quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Ei, você. Sim, você. Você existe mesmo?
Improvável leitora, improvável leitor. Tento imaginar seus olhos percorrendo estas mal digitadas linhas. Visualizo suas pupilas indo e vindo, despertas, acesas. A cena me comove. É de manhã. Nas suas mãos, um jornal de papel se abre sobre a mesa. O cheiro de café aquece o seu entorno. Torço para que você não desista do meu artigo já neste primeiro parágrafo, mas me falta convicção. Por motivos que vou explicar, você é um ente que some na bruma da História. Em tempo: você ainda está aí?
Sob o risco de pedantismo, lembro uma passagem de Hegel que tem sido citada amiúde. Num dado momento entre 1803 e 1805, o pensador da dialética anotou que a leitura do jornal seria uma “oração matinal realista”, ou, em outra versão, a “oração matinal do homem moderno”. Penso nisso quando penso em você.
Hegel sempre teve parte com a razão. Nessa nota em especial, tinha razão de sobra. Há dois séculos, o noticiário e os artigos de fundo davam o contexto em que se movia o cidadão da modernidade, esse amuleto da utopia liberal. Acima da palavra de Deus, o cidadão descrito por Hegel valorizava os fatos e os argumentos. Com base nas informações do dia, calibrava sua postura diante dos dilemas da política e dos impasses do mercado. Lendo as folhas impressas, ele se localizava.
Hoje, quando um motoqueiro empurra o exemplar de um diário para dentro da sua caixa de correio, alguma coisa do século 19 acontece no seu portão. A simples existência de alguém que toma pé dos acontecimentos antes de pôr o pé para fora de casa faz perdurar entre nós um resto do iluminismo. Um resíduo mínimo: esse alguém se tornou uma raridade. Nos nossos dias, uma pessoa com esse perfil, mais do que improvável, é uma relíquia de um realismo cívico pretérito, quase uma peça de museu.
Os meios impressos também tornaram-se uma raridade, mas isso não revoga a fórmula de Hegel. Você, desde que existente, pode muito bem ver as notícias numa tela de celular e, ainda assim, encarnar o “homem moderno” ou a “mulher moderna”. A única diferença é que, se você for mesmo um leitor ou uma leitora digital, a probabilidade de seus olhos terem me seguido até aqui se reduz impiedosamente. Na internet, o leitorado escapole na primeira vírgula. Um raciocínio mais longo, num arco de abstração estendido, como este meu aqui, espanta afreguesia. Jamais será trending topic. Na ciberesfera, a pressa aumenta e a paciência diminui. Falando nisso, cadê você?
Nenhum jornal do presente esconde a saudade dos leitores idos. A audiência debanda, e em ritmo acelerado. O discurso jornalístico, essa língua exótica falada pela imprensa, carece de olhos. O público invocado pelas manchetes não está mais aqui. Nem aí.
Se você olhar para a primeira página do seu jornal – ou para a home na tela do computador, tanto faz – vai notar que tudo ali parece gritar à procura de alguém em estado de inabalável prontidão cidadã: alguém que não se cansa de fiscalizar o poder, de protestar a todo fôlego e de exigir que consertem as instituições. Sim, trata-se de um tipo ideal: o leitor assim sonhado preza a democracia, tem cultura considerável e desprendimento de espírito. Se as evidências desmentem suas presunções, ele muda o ponto de vista e evolui, sem dramas.
Esse tipo ideal não deve ser entendido como uma pessoa, não é bem isso. Ele é, antes, uma das dimensões que habitam o interior de cada pessoa. Explicando melhor: o ser leitor é uma dimensão ao lado de outras dimensões dentro da mesma subjetividade, como a dimensão do torcedor de um time, a do ser místico (umbandista, católico, budista, etc.), a do ser profissional, a do cônjuge ou do celibatário. O ser leitor de jornal é uma dimensão a mais. Nosso trauma é que ela entrou em declínio – dentro de você, inclusive.
Você cobra notícias isentas. Disso já sabemos. Mas você sabe ler as notícias com isenção? Você lê com a curiosidade de quem quer aprender? Ou você lê, quando lê, com o único propósito de patrulhar a opinião alheia? Você posta emojis de caretinhas ferozes em links de textos jornalísticos? A sua relação com o noticiário é pensante ou é pautada pelas mesmas emoções que você experimenta numa celebração mística, num estádio de futebol ou no cinema? Ao ler o jornal, você é um cidadão hegeliano ou um devorador de sensações?
