segunda-feira, 28 de julho de 2025

Pensamento do Dia

 


Amazônia pode ser solução para o adubo do agronegócio

A densa floresta, os igarapés e os rios que fluem silenciosos nos arredores do município de Autazes, no estado do Amazonas, escondem fenômenos invisíveis à primeira vista. Um deles é o potássio, mineral que pode ser encontrado no subsolo, a 800 metros de profundidade. O recurso usado como base para a produção de fertilizantes simboliza a promessa para reduzir a dependência do país de adubos importados – especialmente após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022.

Outro "fato invisível" é a complexa teia de interesses econômicos, políticos e as ameaças ambientais decorrentes da exploração do mineral.

O potássio promete alavancar o agronegócio brasileiro. Mas, para retirá-lo do solo, a empresa Potássio do Brasil, subsidiária da canadense Brazil Potash Corp, precisa perfurar áreas inteiras de florestas intocadas. Estima-se o acúmulo de pelo menos duas pilhas de rejeitos com quase 80 milhões metros cúbicos só de resíduos descartados, sem uso posterior. O volume foi comparado à altura de dois prédios de oito andares. Cientistas e ambientalistas alertam que, com a retirada desse mineral do subsolo, áreas inteiras podem afundar.

Nos arredores das futuras instalações desse projeto, vive a comunidade de indígenas do Lago do Soares e Urucurituba, que aguarda, desde 2003, a demarcação oficial de seu território pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Cerca de 200 famílias da etnia mura estão na aldeia Soares. Conhecidos pelas suas habilidades na navegação, os indígenas mura ocupam a região dos rios Madeira, Amazonas e Purus há pelo menos um século.


"Nos pontos onde as perfurações já aconteceram, boa parte da floresta foi derrubada – e para garantir o acesso às áreas exploradas será necessário desmatar ainda mais", alerta o tuxaua (liderança tradicional) Filipe Gabriel, de 27 anos.

Há dois anos, ele está em pé de guerra com a Potássio do Brasil, a empresa responsável pelo projeto. Passou a enfrentar pressões internas, vendo lideranças locais se alinharem aos interesses da mineradora, e já foi alvo de ameaças. O temor de Filipe é que a sua aldeia acabe soterrada antes mesmo de ser reconhecida oficialmente como território indígena.

Entre março e abril, a reportagem da DW percorreu Autazes e as áreas próximas ao município que fica a cerca de 260 km a sudeste da capital amazonense.

O percurso é feito de carro, balsa e o último trecho, até o Lago de Soares, com uma pequena embarcação local (voadeira). Quem navega pelos igarapés de Autazes, e nas áreas próximas dos locais onde a empresa pretende implementar o projeto, pode estranhar como búfalos, cada vez mais presentes na região, foram parar em áreas cercadas por rios de fortes correntezas e profundos lagos. Os animais dificilmente atravessariam os rios nadando.

Segundo o biólogo Lucas Ferrante, que atua no Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), há um processo de grilagem – tomada de posse de terras com falsos títulos de propriedade – com a introdução desses animais em certas áreas. A grilagem, de acordo com Ferrante, também fortalece o crime organizado, como o Primeiro Comando da Capital (PCC).

O biólogo acrescenta que os pecuaristas estariam negociando essas terras diretamente com a Potássio do Brasil, uma vez que não conseguiram adquiri-las diretamente de outros indígenas. "Nós vemos uma organização criminosa atuando na grilagem de terras, que inclusive tem invadido a região de Autazes, invadindo terras indígenas, e disseminando búfalos nessas áreas griladas", disse à DW Brasil o também colaborador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

"Estamos falando de uma articulação do crime organizado diretamente com a Potássio do Brasil para ter acesso a áreas indígenas na Amazônia, o que agrava ainda mais. É uma empresa que, de fato, tem adquirido isso de maneira criminosa", acrescentou.

Questionado, o Ministério Público do Amazonas disse que investigações nestes casos são sigilosas. A reportagem também procurou a empresa Potássio do Brasil para questionar se reconhece as acusações, como tem sido a aquisição de terras para o projeto, e como controla todas as etapas desse processo. A empresa não respondeu ao pedido de esclarecimentos da reportagem até a conclusão da matéria.

Mas, segundo Ferrante, "o Brasil está abrindo uma das áreas mais conservadas, um dos últimos blocos de floresta intocada no meio da Amazônia, acelerando uma nova fronteira do desmatamento – e nós temos vários estudos publicados sobre isso – justamente para facilitar a exploração".

Ferrante destaca ainda que sua equipe pesquisa uma alternativa sustentável: o uso de microrganismos capazes de fixar potássio no solo, o que pode tornar a atual forma de extração de potássio obsoleta em apenas cerca de dez anos.

"Até esse potássio começar a ser explorado vão alguns anos e, até lá, nós já teremos essa biotecnologia em mãos, o que dispensa esse trabalho retrógrado que viola o direito dos povos indígenas e que ameaça a Amazônia através das ações da Potássio do Brasil nesse território", disse.

Atualmente, a empresa avança com o projeto de extração de potássio do solo para a produção de fertilizantes químicos.

A Brazil Potash Corp, ligada ao investidor Stan Bharti e ao banco Forbes & Manhattan, pretende explorar potássio em mais de um milhão de hectares entre Autazes e Óbidos, no Pará. Isso significa que a expansão desse projeto para além dos arredores de Manaus poderá ter impactos ambientais em uma grande área de floresta na Amazônia, abarcando vários estados, além do Amazonas.

Porém, desde 2015, o Ministério Público apura irregularidades no licenciamento ambiental do projeto, denúncias de ameaças de morte, cooptação de lideranças indígenas, assédio e a compra de terras sob coação nos arredores de Autazes.

Anunciado no município há mais de dez anos, o projeto da Brazil Potash Corp. para construir uma mina de potássio já tem as obras iniciadas. Os moradores nos arredores das futuras instalações relataram à DW Brasil que há o movimento de embarcações e que parte da área começou a ser desmatada.

Porém, isso acontece sem as licenças do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão federal. Através do órgão estadual Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), a empresa obteve o licenciamento ambiental fracionado, relata o advogado que representa a comunidade. Foram licenças individuais separadas para diferentes partes do projeto, como a construção de estradas e depósitos de rejeitos, em vez de uma licença emitida pelo Ibama.

A DW Brasil entrou em contato com o Ibama e questionou por que o órgão não é o responsável pelo licenciamento ambiental, considerando que se trata de um projeto de interesse nacional. Em resposta, o Ibama afirmou que se baseia no artigo 7º da Lei Complementar nº 140/2011, segundo o qual sua atuação seria obrigatória apenas caso as instalações impactassem diretamente terras indígenas. Por esse motivo, como são áreas em demarcação, declarou que "não se verificam as características que justificariam a atuação do órgão".

Mas a abstenção do Ibama no licenciamento tem sido questionada pela Justiça. Em 2023, a justiça do Amazonas suspendeu o licenciamento ambiental, alegando que a competência era do Ibama, e não do órgão estadual Ipaam. No ano passado, porém, o Tribunal Regional Federal da 1° Região (TRF1), reverteu a decisão, fortalecendo o Ipaam no impasse que se arrasta há cerca de dez anos.

"A gente sabe que por costume – um costume triste –, os órgãos estaduais tendem a ser muito mais propensos a liberar licenças de qualquer jeito do que o federal, e é o que está acontecendo aqui. Há violações crassas, licenciamento feito de qualquer maneira, cheio de irregularidades pelo órgão estadual", disse à DW Brasil o procurador Fernando Merloto Soave.

Outro imbróglio no licenciamento ambiental é o fato de as comunidades mais impactadas pelas futuras instalações do projeto não terem sido ouvidas, segundo explicou à DW Brasil o MPF do Amazonas. A consulta às comunidades do entorno é uma diretriz da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), João Vitor Lisboa Batista, que representa as comunidades Lago do Soares e Urucurituba, diz que "o maior desafio tem sido provar que a consulta realizada não foi válida porque as pessoas que deveriam ser ouvidas foram ignoradas".

Segundo o advogado, a estratégia da empresa Potássio do Brasil foi deslocar a área do empreendimento para os locais em processo de demarcação, como Lago do Soares e Urucurituba, já que a Constituição Federal proíbe mineração em terras indígenas. Segundo a liderança indígena Filipe Gabriel, com frequência diz-se na região que "se a terra não está demarcada é porque não tem indígenas, então se pode explorar, porque não tem donos".

Mas o MPF questiona esse argumento e explica que "não se pode minerar em cima desses territórios, estejam eles demarcados ou não", diz o procurador Fernando Merloto Soave. "O que faz o território existir, ou não, é seu uso tradicional. Delimitar ou demarcar é papel burocrático do governo", acrescenta.

No início de abril, a Funai visitou a aldeia Lago do Soares, com os primeiros apontamentos para a delimitação do território. Uma terceira visita deste órgão que realiza estudos para identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras indígenas será realizada em setembro deste ano.

Se a área do Lago do Soares for demarcada como terra indígena pela Funai, o Ibama deve intervir (de acordo com a Constituição) e isso implicaria, explicam os advogados, em um processo de licenciamento ambiental mais minucioso sobre os impactos ambientais do empreendimento.

Enquanto isso, a empresa já atua em Urucurituba e movimenta seus maquinários pelos territórios, relatam moradores no local. Segundo consta no site da Potássio do Brasil, "o povo mura de Autazes, composto por 36 aldeias e representado pelo Conselho Indígena Mura (CIM), seguiu integralmente o Protocolo, com 94% das aldeias aprovando o projeto, superando o quórum mínimo de 60% exigido".

As controvérsias não param por aí. O MPF também investiga pagamentos de subornos de cerca de R$ 10 mil a lideranças indígenas para que apoiassem projeto.

Outra questão apontada pelo MPF é a denúncia de que terras estariam sendo vendidas sob coação. Em alguns casos, os contratos incluíam cláusulas de confidencialidade que impediam os vendedores nas comunidades de revelar qualquer informação sobre as transações.

