terça-feira, 23 de agosto de 2016

Enlouquecimento global

Cataclisma - design gráfico 2
Evgeny Kazantsev
Segundo dados da Nasa, recentemente divulgados, 2016 deverá ser o ano mais quente no planeta desde pelo menos 1880. Antes disso não havia registros globais. O passado mês de julho já foi, em média, à escala planetária, o mais abrasador de sempre.

Há cerca de três anos a revista “Science” divulgou um estudo segundo o qual existe uma relação direta entre clima e violência. Uma equipe de pesquisadores das universidade de Princeton e Berkeley, liderada por Solomon Hsiang, cruzou dados sobre clima com outros sobre violência humana, ao longo de vários séculos. Os cientistas afirmam ter encontrado fortes evidências de que o aumento da temperatura, em particular quando associado a mais chuva, tende a elevar os índices de violência, quer individual, quer de grupo.

Lembrei-me, ao ler este estudo, de uma conversa que tive, há já muitos anos, com o romancista, poeta, cineasta e antropólogo angolano Ruy Duarte de Carvalho. Foi na larga varanda do apartamento dele, no bairro da Maianga, em Luanda, durante a estação das chuvas. A cidade inteira era como um navio prestes a naufragar no calor. Ruy Duarte, poeta extraordinário — imagino o deslumbramento com que os leitores brasileiros o descobrirão um destes dias —, além de rara e curiosíssima figura humana, cresceu entre os horizontes sem fim do sul de Angola, por onde o pai, um aventureiro português, se passeava, caçando elefantes, e acabou transformando essa experiência inicial no centro de toda uma vida. Não fez outra coisa, quer enquanto poeta, cineasta ou antropólogo, senão debruçar-se, com curiosidade e paixão, sobre o universo dos pastores nômades do deserto do Namibe. Na tarde que hoje recordo vestia apenas um pano colorido atado à cintura, o traje tradicional desses mesmos pastores, além dos colares e pulseiras que sempre usava.
—Já reparaste que as maiores paixões, quase todos os grandes desastres de amor, bem como os piores crimes, ocorrem durante a estação das chuvas? — perguntou-me.

Devo ter olhado para ele com mal disfarçada incredulidade, pois logo me citou uma mão cheia de exemplos, uns íntimos, outros gerais e públicos. Comecei eu próprio a procurar histórias de conflitos desesperados e vastas loucuras de amor. A maioria ocorrera, em conformidade com a tese de Ruy, nos meses mais quentes, os quais, em Angola, são também os das grandes tempestades. Fiquei interessado:

— E porque acontece isso?

Ruy acreditava que o excesso de energia no ar, resultante da soma do calor e da chuva, enlouquece os espíritos. É como se as pessoas estivessem sob o efeito de uma droga poderosa, à qual não têm como escapar. Na época, eu estava escrevendo um romance sobre a extrema violência que se seguiu à independência de Angola, em particular a decorrente de uma suposta tentativa de golpe de Estado, a 27 de maio de 1977 (fim da estação das chuvas), na sequência da qual foram assassinados largos milhares de dissidentes. A conversa com Ruy deu-me o título para o livro: “Estação das chuvas”.

Ruy Duarte de Carvalho não tinha nenhuma base científica para sustentar a sua tese. Era pura intuição poética. Como tantas vezes acontece, contudo, a poesia parece ter-se antecipado à ciência.

Num outro exemplo interessante, a equipe liderada por Solomon Hsiang concluiu, que os períodos mais quentes e secos da oscilação sul do El Niño duplicam a probabilidade de qualquer país nos trópicos começar uma nova guerra civil.

A acreditar nas teses em causa vivemos em cima de brasas. Nos próximos anos, à medida que o aquecimento global se for agravando, iremos ter mais guerras.

Os políticos que se esforçam por desacreditar os estudos sobre o aquecimento global são, por coincidência, os mesmos que costumam defender os interesses dos fabricantes e traficantes de armamento. Veja-se o exemplo de Donald Trump. Não estou a sugerir que os fabricantes de armamento sejam responsáveis pelo aquecimento global, mas imagino que estejam atentos ao fenômeno.

No plano particular, convém ter cuidado com os amores da estação das chuvas, que, no Rio, acontecem sobretudo entre dezembro e abril. Ou seja, no fim do verão e naquela estação esquiva e quase metafísica à qual os cariocas gostam de chamar outono.

Se acaso, durante esses meses, cometermos algum ato tresloucado, arrastados por uma paixão avassaladora, empurrados por uma força maior do que nós, podemos sempre culpar o aquecimento global. Não foi o excesso de calor, afinal, a justificação de Meursault, o protagonista d’ “O estrangeiro”, de Camus, quando, numa praia argelina, cego pela luz do sol, assassinou um árabe?

José Eduardo Agualusa

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