O discurso dos jornais se dirige a um adulto livre, racional e responsável: o titular do direito à informação. Há dois séculos, esse adulto moderno foi consagrado cidadão e deflagrou a ascensão da imprensa. Agora, o sumiço do mesmo cidadão, diluído no entretenimento e no fanatismo, faz eclodir a crise da imprensa. Por isso pergunto: você existe? Ou será que escrevo aqui para uma ficção? Ou para ninguém?
Nota: Sabemos que os jornais passaram a ser lidos por dispositivos de inteligência artificial a serviço dos algoritmos. Se você for uma simples máquina, desconsidere, por favor, os parágrafos acima. Não são para você. Da sua existência eu não duvido nem um pouco. Você não apenas existe – você se expande. Eu estava pensando em gente de carne e osso, gente que evanesce. Eu tinha na cabeça uma quimera.
Sob o risco de pedantismo, lembro uma passagem de Hegel que tem sido citada amiúde. Num dado momento entre 1803 e 1805, o pensador da dialética anotou que a leitura do jornal seria uma “oração matinal realista”, ou, em outra versão, a “oração matinal do homem moderno”. Penso nisso quando penso em você.
Hegel sempre teve parte com a razão. Nessa nota em especial, tinha razão de sobra. Há dois séculos, o noticiário e os artigos de fundo davam o contexto em que se movia o cidadão da modernidade, esse amuleto da utopia liberal. Acima da palavra de Deus, o cidadão descrito por Hegel valorizava os fatos e os argumentos. Com base nas informações do dia, calibrava sua postura diante dos dilemas da política e dos impasses do mercado. Lendo as folhas impressas, ele se localizava.
Hoje, quando um motoqueiro empurra o exemplar de um diário para dentro da sua caixa de correio, alguma coisa do século 19 acontece no seu portão. A simples existência de alguém que toma pé dos acontecimentos antes de pôr o pé para fora de casa faz perdurar entre nós um resto do iluminismo. Um resíduo mínimo: esse alguém se tornou uma raridade. Nos nossos dias, uma pessoa com esse perfil, mais do que improvável, é uma relíquia de um realismo cívico pretérito, quase uma peça de museu.
Os meios impressos também tornaram-se uma raridade, mas isso não revoga a fórmula de Hegel. Você, desde que existente, pode muito bem ver as notícias numa tela de celular e, ainda assim, encarnar o “homem moderno” ou a “mulher moderna”. A única diferença é que, se você for mesmo um leitor ou uma leitora digital, a probabilidade de seus olhos terem me seguido até aqui se reduz impiedosamente. Na internet, o leitorado escapole na primeira vírgula. Um raciocínio mais longo, num arco de abstração estendido, como este meu aqui, espanta afreguesia. Jamais será trending topic. Na ciberesfera, a pressa aumenta e a paciência diminui. Falando nisso, cadê você?
Nenhum jornal do presente esconde a saudade dos leitores idos. A audiência debanda, e em ritmo acelerado. O discurso jornalístico, essa língua exótica falada pela imprensa, carece de olhos. O público invocado pelas manchetes não está mais aqui. Nem aí.
Se você olhar para a primeira página do seu jornal – ou para a home na tela do computador, tanto faz – vai notar que tudo ali parece gritar à procura de alguém em estado de inabalável prontidão cidadã: alguém que não se cansa de fiscalizar o poder, de protestar a todo fôlego e de exigir que consertem as instituições. Sim, trata-se de um tipo ideal: o leitor assim sonhado preza a democracia, tem cultura considerável e desprendimento de espírito. Se as evidências desmentem suas presunções, ele muda o ponto de vista e evolui, sem dramas.
Esse tipo ideal não deve ser entendido como uma pessoa, não é bem isso. Ele é, antes, uma das dimensões que habitam o interior de cada pessoa. Explicando melhor: o ser leitor é uma dimensão ao lado de outras dimensões dentro da mesma subjetividade, como a dimensão do torcedor de um time, a do ser místico (umbandista, católico, budista, etc.), a do ser profissional, a do cônjuge ou do celibatário. O ser leitor de jornal é uma dimensão a mais. Nosso trauma é que ela entrou em declínio – dentro de você, inclusive.
Você cobra notícias isentas. Disso já sabemos. Mas você sabe ler as notícias com isenção? Você lê com a curiosidade de quem quer aprender? Ou você lê, quando lê, com o único propósito de patrulhar a opinião alheia? Você posta emojis de caretinhas ferozes em links de textos jornalísticos? A sua relação com o noticiário é pensante ou é pautada pelas mesmas emoções que você experimenta numa celebração mística, num estádio de futebol ou no cinema? Ao ler o jornal, você é um cidadão hegeliano ou um devorador de sensações?