Diante das críticas, a Potássio do Brasil e o governo federal defendem o projeto para explorar potássio em Autazes como estratégico para os interesses nacionais, inclusive para garantir a segurança alimentar no país e no exterior. Isso porque a guerra entre Rússia e Ucrânia afetou o fornecimento global do mineral, e o Brasil, que importa 96% do insumo – principalmente da Rússia, Canadá e Belarus –, busca reduzir sua dependência externa. A produção local diminuiria custos de transporte e tornaria os fertilizantes mais acessíveis.

Segundo a empresa relata em seu site, o projeto prevê uma produção anual de 2,4 milhões de toneladas de potássio, o que poderia suprir 20% do consumo nacional e fortalecer o agronegócio ao garantir um fornecimento estável. Atualmente, antes mesmo de completamente finalizado, o projeto gera lucros. Em novembro de 2024, obteve US$ 30 milhões com uma oferta pública inicial de ações (IPO) na Bolsa de Valores de Nova York.

Banquete para poucos

Nós brasileiros fomos historicamente divididos em dois blocos de pessoas, como se fossem predestinados a serem eternamente incompatíveis entre si: um, formado por afortunados, insensíveis na sua maioria às questões da pobreza, e o outro, constituído pelos desprovidos das condições mais essenciais de sobrevivência e privados de direitos aos acessos viabilizadores da dignidade e da emancipação humana.

Afortunados aqui são todos os que arbitram em causa própria, por vias diretas ou indiretas, os acessos para se apropriarem do que é gerado pela coletividade. Como coletividade, estou considerando a somatória dos que vivem sob as mesmas regras, em que uma minoria se apropria da maior parte do que resulta dos processos produtivos, tais como bens, serviços, cultura, lazer, proteção social, e tantos outros que deveriam ser compartilhados entre todos os que contribuem para a sua produção.


Tudo em nome da meritocracia, palavra muito falada pelos parcos privilegiados que não se julgam pelo mérito, mas pela hereditariedade e que definem como deve ser a partilha do que é vital para todos. O rigor no mérito só é cobrado dos outros, daqueles que não são beneficiados com a equidade nas oportunidades e que, em consequência, ficam impossibilitados de participarem das verdadeiras competições.

Na forma como essa partilha é feita, poucos são os aquinhoados com o que resulta da produção realizada pela esmagadora maioria da população ativa. Empresários têm isenções fiscais de cerca de R$ 587 bilhões, enquanto isso, o maior programa social do Brasil, o Bolsa Família, é rejeitado pela maioria da minoria; o que dá uma ideia do quão desigual é a repartição da riqueza produzida no País.

Uma das providências necessárias para reduzir a apartação social brasileira é acabar de vez com o incentivo fiscal enviesado, aplicado como muleta ou privilégio. O País não suporta mais essa prática com o dinheiro desses incentivos gerado por impostos pagos pelo conjunto das empresas e das pessoas físicas, ricas, pobres e indigentes, como recompensa pelo que o Estado oferece para assegurar o convívio social, as bases educacionais, a proteção sanitária e as condições infraestruturais de produção.

Não estou fazendo apologia à igualdade na distribuição de riqueza nem na posse de bens materiais, mas na igualdade de oportunidades de acesso aos instrumentos de mobilidade econômica, social e cultural. A escola do rico tem de ser igual à escola do pobre.

Temos um dilema nessa questão da desigualdade. Os beneficiários da acumulação da riqueza, geralmente, não aceitam qualquer medida governamental que retire a mínima fração de seu quinhão para atenuar a situação dos que nada ou quase nada têm. Até as propostas mais racionais, como a que visa cobrar um pouco mais de imposto de pessoas com alta renda, para compensar a isenção do pagamento de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil vêm sendo combatidas por parlamentares representantes dos interesses da minoria privilegiada.

O discurso sobre a necessidade de redução de despesas para equilibrar as contas públicas é reverberado nas instâncias parlamentares, judiciárias e executivas, mas ninguém quer cortar na própria carne. Alguns parlamentares não aceitam sequer falar em redução ou comprometimento da aplicação do dinheiro de emendas de forma coerente com políticas públicas, membros do Judiciário mudam de assunto quando o tema é eliminação dos “penduricalhos” e integrantes dos Poderes Executivos, não tomam medidas efetivas para cortar certos gastos, inclusive determinados benefícios fiscais.

A defesa destes privilégios assemelha-se a um banquete em que os comensais se recusam aceitar à mesa quem já não esteja nela há muito tempo. Fruto de uma mentalidade colonial e escravagista renitente, esse comportamento só permite aos que estão fora da mesa as migalhas que caiam dela ou as sobras resultantes do desperdício ostentatório.

Entre os agravantes do processo de desigualdade está o progressivo aumento da concentração de renda resultante do rentismo, que nada produz de riqueza real, enquanto enriquece muitos com um dinheiro estéril. Este é um tipo de sistema que funciona como uma solitária a comer o corpo por dentro, enfraquecendo o organismo social.

O mundo está diante de uma encruzilhada formada pela radicalização da disputa geopolítica e pela necessidade de uma reconciliação que promova o respeito nas relações entre países. É mandatório controlar os ímpetos que decorrem de conflitos históricos que contaminam fronteiras e territórios econômicos, culturais e religiosos.

Nesse cenário, o Brasil pode ser um exemplo de país que tem tudo para promover a inclusão de brasileiros e abrir portas para imigrantes, como tem feito secularmente. Para isso, é urgente acabar com o fosso da desigualdade decorrente da concentração inconsequente de riqueza, que penaliza a imensa maioria de sua população e trava a dinâmica de um desenvolvimento sustentado, que pode ampliar sua capacidade de fazer a inclusão dos que já vivem aqui e de acolher a quem venha de fora.

Crise do jornalismo deixou terreno fértil para erosão da democracia

Estamos imersos em uma crise histórica de longa duração. Os pilares que sustentaram a democracia liberal do século 20 —representação política, jornalismo profissional, instituições reguladoras, pactos de coesão social— sofrem um processo de desestruturação progressiva.

A explosão informacional trazida pela internet não produziu mais esclarecimento; ampliou o ruído, fragmentou consensos e corroeu formas tradicionais de mediação. O jornalismo, paralisado em sua arrogância institucional, não soube compreender a emergência do novo ambiente em rede.

As plataformas digitais, ao contrário, não hesitaram: capturaram rapidamente o centro da esfera pública, reconfigurando as formas de circulação de informação, opinião e afeto.

Embora a literatura crítica internacional acumule diagnósticos relevantes sobre a colonização algorítmica e o declínio das instituições intermediárias, é notável —e preocupante— o silêncio generalizado, inclusive no jornalismo, sobre a verdadeira dimensão dessa crise. Esta talvez seja a mais grave omissão pública do nosso tempo.

O que proponho aqui não é apenas um diagnóstico, mas um esforço deliberado de nomear essa dissolução como uma crise estrutural e civilizacional, com a qual o jornalismo tradicional se mostrou, até aqui, incapaz de lidar.

Não relato apenas uma experiência pessoal, mas a trajetória de uma geração que acreditou na função pública do jornalismo e assistiu, perplexa, ao seu esvaziamento como mediador qualificado da opinião pública.


Minha trajetória —do Jornal da Tarde e da Agência Estado à criação da Broadcast e ao diálogo com o MIT Media Lab— revela que o caminho não está na nostalgia nem na resistência passiva, mas na reinvenção ativa do jornalismo como infraestrutura pública de articulação social. Na virada do milênio, ao mergulhar nas pesquisas do Media Lab, compreendi que não vivíamos apenas uma revolução tecnológica, mas uma profunda e irreversível transformação epistemológica.

Foi Harold Innis, autor de "O Viés da Comunicação" e pai da Escola de Toronto, quem melhor formulou esta chave interpretativa: a forma como uma sociedade se comunica determina sua estrutura de poder.

Ao estudar a transição dos impérios orais para os escritos, dos registros em pedra à imprensa de massa, mostrou como o tempo social é moldado pelos meios de registro e transmissão da informação.

Mais que isso: o meio técnico dominante molda o próprio ambiente social, delimitando as possibilidades de organização política, econômica e cultural. Marshall McLuhan, seu discípulo mais conhecido, levou essa ideia adiante. Ao afirmar que "o meio é a mensagem", deslocou o foco do conteúdo para a forma da mediação. Televisão, rádio, jornal —cada meio conforma uma sensibilidade e uma lógica de organização social.

Hoje, a internet, com sua capacidade de retroalimentação em tempo real, constitui um novo sistema nervoso coletivo: um ambiente cognitivo global estruturado por tecnologias que transcendem fronteiras e operam em ritmo contínuo. Mas, pela primeira vez na história, essa infraestrutura técnica está concentrada nas mãos de poucos atores privados, sem mediação pública e sem projeto democrático correspondente.

Mesmo em crise, os jornais ainda exercem influência simbólica —citados por autoridades, lidos por formadores de opinião, referenciados por outras mídias. Mas é uma influência terminal, sem futuro, se não houver reconfiguração estrutural.

O jornalismo precisa deixar de ser apenas um produtor de conteúdos e retomar seu papel como arquitetura informacional: organizador de fluxos, mediador de sentidos, articulador de redes. No século 20, os jornais foram centros de gravidade de comunidades, catalisadores de sociabilidades e pactos sociais. A travessia para o século 21 exige que reaprendam a desempenhar essa função em ambiente digital.

Essa função foi esvaziada não pela obsolescência de sua missão, mas pela incapacidade institucional de compreender e ocupar o novo ambiente em rede.

A internet, concebida nas décadas de 1960 e 1970 como uma infraestrutura descentralizada e resistente ao controle, foi rapidamente capturada por interesses corporativos. Google, Facebook, Amazon e outras empresas surgidas em garagens ocuparam o vácuo deixado por um jornalismo preso à lógica do broadcast, enquanto o mundo passava a se estruturar segundo uma nova lógica em rede.

