvolvimento, uma atração curiosa e simpática para nossa inserção no mundo civilizado, um amadurecimento charmoso e coquete da nação em direção a seu equilíbrio social e a uma economia cheia de trejeitos que nos transformará em um dos países mais importantes do universo, os pequenos desastres se sucedem, traindo de fato tudo aquilo que pensamos e dizemos sobre o Brasil.
Para que nossa memória não se contagie com nada de bom, assistimos impávidos à destruição de toda lembrança de grandeza e verdade originais, de incêndios históricos, como os do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, do Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, da Cinemateca Brasileira (onde o fogo destruiu 270 títulos de filmes aos quais nunca demos bola), à recente tragédia devastadora do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Por ironia, diretores de museus, especialistas e curadores estão marcando um encontro para discutir o assunto nas dependências do Museu do Amanhã, bela criação rocambolesca para que nos aliviemos com os sonhos do futuro, onde sempre podemos mentir à vontade.
Há poucos anos, o Banco Mundial ofereceu 80 milhões de dólares para recuperar o Museu Nacional que acaba de ser destruído pelo fogo. Os responsáveis hierarcas não aceitaram a proposta, para não perdermos o controle do Estado sobre o museu, o controle sobre nossos fracassos. Pior do que lembrar nossos fracassos, o Museu Nacional, com seu meteorito Bendegó, suas múmias egípcias, seus insetos e borboletas, sua mulher mais antiga da história americana, nos dizia de onde viemos e porque somos assim — o que não queremos, nem suportamos saber. Luiz Antonio Simas escreveu outro dia, sobre o incêndio, que “não é o passado que assistimos consumido pelas chamas; é o futuro dos herdeiros de Luzia que queimou ali”.
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Devido ao feriado da Independência, enviei este meu artigo, e o jornal o recebeu antes do atentado a Jair Bolsonaro, em Juiz de Fora. A insensatez desse evento lamentável corresponde a tudo o que escrevi acima. Há mais de cinco séculos, procuramos um rumo de nação decente para o Brasil, mas somos constantemente traídos pela insanidade de nossos acontecimentos históricos. Como acabar com essa maldição?Cacá Diegues
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