Todos os abusos se passam como e são englobado pela chave do “faça-me o favor” — um forte marcador cultural —, que torna o pedido irrecusável porque, mesmo quando é absurdo, ele foi feito “educadamente” — enclausurado pelo favor! Faça-me o favor de ficar imóvel porque vou assaltá-lo, diria um bandido brasileiro na sua brasileiríssima cordialidade. Muitos já passaram por esse terrível brasileirismo.
Durante muito tempo, eu me interessei pelo que a música popular dizia do Brasil, e este samba que era tocado pelo piano de mamãe me encantava pela candura com a qual ele exibia o nosso viés hierárquico e autoritário camuflado por harmonias e rimas que fazem com que as ordens em sucessão e os pedidos abusivos do “freguês” alcancem o plano da comédia, permitindo sua audição pelo ouvinte e garçom sem questionamentos.
Se repararmos outros estilos em outros mundos, vamos encontrar equações semelhantes. Na música popular americana, as canções de amor cantam uma sensualidade e uma sexualidade que contrastam com o puritanismo rotineiro. Ninguém diria “vamos nos apaixonar” (“let's fall in love”), “faz, faz, faz o que você acabou de fazer” (“do, do, do what you've done before") ou “não negue, satisfaça-me mais uma vez” (“don't deny me satisfy me one more time”) — exceto cantando.
O que não se pode falar, canta-se. O que se pode cantar é coagido pela correção ou tomado como imoral, conforme revela o conjunto de um gênero musical que eu analisei no meu livro “Conta de mentiroso” — o chamado “gênero musical carnavalesco”, em que sugestões sexuais explícitas passam como brincadeiras típicas do carnaval como “mamãe eu quero mamar”, “sassacaricando” e tantas outras.
O samba de Noel e Vadico descreve uma sucessão imperativa de pedidos que vão daquilo que um botequim serve rotineiramente: média com um pão e manteiga, mas o que se deseja é uma média especial rapidamente trazida, que não seja requentada e que o pão venha com manteiga à beça acompanhada de um guardanapo e um copo d’água bem gelada!
Segue-se uma torrente de demandas: fechar a porta da direita, perguntar o resultado do futebol e se por um acaso o serviçal ficar limpando a mesa, ameaça-se não pagar a despesa. Ato contínuo, o freguês consciente de sua autoridade exige caneta, tinteiro, envelope e cartão, objetos “cultos” significativos em 1935, quando o Brasil flutuava mais em analfabetismo do que na extraordinária má-fé criminosa de hoje em dia.
Na sequência, cobram-se palitos, cigarro, revistas, isqueiro e cinzeiro, além de um telefonema ao Seu Osório exigindo um guarda-chuva para o escritório.
Todas essas ordens são, porém, um preâmbulo para um empréstimo de dinheiro, pois o cliente gastou o seu no bicheiro (hoje sabemos que a grana vai para joias, lanchas, sítios etc.). Finalizando, e fechando com chave mestra o figurino autoritário, solicita-se ao gerente do botequim que pendure as despesas no cabide ali em frente!
Tal e qual o “governo” pendurou em todos nós os gastos com as roubalheiras do petrolão, as incompetências com a economia e o gigantesco aparelhamento do Estado. Hoje, assistimos a demandas contraditórias e ideologicamente racionalizadas, como o esfaqueamento do pacote anticorrupção pelo Congresso — enquanto chorávamos todos a tragédia de um formidável time de futebol desaparecido num desastre de avião igualmente suspeito de incompetências.
O que aconteceria se nesse botequim que alguns querem transformar o Brasil outros fregueses ordenassem outras coisas? Como a extinção da Lava-Jato, a prisão por abuso de autoriade dos promotores, delegados e agentes da Polícia Federal e se condenasse o juiz Moro ao exílio?
Afinal, o que se vê hoje no botequim de Noel e Vadico é o povo exigindo mais igualdade e leis anticorrupção. E como o botequim começou a ser limpo e lavado, todos querem ver o fim do filme.
Agora são as ruas que pedem: façam-me o favor de trazer a decência pública!
Roberto DaMatta
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