O resultado é uma arquitetura algorítmica voltada à maximização do engajamento, que expõe o público à manipulação informativa em escala industrial e coloniza a esfera pública com interesses comerciais disfarçados de neutralidade técnica.

O poder informacional, antes disperso em múltiplos centros de mediação, hoje está concentrado em poucas corporações que controlam não apenas os fluxos de atenção, mas as condições para a produção social de sentido.

Carrego a história como lente e vejo a rede como extensão das antigas trilhas culturais: as rotas atlânticas que expandiram a economia mediterrânea; os peabirus que cruzavam os Andes e o litoral brasileiro e serviram de base para a aventura do bandeirismo, a expansão das nossas fronteiras e a ocupação do interior; os caminhos do telégrafo que unificaram o território nacional; as rotativas que ajudaram a consolidar os Estados-nação.

A rede é, agora, a nova trilha —fluida, fragmentada, repleta de bifurcações e zonas de sombra. Como aquelas trilhas do passado, ela redefine os circuitos do poder e da circulação. Mas vai além: conecta consciências, reorganiza o espaço público e inaugura um novo estágio da humanidade.

Inspirado por meu bisavô Júlio Mesquita —que, por meio de sua atuação como empresário e jornalista, foi um dos principais articuladores das redes sociais e de interesse que estruturaram São Paulo no início do século 20—, dediquei minha trajetória jornalística também à compreensão de como se organizam os fluxos de informação na sociedade.

Em 1991, na Agência Estado, ao lançar a Broadcast, sabíamos que estávamos criando um protótipo do que viria: uma estrutura de informação em tempo real, personalizada, dinâmica e interativa, embrião da lógica em rede que depois se tornaria dominante.

A diferença é fundamental: a Broadcast nasceu com responsabilidade editorial, ancorada em critérios de curadoria e compromisso com a veracidade. Já as plataformas sociais, apesar de seu potencial exponencial de crescimento, foram concebidas com um único objetivo: monetizar a atenção. E é justamente aí que começa o problema.

A imprensa tradicional, presa à lógica do século 20, ignorou que a nova mídia era interativa. Quando percebeu, já era tarde. Em vez de assumir o papel de curadora dos fluxos, preferiu simular a estética digital e disputar cliques. Transplantou a lógica do papel para a web como um cadáver reanimado —e ele ainda anda.

As Redações seguiram produzindo para o público, não com ele. Ignoraram o canal de volta e perderam o centro do processo democrático. Enquanto isso, os algoritmos aprenderam a explorar o medo, o tribalismo e o consumo. A esfera pública foi colonizada.

As big techs deixaram de ser apenas empresas: tornaram-se plataformas essenciais à democracia contemporânea, controlando a infraestrutura social por onde nos comunicamos, nos organizamos e tomamos decisões coletivas. Essa centralidade, contudo, não veio acompanhada de um sistema de governança compatível com a responsabilidade que passaram a exercer.

O controle privado concentra poder sem contrapesos institucionais. Nesse vácuo floresceram aventureiros da comunicação, explorando inseguranças e preconceitos por meio de manipulação emocional. Essa degeneração da esfera pública é hoje uma ameaça real à democracia.

Quem controla os fluxos de atenção controla a opinião pública. As plataformas sabem disso. Seus algoritmos não são neutros: moldam o que vemos, como interagimos, até como votamos.

Hoje, cinco ou seis empresas, todas de tecnologia, têm poder de manipular a esfera pública global. Um poder inédito. Nem a igreja medieval, nem os impérios da imprensa ou a TV dos anos 1960 tiveram alcance comparável. Pior: é um poder opaco, automatizado e orientado por cliques, não por um debate saudável.

A Comissão Europeia reconheceu isso em 2018, ao inspirar os primeiros marcos de regulação digital na Europa. Seu relatório mostrou que os algoritmos priorizam engajamento e monetização, amplificando a polarização, espalhando desinformação e corroendo o tecido democrático. Concluiu que não basta regulação ou checagem: é preciso restaurar a coesão simbólica por meio de narrativas públicas potentes.

Ao propor uma abordagem interdisciplinar —unindo psicologia, ciência política, jornalismo, computação e educação—, o documento aponta que a desordem informacional exige mais do que ajustes técnicos: requer reconstrução coletiva da confiança pública.

Na narrativa dominante, diz-se que a desinformação se combate com "educação midiática". Como se o cidadão comum tivesse a obrigação de entender algoritmos, filtros bolha e fluxos patrocinados. É uma falácia —e uma perversidade.

O próprio relatório reconhece isso. A educação midiática deve ser um esforço cívico em larga escala, envolvendo educadores, jornalistas, ONGs, plataformas e políticas públicas, e não um fardo individual.

A responsabilidade pela qualidade do ambiente informacional é institucional, ética, política e regulatória. Mas as plataformas evitam essa responsabilidade —e parte da imprensa, ao ecoar esse discurso, torna-se cúmplice.

O que testemunhamos é a convergência entre regimes autoritários eleitos e a infraestrutura informacional dominada pelas big techs. O caso americano é emblemático: Donald Trump ameaça jornalistas, semeia ódio contra a imprensa e, ao mesmo tempo, foi cortejado por figuras como Elon Musk, que controla uma das principais plataformas de circulação de discurso político.

Essa aliança é tácita, mas eficiente. Regimes como o de Trump deslegitimam a imprensa, enquanto as plataformas desestruturam sua base econômica e capturam sua audiência.

Ambos têm interesse em um jornalismo fraco. Um quer evitar o escrutínio; o outro, monopolizar a atenção. Contudo, a relação entre Estado e plataformas é mais ambígua do que uma simples aliança. Moldam-se mutuamente, ora se cooptam, ora se confrontam.

O recente rompimento público entre Musk e Trump —após divergências sobre subsídios, regulação e posturas institucionais— expôs as tensões internas desse arranjo informal, mas estrutural. A lógica de cooptação permanece, mas os atores já disputam o protagonismo da esfera pública.

Esse embate aparece nos conflitos regulatórios em democracias marcadas por crises de representação e erosão da mediação jornalística. Na Hungria, Orbán subordinou a imprensa e instrumentalizou as plataformas.

Na Rússia, o Kremlin promoveu redes locais e explora brechas em plataformas globais para desinformação. Na China, o controle é total: bloqueio de redes ocidentais, vigilância e regulação que transforma aplicativos em extensões do Estado.

Na Índia, Modi pressiona plataformas, reforça leis de controle e mobiliza redes para campanhas nacionalistas. Nas Filipinas, Duterte usou o Facebook para consolidar apoio e atacar opositores.

No Brasil, sob Bolsonaro, as plataformas digitais deixaram de ser apenas meios e passaram a integrar uma verdadeira rede social de fato, centralizada no entorno familiar do poder, com Carlos Bolsonaro atuando como publisher —definindo pautas, controlando edições, operando sistemas de distribuição e mecanismos de cooptação.

WhatsApp, X (ex-Twitter) e Facebook tornaram-se canais centrais da comunicação oficial do governo. A base foi mobilizada digitalmente para atacar a imprensa, hostilizar adversários e deslegitimar instituições. O caso brasileiro revela, com nitidez, como a lógica das plataformas pode ser instrumentalizada para corroer a esfera pública e minar os fundamentos da mediação democrática.

Se o jornalismo tivesse se reinventado como mediador em rede, e não como emissor vertical, boa parte do espaço ocupado pela desinformação poderia ter sido contido. Trump, Orbán, Duterte e Bolsonaro talvez não tivessem encontrado terreno tão fértil para manipular a opinião pública.

Nesse cenário, a imprensa não pode mais se limitar a produzir e distribuir informação. Precisa, como fez a família Bolsonaro de forma perversa, fomentar e monitorar redes sociais de fato, mas com outra finalidade: reconstruir o espaço comum da linguagem, da escuta e do conflito civilizado.

Essa é hoje a tarefa essencial do jornalismo. Para cumpri-la, é preciso desenvolver sistemas e ambientes próprios, que sustentem uma relação em rede com o público, rompendo com a lógica reativa e subordinada às plataformas. Não se trata apenas de informar, mas de reorganizar a esfera pública em torno de vínculos mais legítimos, mediações transparentes e sentidos compartilhados.

Isso exige uma organização editorial conectada a redes sociais reais —aquelas formadas por vínculos vivos nos territórios, vínculos entre o público e seus grupos de interesse, compostos também por educadores, cientistas, lideranças locais e cobertos por jornalistas de campo.

Isso vai muito além das estruturas artificiais que as plataformas das big techs passaram a chamar de "redes", com a cumplicidade da imprensa, apenas para sustentar um modelo de negócios perverso, baseado na extração da atenção e na desinformação.

O jornalismo que se faz necessário hoje é aquele capaz de articular inteligência distribuída e sustentar-se não apenas por publicidade, mas por confiança, pertencimento e corresponsabilidade.

Não se trata de nostalgia. Como alertava McLuhan, tendemos a enfrentar o novo com os reflexos do passado, "uma marcha para o futuro olhando para o retrovisor".

É hora de redesenhar a mediação: não há democracia sem esfera pública, nem esfera pública sem estruturas de mediação. E, neste novo ambiente, isso exige criar relações em rede com o público —vínculos contínuos, distribuídos e confiáveis, capazes de sustentar um jornalismo que não apenas informe, mas articule—, reconectando-o.

O "Relatório de Desenvolvimento Humano 2025 — Uma Questão de Escolha: Pessoas e Possibilidades na Era da IA", publicado recentemente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), é um chamado à ação.

Segundo o documento, a reconstrução da democracia passa, necessariamente, pela reconstrução do jornalismo, articulada a um novo pacto político que inclua governança democrática das infraestruturas digitais, transparência algorítmica, responsabilização das plataformas e estímulo a ecossistemas informacionais sustentáveis.

O que está em jogo é uma encruzilhada civilizatória entre emancipação e servidão algorítmica. O conceito central do relatório é o "poder agencial algorítmico": algoritmos que moldam escolhas, organizam o visível e delimitam o possível. Treinados com dados históricos, amplificam desigualdades sob a aparência de neutralidade.