O discurso dos jornais se dirige a um adulto livre, racional e responsável: o titular do direito à informação. Há dois séculos, esse adulto moderno foi consagrado cidadão e deflagrou a ascensão da imprensa. Agora, o sumiço do mesmo cidadão, diluído no entretenimento e no fanatismo, faz eclodir a crise da imprensa. Por isso pergunto: você existe? Ou será que escrevo aqui para uma ficção? Ou para ninguém?
Nota: Sabemos que os jornais passaram a ser lidos por dispositivos de inteligência artificial a serviço dos algoritmos. Se você for uma simples máquina, desconsidere, por favor, os parágrafos acima. Não são para você. Da sua existência eu não duvido nem um pouco. Você não apenas existe – você se expande. Eu estava pensando em gente de carne e osso, gente que evanesce. Eu tinha na cabeça uma quimera.
O Natal antes do Natal. O peso invisível da pressão de estar feliz
Há uma altura do ano em que as pessoas começam a falar mais alto, as lojas brilham mais do que o necessário e a playlist do supermercado decide que estamos felizes, mesmo que não estejamos.
Ainda nem chegámos ao Natal, mas já estamos a viver num ensaio geral permanente com luzes ligadas, euforia suposta, expectativas a subir…E nós, no meio disto, a tentar perceber se o que sentimos é espírito natalício ou só cansaço acumulado.
A verdade é que existe um Natal antes do Natal e é aí que muitos de nós começamos a tropeçar emocionalmente. Não porque falte vontade, mas porque sobra pressão. A pressão de parecer animado, disponível, radiante; de estar “no mood”; de corresponder a um entusiasmo que nem sempre é sentido.
Depois, ainda há o Natal que imaginamos e o Natal que realmente temos.
Na imaginação, tudo é bonito, alinhado e afetuoso. Na vida real, o Natal chega com tensões antigas, logísticas impossíveis, saudades de quem falta, famílias que não “cabem” bem na mesma mesa, crianças excitadas, adultos exaustos e relações que sobrevivem em silêncio.
Há magia, sim. Mas também há ruído, cansaço e um aperto silencioso.
Como se não bastasse a exigência emocional, dezembro acrescenta outra: a obrigação de estar feliz.
Clinicamente, chamamos-lhe dissonância emocional, quando o que sentimos não combina com o que achamos que devíamos sentir. Gera culpa, irritabilidade, comparação constante. “Porque é que eu não estou tão feliz como os outros?” Porque talvez os outros também não estejam. Só não dizem.
Nesta espiral de imposições ainda há o consumismo emocional, que nesta época atinge o seu pico.
Compramos para aliviar. Compramos para compensar. Compramos para não sentir culpa. Compramos porque “é só mais um presente”. No final da lista percebemos que na maioria das vezes não compramos coisas, compramos segundos de dopamina. Funciona por instantes, depois passa e ficamos nós… e a fatura.
Tudo isto acontece enquanto tentamos gerir o excesso: tarefas, jantares, planos, expectativas, tradições, comparações.
Não é falta de espírito natalício. É o sistema nervoso a avisar que talvez estejamos a pedir mais do que conseguimos dar.
O que fazemos com este pré-Natal emocionalmente exigente?
Talvez possamos começar por baixar a guarda.
Lembrar que alegria não é obrigatória. Que o Natal perfeito não existe. Que dizer não é saudável. Que presença não substitui amor e presentes menos ainda. E que sentir-nos mais lentos, mais silenciosos ou mais cansados não significa falhar… significa ser humano numa época que pede demasiado.
Entre o Natal ideal e o Natal real existe um espaço possível com menos ruído, mais verdade, menos exigência e mais empatia.
Talvez seja isso que este Natal nos pede. E talvez seja suficiente.
Concentração de renda: 10% mais ricos têm 75% da riqueza, e metade mais pobre fica com 2%
A desigualdade de riqueza no mundo atingiu o maior nível em três décadas. Os 10% mais ricos da população detêm hoje 75% de toda a riqueza global, enquanto a metade mais pobre fica com apenas 2%. Quanto mais se sobe na pirâmide, a concentração é maior: menos de 60 mil pessoas — um grupo seleto que pertence ao 0,001% mais ricos, que caberia dentro de um estádio de futebol — têm três vezes mais riqueza do que 2,8 bilhões de pessoas.
