Na realidade, o artigo da canadense é uma peça a mais de uma longa história que dá para uma serie de mistério em que só na terceira temporada se sabe se o acusado é culpado. O primeiro fato assombroso foi que tanto o suposto autor do abuso como as vítimas assinaram um acordo de confidencialidade com a direção universitária e a partir daí tudo se moveu em um inquietante clima de secretismo. Depois de meses de investigação, um juiz afirmou não ter visto indícios de abuso sexual. Esta sentença enfureceu ainda mais as pessoas que se voltaram então contra aqueles signatários que haviam exigido transparência. Atwood deixava claro que os escritores nem sequer defendiam a inocência do acusado, mas a presunção de inocência à que qualquer um tem direito. A romancista punha em dúvida essa inclinação popular de infausta memória pela qual basta ser acusado para se tornar culpado. Neste caso, a universidade se posicionou do lado dos que exigiam a expulsão imediata do docente, embora mais tarde tenha emitido um tímido comunicado solidário.
Como resultado de questão tão embaralhada e da torpeza da instituição levará tempo para se saber como agiu o senhor Galloway com duas de suas alunas. Porque nas muitas reportagens que a imprensa norte-americana dedicou ao assunto há desde testemunhas que o descrevem como um sujeito arrogante e boçal a outros que se referem a ele como uma pessoa colaboradora e prestativa. A controvérsia provocou tal convulsão no mundo cultural canadense que alguns dos primeiros signatários daquela carta que exigia transparência se renderam e retiraram seus nomes, por medo de serem tachados de cúmplices do abuso; Atwood, como feminista, acusada de traidora da causa. Ela se expressava nestes termos: “Quando a ideologia se converte em religião, qualquer um que não imita as atitudes extremistas é visto como um apóstata, um herege ou um traidor... Os escritores de ficção são particularmente suspeitos porque escrevem sobre seres humanos e as pessoas são moralmente ambíguas. O objetivo da ideologia é eliminar a ambiguidade.”
Não se pode dizer que a escritora, de 78 anos, viva fora do mundo, porque quando no dia seguinte veio a esperada resposta irada de alguns leitores, respondeu em mais de 30 ocasiões com um aprumo pedagógico invejável. Não defendia o abuso, repetiu várias vezes, mas a presunção de inocência.
Esta história que ainda não chegou a seu fim trouxe à minha mente de novo, como não, O Conto da Aia. Como sabem, foi escrita em 1985, e como Atwood explicou, na criação de universo tão asfixiante confluíram fatores bem diversos: suas visitas a países comunistas do Leste da Europa, as notícias sobre a queda da qualidade do sêmen no Ocidente e a radical oposição ao pornô de algumas correntes feministas norte-americanas. Além do antiecologismo da era Reagan.
Tudo interveio em sua criação, embora pelo especial momento que vivemos é lógico que haja imagens que agora nos pareçam inspiradas pelo terror islâmico, a era Trump, ou que o vejamos como um arrazoado contra a gestação por substituição. Creio que a própria autora deve ter se surpreendido ao observar como as leitoras jovens atualizaram a leitura de seu texto até transformá-lo mais que em uma distopia, como costuma ser definido, em uma certificação do presente. Na minha opinião, não só formada pelo romance, mas pelas palavras com que a autora o prologa tantos anos depois, Atwood está nos falando do totalitarismo, do silêncio irrespirável que impõe, de como a exigência da pureza acaba se transformando em terror, de como o medo de ser apontado como pecador nos conduz a uma delação que no momento nos salva e nos abriga no grupo dos escolhidos. Proibidos ficam o amor, o sexo e a sensualidade, que nada têm a ver com o abuso de poder e a subjugação. Disso falava Atwood e de não lançar irrefletidamente a primeira pedra contra a cabeça de um acusado.
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