Essa infraestrutura, controlada por poucos, configura uma colonização simbólica. As plataformas moldam afetos, polarizam crenças e corroem os mecanismos da opinião pública. O relatório propõe caminhos: uma "inovação com intenção", orientada por valores públicos, e uma "economia de complementaridade" entre humanos e máquinas.

O PNUD é incisivo: o futuro da IA será determinado por escolhas políticas e institucionais, não tecnológicas.

Três pilares são fundamentais: transparência, para que os critérios que orientam a operação algorítmica sejam compreensíveis e auditáveis; responsabilidade, para que decisões automatizadas possam ser contestadas e revisadas; e contestabilidade, para que haja mecanismos institucionais efetivos de revisão e correção.

O relatório alerta que, ao deixar as plataformas definirem os termos do debate, estamos entregando a cidadania a sistemas opacos e não contestáveis. Essa "automatização do poder" captura atenção, promove consumo e reforça desigualdades. Este é o núcleo da questão: a governança da inteligência artificial é, antes de tudo, um desafio político.

Não há arranjo institucional viável sem enfrentar a extrema concentração de poder informacional e computacional nas mãos de um punhado de empresas privadas, guiadas unicamente por lucro e controle de mercado. As propostas de regulação, tal como estão sendo desenhadas, tendem a reforçar ainda mais esse domínio.

Só uma ação coercitiva de alcance global —capaz de afetar diretamente seus ganhos, desmontar estruturas de monopólio e inverter os incentivos predatórios— pode, de fato, mudar o jogo. É preciso falar a única linguagem que elas entendem: o bolso.

O diagnóstico do PNUD converge com a análise que Martin Wolf, principal comentarista econômico do Financial Times, vem desenvolvendo desde 2014: caminhamos para uma era de regimes autocráticos, impulsionados por ressentimentos de massa gerados pelo capitalismo financeiro e alavancados por plataformas digitais que concentram o poder informacional.

Em "The Crisis of Democratic Capitalism", Wolf argumenta que a sobrevivência da democracia depende de instituições intermediárias fortes e legitimadas, capazes de sustentar uma esfera pública funcional. Sem jornalismo independente, crítico e estruturado como mediação confiável, abre-se espaço para a desinformação, o tribalismo e a erosão dos fundamentos republicanos.

A questão central não é apenas regular as plataformas, mas reconstruir a esfera pública em meio a novas infraestruturas de poder. O relatório do PNUD é um chamado à ação: não podemos seguir como usuários passivos de sistemas algorítmicos. Precisamos deliberar coletivamente sobre o desenvolvimento tecnológico, a arquitetura informacional e os valores que a orientam.

Este é um ponto de inflexão civilizatório: ou criamos mecanismos institucionais para conter a lógica extrativista das plataformas, ou veremos consolidar-se um colonialismo digital que restringe liberdades, corrói a deliberação democrática e reduz a agência humana à lógica dos algoritmos.

O desafio é político. Exige um novo pacto social que subordine a tecnologia à emancipação, não à dominação.

O silêncio público e institucional sobre a gravidade dessa crise é, ele próprio, parte do problema. Persistir nesse mutismo equivale a legitimar a nova ordem algorítmica como inevitável e incontornável. Romper com esse silêncio é o primeiro passo para a reconstrução da esfera pública.

Ou tomamos a iniciativa de desautomatizar a esfera pública e democratizar as infraestruturas digitais, ou permaneceremos como espectadores passivos da consolidação de uma nova ordem social algorítmica, na qual a liberdade e a democracia não terão mais espaço para florescer.

Não se trata apenas de propor ajustes ou inovações incrementais: é preciso coragem política, intelectual e institucional para reimaginar o jornalismo e as infraestruturas digitais como bens públicos essenciais à democracia.

Esta tarefa é ainda mais urgente diante do quadro de insegurança e desesperança que hoje atravessa a humanidade, resultado da falência das formas tradicionais de representação política, do declínio da mediação jornalística e da emergência de um poder informacional opaco e concentrado.

A reconstrução da esfera pública, portanto, não é apenas um imperativo técnico ou institucional, mas uma resposta necessária ao mal-estar difuso que corrói a confiança coletiva e ameaça o próprio futuro da democracia.

Este é o desafio essencial do nosso tempo —enfrentar a consolidação de uma nova ordem social algorítmica, imposta por conglomerados tecnológicos privados que hoje detêm mais poder do que muitos Estados nacionais.

É também o momento de lutar para retomar o espírito original da internet, uma rede sem centro e controle, pensada para crescer pelas bordas, fortalecer a autonomia dos indivíduos e ampliar os horizontes da cooperação humana.

Essa promessa foi capturada e distorcida por aplicações controladas por grandes plataformas, que concentram poder, extraem atenção e impõem lógicas opacas de vigilância e manipulação.

Se não formos capazes de reequilibrar essa correlação de forças, a democracia será apenas um simulacro tolerado pelas plataformas, e o jornalismo, uma função residual subordinada ao mercado da atenção.

Trump e a estratégia do absurdo negociado

Donald Trump tem um estilo de negociação próprio, que rompe com os protocolos tradicionais da diplomacia. Ele se apoia em uma verdade incontestável: o acesso ao mercado norte-americano é um ativo de altíssimo valor para países e empresas de todo o mundo. Mas, a partir desse fato, simula um poder absoluto — como se os Estados Unidos pudessem impor qualquer condição, em qualquer circunstância, sem custo ou consequência.

Este simulacro de soberania ilimitada ignora a realidade central do mundo contemporâneo: a interdependência dos mercados, das cadeias produtivas e das instituições multilaterais. Trump sabe disso, mas atua como se não soubesse. Impõe exigências econômicas extravagantes. E faz mais: introduz no processo de negociação exigências que não podem ser atendidas, sob pena de violar a soberania ou os princípios constitucionais do país interlocutor.

É o que se viu em diversos episódios:

• Com o Canadá, impôs tarifas sem precedentes desde a criação do NAFTA e culpou o Canadá pela crise do fentanil, ao não controlar adequadamente sua fronteira ao tráfico da droga, que já matou milhares nos EUA.

• Com o México, também condicionou as relações comerciais à já fracassada “guerra contra as drogas”, como se o problema da demanda interna nos EUA fosse irrelevante, mas que, na verdade, mostra a incapacidade deste país de combater com eficácia o tráfico de drogas.

• Com a Dinamarca, propôs a compra da Groenlândia, território autônomo com população e governo próprios, rompendo com qualquer lógica geopolítica ou ética.

• Com a União Europeia, ele instaurou um ambiente constante de tensão, utilizando tarifas como forma de pressão política e manteve o rompimento com a OTAN no horizonte de possibilidades.

• E agora, no caso brasileiro, insinua que a liberação do ex-presidente Jair Bolsonaro — réu perante o Supremo Tribunal Federal — seria condição inescapável para melhorar o diálogo bilateral e permitir a negociação da tarifa absurda de 50% nas importações dos EUA.

Essa prática revela uma estratégia recorrente: lançar exigências impossíveis, que estão fora do campo técnico e do escopo da negociação. O objetivo não é obter concessões razoáveis, mas sim desnortear o interlocutor, colocá-lo em uma posição defensiva e deslocar o debate para uma lógica de força. É a negação do multilateralismo, que nunca foi fácil, mas que criou um marco legal para as negociações comerciais entre países.

Esta estratégia de Trump faz parte de um modelo de diplomacia de intimidação, que se ancora na assimetria de poder real, mas a explora por meio do absurdo e da extravagância retórica. Em lugar de buscar acordos estáveis, Trump prefere impor constrangimentos e chantagens, criando uma atmosfera na qual o outro lado não tem margem para negociação legítima, a não ser se submeter ao arbítrio e capitular.

No Brasil, é fundamental que se mantenham os princípios constitucionais e a autonomia das instituições. A sugestão — ainda que indireta — de que o presidente da República possa interceder em favor de um réu no STF para obter benefícios diplomáticos é inaceitável. Não há margem, em um Estado democrático de Direito, para que se negocie fora dos marcos da legalidade.

Ao contrário do que Trump tenta fazer parecer, não se trata de uma disputa entre vontades políticas. Trata-se de um limite institucional inegociável.

O Brasil deve se relacionar com os Estados Unidos — como com qualquer parceiro — com pragmatismo e responsabilidade. Mas sem jamais ceder à lógica da submissão ou da intimidação. É assim que se defende a soberania nacional.

Bolsonarismo alimenta separatismo

Depois da tentativa de golpe, o bolsonarismo namora a divisão do país. Vídeos nas redes exaltam estados fanatizados pelo ex-capitão, com autoelogios e provocações, espécie de preparação para uma guerra vizinha. Sedição em marcha. “Brasil acima de tudo”, como pensamento político, é um patriotismo vago e tosco, daqueles que não conseguem viver no mesmo espaço de seus adversários. Daí o ódio contra os nordestinos, de uma região não cooptada e descrita sob preconceito. Ordem do dia: “Rachar para reinar”.


O fracionamento do país é uma velha arma na política brasileira, sacada desde os primórdios, ali pelo Império. Ao norte e ao sul ocorreram movimentos separatistas, sob justificativas as mais diversas. Foram sempre combatidos pelo poder federal. No início da República, os miseráveis de Antônio Conselheiro apareceram pintados como monarquistas e, depois, ponta de lança de racha territorial. Era mentira — a fake news da época — para encobrir centenas de mortes de depauperados seres humanos, como está em “Os sertões”, de Euclides da Cunha, escritor e engenheiro militar que não se deixou enganar pela conversa dos companheiros de farda.

A manutenção da integralidade do território brasileiro nasce sob os portugueses, baseados na diplomacia e na luta por estabelecer a sua língua, e prossegue como dogma sob os militares brasileiros. Nacionalismo incentivado por Dom Pedro II e tornado bandeira a partir da Guerra do Paraguai.