É o que apontam os dados da terceira edição do Relatório Mundial sobre a Desigualdade 2026, elaborado por um grupo de pesquisadores da rede World Inequality Lab, liderado pelo economista francês Thomas Piketty.
O estudo considera riqueza como o patrimônio líquido das pessoas. Isso inclui a soma de ativos financeiros, como ações e títulos, e não financeiros, como imóveis e terras, já descontadas as dívidas.
A concentração também aparece quando se observa apenas a renda, e não o patrimônio. Nesse caso, os 10% mais ricos do mundo ficam com 53% da renda global, enquanto a metade mais pobre recebe apenas 8%. Já os 40% do meio detêm 23% da riqueza e 38% da renda global.
O relatório mostra que, nos últimos 30 anos, a riqueza cresceu em ritmo muito mais acelerado entre aqueles que já estavam no topo. A parcela da riqueza pessoal detida pelo 0,001% mais rico aumentou de 3,8% em 1995 para 6,1% em 2025.
A fatia dos 50% mais pobres, por sua vez, teve um leve avanço no fim dos anos 1990, mas está estagnada desde o início dos anos 2000 em torno de 2%.
Os economistas também analisaram como as políticas públicas podem reduzir a desigualdade, e identificaram que a tributação progressiva, mas especialmente as transferências de renda, tiveram papel pra minimizar parte da desigualdade considerando dos anos 1980 até hoje.
Na Europa, América do Norte e Oceania, impostos e programas redistributivos reduziram a desigualdade em mais de 30%. Na América Latina, políticas adotadas após os anos 1990 também provocaram avanços.
Segundo o estudo, na Europa, América do Norte e Oceania, impostos e programas de transferências reduziram consistentemente as disparidades de renda em mais de 30%. Na América Latina, as políticas redistributivas introduzidas após a década de 1990 também provocaram avanços.
Mas o efeito tem limites, conforme aponta o estudo. As políticas redistributivas não conseguiram compensar o aumento acelerado da riqueza no topo da pirâmide, aonde a tributação não chega.
O relatório mostra que, na prática, os bilionários e centimilionários pagam proporcionalmente menos impostos do que famílias com rendas muito inferiores. As alíquotas efetivas sobem para a maior parte da população, mas despencam entre os ultrarricos.
]
“Esse padrão regressivo priva os Estados de recursos para investimentos essenciais em educação, saúde e ação climática. Também prejudica a justiça e a coesão social, diminuindo a confiança no sistema tributário”, dizem os autores.
Em conversa com jornalistas, Piketty alertou para a piora da desigualdade nos próximos anos, especialmente no Sul Global. Ele lembrou que muitos países pobres gastam mais com juros da dívida do que com educação e saúde somadas. E, tanto países ricos quanto emergentes, têm evitado aumentar a tributação sobre os grupos mais ricos.
— Precisamos fazer com que os grupos mais ricos contribuam, particularmente no Norte, mas também no Sul, onde temos contribuintes bastante ricos no Brasil, na África do Sul e na Índia que também precisam contribuir. Essa é a única solução — avaliou.
O economista francês observou que algumas iniciativas vindas do Sul Global tentaram chamar atenção para o tema. Ele lembrou que o Brasil, sob a presidência do G20 no ano passado, pressionou por um imposto mínimo global sobre a riqueza, enquanto a África do Sul sugeriu a criação de um painel internacional sobre desigualdade.
— E a realidade é que os países europeus não responderam de fato. Certamente havia alguns menos hostis do que Donald Trump, o que é uma boa notícia, mas, no fim das contas, tanto a Europa quanto os EUA simplesmente ignoram essa demanda vinda do Sul Global — destacou.
O relatório apresenta três propostas de tributação global sobre altas fortunas. A mais moderada, que prevê um imposto anual de 3% sobre cerca de 100 mil bilionários e milionários, calcula que poderia ser arrecadado US$ 750 bilhões por ano, valor equivalente a todo o orçamento global de educação de países de baixa e média renda.
Num cenário mais modesto, um imposto de 2% sobre patrimônios acima de US$ 100 milhões já seria capaz de trazer uma receita de US$ 503 bilhões por ano, o equivalente a 0,45% do PIB mundial, destacam os economistas.
Já uma tributação de 5% arrecadaria, por ano, US$ 1,3 trilhão, o que representa 1,11% do PIB mundial.