Daí ser curioso bolsões bolsonaristas retomarem o tema separatista, no embalo da polarização e do rescaldo da derrota eleitoral de 2022 — apesar do uso criminoso da máquina estatal. Sem esquecer, por isso o espanto, que Jair Bolsonaro é capitão reformado. Um mau militar, segundo o general Ernesto Geisel, mas um tipo gerado em meio ao pensamento verde-oliva.

O delicioso “Rondon: uma biografia”, de Larry Rohter (o jornalista que Lula da Silva quis expulsar, ui), descortina movimentos curiosos no final da Monarquia e início da República. O marechal Cândido Rondon, figuraça, engenheiro militar e colega de Euclides da Cunha, com a missão de implantar o telégrafo no Centro-Oeste, passou maus bocados com elementos de sua tropa. Condenados por diversos crimes, de assassinato a roubos ou até a prosaica vadiagem, eram sentenciados a pagar suas penas em serviços militares. Lá iam para os cafundós e matas de Mato Grosso, sob as ordens de Rondon, bater estacas e puxar fios. Os bons e maus faziam as mesmas tarefas. Em documentos e cartas, com trechos reproduzidos no livro, o marechal lamenta a indisciplina e indolência de parte de seus comandados — rebelados e reticentes diante da hierarquia militar.

Bolsonaro (ainda) não foi condenado a prestar serviços, mas sua conhecida indisciplina, como a suspeita de planejar explodir dutos no Rio, guarda parentesco com os dissabores enfrentados pelo Marechal Rondon. Após um processo disciplinar, lembremos, ele foi reformado e deixou o Exército. Seu movimento se deu por conta de alegados baixos soldos, portanto, inconformado à sua maneira com o rito salarial. Se não tiver aumento, eu boto abaixo — hum.

O separatismo de seus correligionários poderia ser uma ferramenta de pressão, não tivessem perdido as eleições no voto majoritário. Mesmo assim, é um instrumento covarde de preconceito e clivagem, dado que não é incomum quem pense em separar o sul rico do norte pobre. Nos vídeos, os bolsonaristas se colocam como heróis da pátria, trabalhadores e vencedores incansáveis, artífices individuais do progresso e riqueza (embora não tenham produzido um Guimarães Rosa ou João Cabral de Melo Neto). Eles não se acanham ainda em propagandear um racismo difuso — o sangue branco, de origem europeia, é saudado como diferencial. Paraná e Santa Catarina — a região mais afoita — teriam atingido seus IDHs positivos por graça divina, independente do restante (e impostos) do país. O Nordeste, pelo raciocínio, seria miserável por preguiça e má intenção. Curioso esse patriotismo Brasil acima de todos os outros. Já pediram intervenção militar, agora incentivam o separatismo.

A política brasileira — vale dizer: não só aqui — trabalha sob o reflexo do maniqueísmo de raciocínio das redes sociais. O bem x mal. É a lógica da exclusão, do banimento dos contrários. Infelizmente, a polarização não ajuda, transformada em instrumento de manutenção de poder. O separatismo bolsonarista não difere da lógica lulista, naquele diapasão já afamado nos discursos — nós x eles ou ricos x pobres. Com vocês, o Brasil esquecido por todos.

domingo, 27 de julho de 2025

Pensamento do Dia

 


Agosto 1964

Entre lojas de flores
e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo num ônibus
Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho,
a noite em meio,
fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja.
Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases,
concretismo,
neoconcretismo,
ficções da juventude,
adeus, que a vida
eu compro à vista
aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos,
o verso sufoca,
a poesia agora
responde a inquérito
policial-militar.

Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo.
Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação,
da tortura, do horror,
retiramos algo e com ele
construímos um artefato
um poema
uma bandeira.

Ferreira Gullar, "Toda poesia"

Outros 'nós contra eles'

O discurso do “nós contra eles” é um truque político comum, um caminho previsível, que facilita reconhecer aliados e adversários. Serve para mobilizar bases e, sobretudo, esconder os donos das crises, da concentração de riquezas e da exploração ilimitada da natureza – os super-ricos.

Há no caso brasileiro uma pequena mudança no sentido do discurso. Se durante as eleições de 2022 adotou-se a rivalidade entre democratas e totalitários, voltamos ao inescapável conflito de classe entre ricos e pobres, ainda que consciência de classe seja artigo raro. É o retorno da assinatura dos primeiros governos petistas que, com os avanços e investimentos sociais, consolidou a imagem da legenda, ainda que pesem as acusações de corrupção.


Para parte da esquerda mais crítica e menos eleitoreira, é só discurso, e Lula nada mais faz que um governo de centro-direita, tese defendida até pelo ex-ministro José Dirceu. Para esses grupos, Lula barra o fascismo e ao mesmo tempo impede que reivindicações mais profundas e estruturais cheguem ao debate político. O exemplo de 2022 volta: a defesa da democracia, urgente na época, barrou a discussão de que democracia nós queremos. Mesmo assim, enfim o presidente abraçou a defesa da taxação dos ricos e o fim da escala 6×1, pautas urgentes, que incitam respostas violentas no país dos privilégios.

O aconteceu em Torre Pacheco, cidade da região de Murcia, na Espanha, corrobora com o argumento do primeiro parágrafo. Em 9 de julho a mídia espanhola divulgou o caso de um idoso foi brutalmente agredido por “jovens que falavam língua estrangeira”. Alimentados pelo discurso de ódio da extrema-direita, no caso do partido Vox, grupos organizados pelas redes sociais iniciaram na cidade uma “caça a imigrantes”, definição oferecida pelo ministro do Interior espanhol. Armados com paus ou barras de ferro eles vêm assombrando as noites da cidade em busca de pessoas de origem norte-africana.

Vai explicar que imigrantes não roubam empregos, porque simplesmente eles ocupam as vagas com menores salários em trabalhos agrícolas e serviços pesados e que, segundo a OCDE, imigrantes contribuem mais em impostos do que recebem em benefícios sociais. E que a invasão de árabes e africanos se traduz em uma taxa de 6% de população da UE (dados de 2023), que se mantém nos últimos anos. Esse discurso aponta um culpado para a precarização do trabalho, dos sistemas de saúde e educação, pelo desemprego entre jovens, pela concentração de renda, pela falta de representação em democracias dominadas pelo mercado. E que as feridas abertas do colonialismo e a violência do neocolonialismo sejam esquecidas.

Ainda que tenha o racismo comum, é um fenômeno diferente do “nós contra eles” sionista, que constrói e cultiva o ódio aos árabes. Um movimento europeu que também se aparta dos judeus que já viviam naquelas terras. São todos outros. Há mais de sete décadas, uma política sistemática de tomada de casas e assassinatos. É evidente que ninguém quer a morte de civis de ambos os lados. Mas o que resta para os oprimidos quando não há diálogo? Ao fim, os ataques terroristas alimentam o discurso nacionalista da extrema-direita.

‘Em Gaza, acontece um dos processos de desumanização mais rápidos da História”, dizem os autores de ‘Um léxico da brutalidade’, o sociólogo Assaf Bondy e o historiador Adam Raz. Eles reuniram cerca 150 palavras e expressões cotidianas, como “despovoamento” ou “animais humanos”, que ajudam a justificar o genocídio. E validar a manutenção do poder da extrema-direita e sua agenda expansionista. E fortalecer a presença dos EUA na região.

Ao recordar os primeiros governos Lula, seu “nós contra eles” é um discurso eleitoral de um mandato sem rosto que, pressionado pelo centrão e pela extrema-direita, deu uma piscada à esquerda. Na Espanha, como em boa parte da Europa, arregimentar os descontentes e desesperançados para que a estagnação prevaleça enquanto a extrema-direita se fortalece. Em Israel, unir o país contra os palestinos para esconder que o verdadeiro inimigo é interno.

O ‘fascio’ do Tio Sam

Agora, quem usa a palavra “fascismo” para se referir ao governo de Donald Trump é Robert B. Reich, um intelectual sem nenhum histórico de surtos esquerdistas. Longe disso, Reich tem uma trajetória de ponderada coerência. Advogado, foi secretário do Trabalho (cargo equivalente ao de ministro no Brasil) durante o governo de Bill Clinton, de 1993 a 1997. Era cordial e atencioso no trato com jornalistas – brasileiros, inclusive. Reich foi também professor de Políticas Públicas em Berkeley. Hoje, aposentado, segue em destaque como autor de livros, alguns deles best-sellers e como articulista frequente em jornais e revistas como The New York Times, The New Yorker, The Washington Post, The Wall Street Journal, e The Atlantic. Sua voz não costuma ceder a radicalismos e destemperos.


Pois esse sujeito, lúcido e sensato, publicou no início do mês, em sua newsletter com mais de um milhão de assinantes, uma crítica ácida à lei orçamentária que o presidente dos Estados Unidos conseguiu aprovar no Congresso. Reich diz que o pacote vai tornar “os Estados Unidos mais cruéis” do que já são. Não é para menos. A peça orçamentária retira mais de US$ 1 trilhão do Medicaid (assistência médica pública). Até 2034, vai condenar ao abandono um contingente de 12 milhões de americanos. Além disso, providencia uma substanciosa redução de impostos para os mais ricos e turbina o caixa das ações militares de combate à imigração.

O sadismo é tanto que Robert Reich compara Donald Trump com os chamados “homens fortes da década de 1930 – Hitler, Stalin, Mussolini e Franco”, e conclui: “O fato de uma legislação tão regressiva, perigosa, gigantesca e impopular ter sido aprovada no Congresso demonstra o quanto Trump arrastou os Estados Unidos para o fascismo moderno.” O parlamento abaixa a cabeça à prepotência do Executivo. A Suprema Corte, pelo que se vê, tomará caminho parecido. Fascismo é a palavra.

Não foi por falta de aviso. Há cinco anos, num longo artigo publicado no New York Review of Books, Sarah Churchwell, professora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Londres, definiu, logo no título, o resumo do primeiro governo Trump: “Fascismo americano: aconteceu aqui”.

Depois de registrar que o presidente andara posando com uma Bíblia na mão, Bíblia que nunca leu, a autora lembrou um velho ditado: “Quando o fascismo chegar à América, estará envolto na bandeira e carregando uma cruz”. Ela alertou que a frase, comumente atribuída a Sinclair Lewis, tem sua origem mais provável nos discursos de James Waterman Wise, filho do rabino Stephen Wise. Há quase um século, James Wise avistou o perigo e antecipou: o fascismo chegaria às terras do Tio Sam “embrulhado na bandeira americana ou em um jornal de Hearst”.

William Randolph Hearst, ganancioso e narcisista, foi o magnata da imprensa retratado com genial mordacidade no filme Cidadão Kane, de Orson Welles, lançado em 1941. Aos olhos de Wise, a América de Hearst desejava o fascismo, mas de um tipo diferente. Bingo: no paraíso das celebridades, do consumismo pantagruélico, do entretenimento fútil e do glamour aloirado, a tintura capilar de Marilyn Monroe ganhou uma estranha ressurreição sobre o cocuruto de Donald Trump e as piores vocações autocráticas encontraram seu ponto de equilíbrio – um equilíbrio meio desequilibrado, por definição.

Há algo de imperialista na fórmula, como comprovam as ordens do inquilino da Casa Branca para que fossem revogados os vistos de ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Os Estados Unidos, hoje, assumem a forma de um regime arrogante que confere ou retira autorizações de viagem não mais segundo normas impessoais, como recomenda o melhor Direito Internacional, mas segundo as manias irracionais do chefe. Absolutismo é pouco. O que estamos vendo lá é um fascismo tipo exportação.

Muitas outras características trumpeteiras ecoam os “homens fortes da década de 1930 – Hitler, Stalin, Mussolini e Franco”. O imperador blonde faz uso do aparato policial público para perseguir desafetos privados, copiando práticas adotadas do nazismo e do fascismo históricos. Em seu livro clássico Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt apontou esse traço distintivo quando descreveu as ditaduras do Duce, na Itália, e do Führer, na Alemanha. Trump, hoje em feitio desarvorado, replica o mesmo traço: mobiliza tropas estatais para reprimir e prender estudantes desarmados, ameaça escritórios de advocacia que abracem causas incômodas aos seus interesses e veta a presença dos jornais de que não gosta na cobertura dos atos de governo.

Não, isso não é democracia. Isso não é nem mesmo um autoritarismo que procura se disfarçar de democracia. Isso é convulsão institucional prestes a se assumir como ditadura escancarada. Isso é um poder que, de forma consciente, deliberada e ostensiva, dispara ataques sucessivos contra as democracias organizadas do mundo. O Tio Sam empunha o fascio e o Brasil é só mais uma de suas vítimas. O estrago político será maior do que o descalabro econômico.

Milícia bolsonarista lutará pelos EUA

Esta é a última coluna antes do dia 1º de agosto, quando Donald Trump, se não tiver sofrido impeachment por acusação de pedofilia, taxará os produtos brasileiros em 50%. A culpa pelos danos causados ao Brasil será inteira dos bolsonaristas. Mas eles não estão no controle: são apenas os cúmplices e o álibi de uma guerra que Trump trava contra o Brasil para cometer seus próprios crimes e dar seus próprios golpes.

Trump impôs tarifas mais altas sobre o Brasil do que sobre os outros países porque só aqui ele conta com um exército de quintas-colunas —os bolsonaristas— que lutarão ao lado dos Estados Unidos para saquear o Brasil.

Se Putin pudesse contar com algo parecido na Ucrânia, já teria vencido a guerra.


Trump quer quebrar nossos setores mais modernos, o agronegócio, a Embraer, o Pix, que competem com empresas americanas. Também quer roubar nossas terras raras, minérios importantes para a produção de itens de alta tecnologia.

Percebeu que podia fazer isso tudo com apoio, ou ao menos a inação covarde, de cerca de 30% da população brasileira, da bancada bolsonarista no Congresso e de governadores importantes que puxam o saco do Jair.

Pareceu um gol aberto, ele chutou.

A turma do Jair nos Estados Unidos age como se estivesse no controle dos acontecimentos. Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo comemoram o saque das riquezas brasileiras, sofrem de delírios de grandeza e sonham com um novo golpe.

Em um vídeo de maio deste ano, vemos Figueiredo sonhando que será ministro da Defesa em 2027 para perseguir os generais que não apoiaram o golpe de Jair Bolsonaro (os "filhas das putas", segundo ele). Afirma que empregaria o general Tomás Paiva, atual comandante do Exército brasileiro, como seu ajudante de ordens. Após "cagar em uma mala", forçaria o general a carregá-la por 15 dias, antes de lhe dar baixa desonrosa. Em sua fantasia, as pessoas gritariam "Paulo Figueiredo, eu autorizo" como gritavam para Jair.

Mas nem ele nem Eduardo estão no comando. Figueiredo é só a versão Pinochet de George Santos, aquele picareta que falsificava cheques em Niterói, virou deputado nos Estados Unidos e foi preso dias desses. Eduardo é o que o rapper Oruam, filho do traficante Marcinho VP, seria, se o Comando Vermelho estivesse queimando empresas brasileiras com os empregados dentro até que Marcinho fosse solto.

Pelo critério que a direita brasileira sempre usou contra a esquerda, os dois partidos bolsonaristas, PL e Novo, já deveriam ter perdido seus registros. Pelo artigo 28, inciso 2 da Lei dos Partidos Políticos, o partido pode perder o registro se estiver "subordinado a entidade ou governos estrangeiros", como PL e Novo evidentemente estão subordinados ao governo Trump.

Foi essa a desculpa para cassar o registro do Partido Comunista Brasileiro em 1947: o partido seria subordinado a Moscou. Sessenta anos depois, o deputado de direita José Carlos Aleluia (DEM-BA) pediu a cassação do PT alegando que o partido seria submisso ao Foro de São Paulo.

Não quero cassar registro de ninguém, porque sou mais democrata que a direita brasileira. Mas nem Moscou nem o irrelevante Foro de São Paulo jamais fizeram contra o Brasil o que os Estados Unidos de Trump estão fazendo com a cumplicidade dos bolsonaristas.

A PL da devastação e nossas elites dirigentes

O Projeto de Lei 2159/2021, aprovado na madrugada do dia 17/07/25 pelo Congresso, evidencia os limites da economia de mercado e a falta de visão de longo prazo das elites dirigentes do país. Também revela a fragilidade do governo em defender com mais firmeza a pauta ambiental e a proteção da Amazônia.

Ao observar o PL da Devastação vemos que ele flexibilizou ao extremo as regras para licenciamento ambiental sacrificando critérios científicos e racionais em prol dos setores mais predatórios e irresponsáveis da economia brasileira (conforme reportagem da Revista Cenarium).


Uma das grandes contradições da economia de mercado reside na sua incapacidade de olhar a longo prazo para os recursos naturais. Isso se deve ao fato de que o modo de produção capitalista precisa se expandir para se manter vivo. Os outros modos de produção surgidos de fricções históricas anteriores (modo de produção asiático, modo de produção feudal, modo de produção antigo) eram finitos em seus pressupostos: encontravam sempre uma barreira que os levavam à crise. O capitalismo, por sua vez, não possui quaisquer barreiras. Ele dobra-se sobre si mesmo ou avança sobre dimensões da vida que deveriam ser preservadas da dinâmica de mercado: direito à saúde, educação, o direito de viver numa sociedade de meio ambiente limpo e preservado.

Há uma outra questão a ser levada em conta. Nossas elites dirigentes e econômicas foram moldadas, desde o século XVI, por um modelo de sociedade e governabilidade voltado para fora. Baseado na exportação de produtos primários, o Brasil se formou a partir do grande latifúndio exportador e altamente predatório. Tal peculiaridade fez com que o país sempre tivesse dificuldades para equilibrar a balança comercial no mercado internacional, vendendo produtos primários e comprando industrializados, precisando devastar cada vez mais para aumentar a produção. Forma-se todo um ecossistema de interesses políticos, ideológicos e econômicos em torno dos interesses mais reacionários e antimodernos da sociedade brasileira. 


A emancipação política de 1822, não alterou totalmente tal esquema de coisas. O Brasil nunca teve colônias, mas praticou colonialismo interno sobre suas regiões distantes dos litorais e dos centros urbanos: 1) lugares supostamente ermos, que deveriam ser explorados a todo custo, sem que as consequências ambientais e sociais fossem levadas em conta. 2) regiões cuja população pobre foi remanejada sem critérios para a região amazônica.

Dentro deste cenário de eventos temos a formulação de uma elite das mais irresponsáveis, predatórias e privatistas já criadas. Os direitos à cidadania são vistos como privativos por e para elas. Aqueles que vivem na base da pirâmide seriam merecedores do seu lugar de miséria por escolha própria ou como vontade de deus e do destino. Nossas elites dirigentes sofrem daquilo que Florestan Fernandes chamou de resistência sociopática à mudança: as tensões sociais devem ser tratadas a partir de cima para baixo, com o uso da força. Nunca com o uso do diálogo e da conciliação, este reservado apenas aos conflitos entre as frações de classe dos próprios grupos dirigentes.

Quando olhamos para a história do Brasil e da formação das suas elites, não chega a surpreender que tal projeto de lei passe. Antidemocrática, colonialista, voltada para interesses externos e incapaz de pensar para além do seu interesse de curto prazo, são tão distantes do restante do povo brasileiro que acreditam que a cidadania e os interesses do país iniciam e terminam com elas.

As mudanças climáticas já são uma realidade. O Nordeste vive um processo de desertificação, as secas na Amazônia se tornam mais frequentes e severas e os índices pluviométricos do pantanal já são menores. E nossos políticos, influenciados por grupos de pressão e atendendo a pautas de quem eles realmente representam, parecem viver numa realidade paralela, fruto de ideias paralelas…
Ricardo Kaate Lima

O rato que ruge

O rato que ruge é uma comédia britânica, de 1959, simples e direta. Um país que depende da exportação de vinho para os Estados Unidos subitamente encontra poderoso concorrente. Na Califórnia, surge um produto com nome semelhante e preço mais baixo. Para evitar a falência, este pequeno país declara guerra aos Estados Unidos com objetivo de ser derrotado e conseguir expressivos ganhos com sua derrota, como ocorreu com o plano Marshall na Europa ocidental. Ou, com outro exemplo mais recente, o Vietnã.

A crítica é muito inteligente e atual no filme dirigido por Jack Arnold, baseada no livro homônimo de 1955 do escritor irlandês Leonard Wibberley. A história cria um país fictício na Europa, na fronteira entre França e Suíça, chamado Grão Ducado de Fenwich. O ator principal é o formidável Peter Sellers, que faz três papeis no filme. A atriz é Jean Seberg. A invasão dos Estados Unidos, por intermédio de um exército de vinte e dois soldados, armados com arcos e flechas, é hilariante. O comandante é míope. Naturalmente, tudo resulta em equívoco monumental.


Mas, o pior acontece. O pequeno reino, por uma série de circunstâncias, vence a guerra e o governo dos Estados Unidos oferece a paz e o pagamento de um milhão de dólares. A história é uma grande ironia com a política externa dos Estados Unidos, o que o torna muito atual. Antes de declarar guerra, o pequeno ducado tentou negociar com Washington, mas não obteve qualquer resposta. Só restou a guerra como alternativa. O fato é que o filme se parece muito com a situação brasileira em sua atual relação com o governo de Washington.

O presidente Donald Trump fez 31 reuniões na Casa Branca para tratar da questão das tarifas externas. Ele recebeu mais de vinte chefes de estado. Lula nunca foi lembrado para participar das reuniões. Não enviou nenhuma sinalização para o Brasil. Sequer respondeu a carta enviada em maio passado. Trump não é imprevisível como afirmam os comentaristas. Ele estica a corda como jogador de pôquer, faz o primeiro lance alucinado e obriga o competidor a entrar no jogo. Não há como ignorá-lo. Como o Brasil é grande demais para tentar fazer a guerra e perder, a única alternativa restante é aguardar, com a calma necessária de bom jogador, o momento de apresentar suas cartas e argumentos. Segundo os melhores analistas norte-americanos, Trump vai negociar, no seu tempo.

A política norte-americana em relação às Américas nunca foi muito sutil. A América para os americanos, dizia a doutrina Monroe. O então presidente norte-americano queria impedir que as potências europeias recolonizassem suas posses no Novo Mundo. Na América Central, a política de Washington invadiu à vontade. Baixou o cacete. O melhor exemplo vem da Guatemala, em 1954. Um golpe militar de Carlos Castillo Armas, apoiado pela CIA, derrubou o governo progressista de Jacobo Árbenz. O argumento para o golpe foi que o presidente deposto planejava facilitar a entrada do comunismo soviético no continente. Na verdade, o presidente deposto pretendia cobrar impostos da empresa bananeira, que operava no país.

No Brasil, no Chile, no Uruguai, na Argentina, na Colômbia (criação do Panamá) os norte-americanos se divertiram derrubando governos democraticamente eleitos. Sempre houve a preocupação de manter o quintal de Washington sob controle. Agora ocorre a novidade da presença muito forte dos chineses na região e da relativa diversificação dos mercados. Hoje o momento é diferente daquela época em que predominava o maniqueísmo. Moscou comunista não há mais. E Cuba vive em racionamento de energia e alimentos. Mas existência de Trump, com suas ideias mercantilistas do século 19, é um retrocesso de bom tamanho.

Do ponto de vista da política interna, Lula recebeu um inesperado presente de Trump. Ele pode esticar a corda da negociação, uma vez que o prejuízo já está precificado pelos empresários. Todos sabem que o país vai perder, haverá desemprego e o agronegócio, principal atividade econômica do país, será fortemente atacado. Este grupo, curiosamente reúne o maior bloco de apoio a Bolsonaro no país. Trump deu prestígio a Lula que voltou a ser o líder nacionalista de outros tempos, e prejudicou a oposição que passou a ser percebido como o grupo de traidores da Pátria e criadores de uma enorme onda desemprego.

Trump anuncia acordos com Japão, Filipinas e Indonésia. Já havia avançado negociações com a comunidade britânica. Mas Canadá. México, e Brasil, estão na lista de espera. Pode causar alguma angústia, mas os brasileiros vão procurar novos parceiros e amadurecer na política externa. Discursar no Palácio de La Moneda, em Santiago do Chile, como Lula fez semana passada, ofereceu a chance de revisitar o local da morte de Salvador Allende, em setembro de 1973. Mas o momento atual é de falar menos e agir mais.

Dica: O rato que ruge está disponível no youtube. Vale a pena.

As palavras que nos faltam

Todos os dias nos deparamos com neologismos tecnológicos: algoritmo, metaverso, blockchain etc. A revolução tecnológica em curso sabe como apelidar as suas criações, ainda que raramente estas palavras sejam traduzidas, ou melhor, reinventadas, para a nossa língua. Instalam-se no nosso idioma, e no nosso pensamento, sempre em inglês, com a arrogância e a determinação dos colonos israelenses nos territórios ocupados.

Não obstante, creio que a turbulência que enfrentamos tem muito a ver com uma insidiosa crise lexical. Temos dificuldade em compreender os tempos atuais porque, antes de tudo, nos falta vocabulário. Como podemos produzir pensamento — filosofias, ensaios, teorias, explicações — se ainda nem sequer fomos capazes de inventar palavras capazes de exprimir as perplexidades, angústias, inquietações, e outros sentimentos esquivos e complexos, que, de repente, estamos experimentando, com a violência de quem toma um soco no nariz?

Como nomear os novos assombros éticos?

Não inventamos ainda uma palavra capaz de traduzir a dor, a repulsa, a indignação, o desespero — tudo isso junto — diante dos crimes abomináveis que Israel está cometendo em Gaza.

Que nome dar ao amplo movimento de retorno à barbárie que, com epicentro na Casa Branca, em Washington, vem alastrando por todo o mundo?

Que nome dar ao espanto agoniado, que é mais do que apenas espanto, ou apenas desgosto, com que assistimos à institucionalização da mentira, da vilania, da brutalidade em todas as suas múltiplas formas?

Que nome dar à específica “nostalgia da tortura”, manifestada em público por pessoas como Jair Bolsonaro?

Que nome dar ao sentimento de frustração, de tristeza, de incredulidade, que muitos de nós experimentam testemunhando o recuo dos ideais democráticos?

Há alguns anos chamávamos “desumanidade” a várias formas de barbárie, e essa única palavra cumpria a sua função — a de estarrecer as almas plácidas — com razoável sucesso. Entretanto, foi enfraquecendo. Adoeceu por excesso de trabalho, sendo convocada, a todo o momento, para enfeitar relatórios e noticiários. Não inquieta mais. Precisamos substituí-la por um outro termo, urgente como uma ambulância, afiado como uma adaga, e capaz de uivar sem perder o rigor.

Talvez tenhamos de resgatar profundos arcaísmos, cheirando a mofo e a sangue, que deixamos de usar, à medida que abandonávamos as gargalheiras, os polés, os troncos e os patíbulos. Palavras como estólido (do latim stolidus — obtuso, grosseiro. Muito usada no século XVIII), protervo, nefando, aleivado ou sátrapa. Todas elas se aplicam com justiça e propriedade a sujeitos como Donald Trump.

Quando a realidade se torna inconfiável, só a palavra — justa, exata, certeira — tem poder para a restaurar. Não havendo palavras adequadas, teremos de as inventar. A crueldade prospera no silêncio. A civilização — ou, pelo menos, a gentileza, a nobreza, a empatia — recomeçará através de uma língua reinventada, feroz e refulgente.
José Eduardo Agualusa

sábado, 26 de julho de 2025

Pensamento do Dia (todo)

 


Batalha campal

Somos o campo de testes de uma disputa global que tem o potencial de definir um novo mapa do poder nas relações internacionais. Nas últimas duas semanas, a ofensiva do governo de Donald Trump contra o Brasil não ocorreu por uma questão tarifária. Não estão em jogo nem o café nem o suco de laranja. Esses são danos colaterais.

Abalar a estabilidade de um governo democraticamente eleito é o principal objetivo de um movimento que precisa retirar de seu caminho forças progressistas e emergentes para costurar uma nova ordem mundial que perpetue e renove sua posição de força. A autonomia do Brasil, portanto, é intolerável. Inclusive perigosa, caso outros emergentes a usem como modelo. Desmontar a oposição que o País representa aos interesses de Trump cumpre duas funções estratégicas.


A primeira delas é a de permitir que uma operação de grande envergadura para restabelecer a hegemonia norte-americana no mundo e frear a China possa vingar. Robert Lighthizer, o assessor extraoficial do departamento de Comércio de Trump e mentor das tarifas da Casa Branca, resumiu como poucos o que a China representa: “Uma ameaça existencial aos EUA”.

Para a Casa Branca, isso passa necessariamente por voltar a poder chamar a América Latina de quintal. Desde que voltou à Presidência, Trump sinalizou que recuperar a zona de influência entre os vizinhos ao Sul do Rio Grande era uma prioridade, recuperando o espaço que hoje é, em parte, da China. Assim, Washington passou a chantagear o Panamá, forçou entendimentos com países da América Central e Caribe, costurou apoios com Equador, Guiana, Paraguai e Argentina. E, de forma estratégica, busca agora influenciar diretamente as próximas eleições no Chile e na Colômbia. Mas nada disso terá um resultado concreto sem o Brasil.

Há, no entanto, uma segunda disputa travada e ela é ideológica. Nos últimos dias, ao abrir mão do interesse nacional, da renda dos brasileiros e da própria democracia em troca de um apoio externo para proteger seu clã, o bolsonarismo foi desmascarado. Também ficou evidente que não se trata de um grupo isolado. Tea­tralizadas, as demonstrações de líderes ultraconservadores confirmaram, uma vez mais, a existência de uma aliança internacional de uma força política que, ao longo dos últimos anos, costurou uma estratégia globalizada para chegar e se manter no poder.

Um dos líderes que saíram no apoio do ex-presidente brasileiro foi o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. “Continue lutando, Jair Bolsonaro! Ordens de silêncio, proibições de redes sociais e julgamentos com motivação política são ferramentas de medo, não de justiça”, disse o líder húngaro nas redes sociais. No começo de 2024, Bolsonaro passou dois dias na Embaixada da Hungria em Brasília. O movimento ocorreu dias depois de ele ter seu passaporte retido pela Justiça, que o investigava pela trama golpista. O apoio também veio da extrema-direita polonesa, que agora pede sanções na Europa contra Alexandre de Moraes. Na Itália, Matteo Salvini disse que Bolsonaro é um “perseguido pela Justiça de esquerda”. Na Espanha, foram os herdeiros intelectuais e políticos do ditador Francisco ­Franco que saíram ao resgate do brasileiro.

Em todos os casos, as palavras de apoio se repetiam de forma calculada. Como se tivessem sido ensaiadas. O movimento ultraconservador no mundo sabe o que está em jogo no Brasil. E não é a sobrevivência política de um ex-presidente indiciado por golpe de Estado. O que está em jogo é seu projeto de poder.

Se a extrema-direita mundial sempre teve um plano, dinheiro e objetivo, agora também tem um líder com uma bomba atômica, com o maior mercado do mundo e determinado a reverter uma sensação de decadência de um império. Não poderia ser mais perigoso.

Num mundo onde a velha ordem internacional se desfez e na qual uma disputa­ pelo poder é travada a cada dia para determinar quais serão as regras que vão reger as próximas décadas, o que está sendo desenhada é a fundação de uma geografia do poder.

Seja pela busca norte-americana por hegemonia, seja pela disputa ideológica de um grupo que quer refundar a sociedade a partir de um novo parâmetro ultraconservador, a realidade é que o embate, neste momento, está ocorrendo em nossa democracia.

Os golpes enviados desde Washington e ecoados por traidores testam os alicerces de uma sociedade e os parâmetros da civilização.

No país, a disputa é por onde passam a linhas não tão imaginárias das fronteiras de zonas de influência e da definição de soberania.

No Brasil, portanto, disputa-se neste momento o século XXI.

Antidemocrático e antipatriótico

As recentes sanções aplicadas pelo governo de Donald Trump às exportações brasileiras e a algumas de suas principais autoridades do sistema de Justiça, para além dos efeitos econômicos imediatos, tornaram mais claros certos aspectos do bolsonarismo. Embora, para os mais atentos, menos crédulos ou avessos ao cinismo, tais traços fossem óbvios, eram ainda minimizados por muita gente.

Um desses elementos é o caráter embusteiro do patriotismo bolsonaresco. Jair Bolsonaro inúmeras vezes alardeou sua disposição de dar a vida pelo País, contudo, quando surgiu a oportunidade (não de dar a vida, mas de demonstrar alguma preocupação com o Brasil) o que ele e seu filho 03 fizeram foi exatamente o contrário: atuaram para sacrificar a nação em prol de seus próprios interesses. Tão logo Trump publicou a carta aberta a Lula em rede social, anunciando sanções e as justificando pelo inconformismo com o processo no qual Bolsonaro é réu, o filho Eduardo foi rapidamente a público jactar-se pelo sucesso de seu lobby antinacional nos Estados Unidos.


Nisso, pai e filho não se viram sozinhos. Políticos bolsonaristas de berço, como Tarcísio de Freitas, ou que se alinharam ao movimento extremista já como veteranos na vida pública, como Ronaldo Caiado, aliviaram para o clã Bolsonaro, imputando ao governo Lula a responsabilidade pelo achaque trumpista. Para eles, Lula e o PT serão sempre culpados de tudo, enquanto Bolsonaro é um poço de virtudes republicanas. Tão longe foi o governador de São Paulo na tentativa de imputar ao governo federal a responsabilidade exclusiva pelas sanções, que Eduardo Bolsonaro incomodou-se e acabou reclamando. Onde já se viu atribuir a Lula e não a ele e seu diligente trabalho em Washington os louros da extorsão que nos é imposta por Trump?

Assim tornou-se evidente um segundo aspecto do movimento de ultradireita: “bolsonarismo moderado” é uma quimera, pois mesmo os aparentemente mais comedidos integrantes do grupo acabam se juntando às manobras extremistas. Ter compromisso com Bolsonaro implica comprometer-se com o extremismo que o caracteriza, pois não há como integrar um movimento político desse tipo sem chancelar suas práticas. Portanto, a lealdade ao bolsonarismo tem como corolário inescapável a deslealdade para com a democracia – e, como fica claro agora, para com o próprio País.

Da árvore bolsonarista não brotam frutos patrióticos. Os eventos recentes mostraram o acerto da alcunha de “patriotários” aplicada à malta bolsonaresca por seus detratores. Seja como massa de manobra e bucha de canhão nos acampamentos golpistas e na intentona do 8 de Janeiro, seja como manada de eleitores iludidos pelo verde-amarelo dos uniformes em manifestações de rua, o segmento bolsonarista da sociedade esteve todo o tempo a serviço – antes de qualquer outra coisa – de um empreendimento político familista. Bastaria observar a trajetória pregressa dos Bolsonaro para perceber isso, mas muita gente deixou-se encantar pelo “mito”. E, como sabemos, mitos podem ser fascinantes, mas são ficções.

Essa árvore também não dá frutos democráticos. Ao contrário, sempre operou contra a democracia. Foi assim na longa trajetória parlamentar de Bolsonaro e seus filhos: nos elogios à ditadura, no louvor à tortura e à eliminação física de opositores, nas declarações e atitudes ultrajantes, na defesa da violência policial e das milícias, na descompostura como modo de ser e de viver. O empreendimento político bolsonaresco nutriu-se do ressentimento para com o regime democrático e no cultivo de sua negação. Isso não mudou com a chegada à Presidência, ao contrário, piorou, pois, a partir dessa posição de poder, o bolsonarismo pôde usar recursos inauditos no ataque à democracia.

Durante seus quatro anos, atuou diuturnamente para minar o funcionamento das instituições do Estado Democrático de Direito e para envenenar o ambiente político como um todo, radicalizando a polarização numa dicotomia amigo-inimigo voltada à sujeição e exclusão dos não alinhados – no limite, à sua aniquilação. A direita supostamente moderada, ao aliar-se com o bolsonarismo, mostrou sua condição de semilealdade com a democracia, para usarmos aqui a noção do falecido politólogo espanhol Juan Linz. A semilealdade revela uma classe política para a qual a democracia é apenas uma das possibilidades postas e será preservada apenas se convier. Caso não convenha, será sacrificada em prol da permanência no poder com o consequente gozo de suas benesses. Do Centrão não virá proteção.

A permanência da pobreza

“Não há impulso político para a superação de algo que é visto como crise, e não como tragédia”

Um dos maiores erros do século XX, além da criação da bomba atômica, foi vincular o tema da pobreza à economia, como se a tragédia fosse apenas problema de renda, e não questão de fundo moral e de gestão pública. A escravidão só foi derrotada quando passou a provocar horror e indignação entre os não escravizados. Por ser apenas falta de renda, a permanência da pobreza não causa indignação moral, apenas incômodo passageiro, o que faz aceitável a existência de pessoas famintas, crianças sem escolas de qualidade, famílias morando na rua ou em casas sem saneamento. Perde-se naturalmente impulso político para a superação do que é visto como crise, e não como tragédia.


A abolição da escravidão só avançou quando houve comoção moral, como ocorreu na Inglaterra, graças sobretudo à luta de William Wilberforce. Em Flores, Votos e Balas, Angela Alonso mostra que no Brasil isso aconteceu após 1880, quando foi travada uma luta moral que converteu a consciência escravocrata nacional em abolicionista. Mas não tivemos líderes que indignassem a sociedade diante da constância da pobreza. É como se, na época da escravidão, os defensores da liberdade restringissem sua bandeira ao aumento da renda dos escravizados, para emancipar alguns, sem abolir de vez a escravatura; ou se Nelson Mandela se contentasse com programas de cotas e bolsas universitárias para fazer os negros sul-africanos serem aceitos como brancos, sem extirpar o apartheid.

Hoje, é preciso transformar a convivência com a pobreza em uma nova consciência: a da segunda abolição — justamente a da pobreza. Para tanto, devemos superar a visão economista, que é a da pobreza entendida como mera escassez de renda, e não como a privação do acesso à cesta de bens e serviços essenciais à vida. Após décadas de crescimento econômico, a sociedade não sentiu indignação moral diante da continuidade do quadro de pobreza. Tampouco compreendeu que sua superação não virá automaticamente com o crescimento do PIB e a expansão da renda social, como se isso garantisse a cada brasileiro pobre o acesso pleno àquilo que necessita — saúde, educação, segurança.

Se houvesse verdadeira indignação, e ela se traduzisse em mobilização política, a pobreza não resistiria a poucos anos de uma estratégia social focada em erradicá-la. Para isso, é preciso transformar a tolerância em indignação e formar uma consciência pela segunda abolição — a da pobreza. A simples distribuição da carga fiscal na arrecadação é necessária do ponto de vista moral, mas ela não erradicará a pobreza se os recursos arrecadados não forem usados para garantir a oferta pública dos bens e serviços cuja ausência define a pobreza. Ela continuará existindo se os recursos da justiça tributária forem dragados por corrupção, mordomias, salários milionários ou investimentos que beneficiam apenas o “andar de cima”.

A justiça fiscal só será abolicionista se for utilizada para financiar o acesso de todos aos bens e serviços públicos essenciais, especialmente para implantar um sistema nacional público de educação com qualidade e equidade, capaz de elevar a produtividade da economia, aumentar a renda nacional, promover sua distribuição e induzir participação política na direção de romper o círculo vicioso que faz a permanência da pobreza.