Segundo os autores, tributar uma parte das fortunas daria aos governos mais capacidade fiscal para enfrentar desafios estruturais — seja da educação, saúde ou até transição climática —, sem aumentar o ônus sobre a classe média ou os mais pobres.
Carolina Nalin e Mayra Castro
É o que apontam os dados da terceira edição do Relatório Mundial sobre a Desigualdade 2026, elaborado por um grupo de pesquisadores da rede World Inequality Lab, liderado pelo economista francês Thomas Piketty.
O estudo considera riqueza como o patrimônio líquido das pessoas. Isso inclui a soma de ativos financeiros, como ações e títulos, e não financeiros, como imóveis e terras, já descontadas as dívidas.
A concentração também aparece quando se observa apenas a renda, e não o patrimônio. Nesse caso, os 10% mais ricos do mundo ficam com 53% da renda global, enquanto a metade mais pobre recebe apenas 8%. Já os 40% do meio detêm 23% da riqueza e 38% da renda global.
O relatório mostra que, nos últimos 30 anos, a riqueza cresceu em ritmo muito mais acelerado entre aqueles que já estavam no topo. A parcela da riqueza pessoal detida pelo 0,001% mais rico aumentou de 3,8% em 1995 para 6,1% em 2025.
A fatia dos 50% mais pobres, por sua vez, teve um leve avanço no fim dos anos 1990, mas está estagnada desde o início dos anos 2000 em torno de 2%.
Os economistas também analisaram como as políticas públicas podem reduzir a desigualdade, e identificaram que a tributação progressiva, mas especialmente as transferências de renda, tiveram papel pra minimizar parte da desigualdade considerando dos anos 1980 até hoje.
Na Europa, América do Norte e Oceania, impostos e programas redistributivos reduziram a desigualdade em mais de 30%. Na América Latina, políticas adotadas após os anos 1990 também provocaram avanços.
Segundo o estudo, na Europa, América do Norte e Oceania, impostos e programas de transferências reduziram consistentemente as disparidades de renda em mais de 30%. Na América Latina, as políticas redistributivas introduzidas após a década de 1990 também provocaram avanços.
Mas o efeito tem limites, conforme aponta o estudo. As políticas redistributivas não conseguiram compensar o aumento acelerado da riqueza no topo da pirâmide, aonde a tributação não chega.
O relatório mostra que, na prática, os bilionários e centimilionários pagam proporcionalmente menos impostos do que famílias com rendas muito inferiores. As alíquotas efetivas sobem para a maior parte da população, mas despencam entre os ultrarricos.
]
“Esse padrão regressivo priva os Estados de recursos para investimentos essenciais em educação, saúde e ação climática. Também prejudica a justiça e a coesão social, diminuindo a confiança no sistema tributário”, dizem os autores.
Em conversa com jornalistas, Piketty alertou para a piora da desigualdade nos próximos anos, especialmente no Sul Global. Ele lembrou que muitos países pobres gastam mais com juros da dívida do que com educação e saúde somadas. E, tanto países ricos quanto emergentes, têm evitado aumentar a tributação sobre os grupos mais ricos.
— Precisamos fazer com que os grupos mais ricos contribuam, particularmente no Norte, mas também no Sul, onde temos contribuintes bastante ricos no Brasil, na África do Sul e na Índia que também precisam contribuir. Essa é a única solução — avaliou.
O economista francês observou que algumas iniciativas vindas do Sul Global tentaram chamar atenção para o tema. Ele lembrou que o Brasil, sob a presidência do G20 no ano passado, pressionou por um imposto mínimo global sobre a riqueza, enquanto a África do Sul sugeriu a criação de um painel internacional sobre desigualdade.
— E a realidade é que os países europeus não responderam de fato. Certamente havia alguns menos hostis do que Donald Trump, o que é uma boa notícia, mas, no fim das contas, tanto a Europa quanto os EUA simplesmente ignoram essa demanda vinda do Sul Global — destacou.
O relatório apresenta três propostas de tributação global sobre altas fortunas. A mais moderada, que prevê um imposto anual de 3% sobre cerca de 100 mil bilionários e milionários, calcula que poderia ser arrecadado US$ 750 bilhões por ano, valor equivalente a todo o orçamento global de educação de países de baixa e média renda.
Num cenário mais modesto, um imposto de 2% sobre patrimônios acima de US$ 100 milhões já seria capaz de trazer uma receita de US$ 503 bilhões por ano, o equivalente a 0,45% do PIB mundial, destacam os economistas.
Já uma tributação de 5% arrecadaria, por ano, US$ 1,3 trilhão, o que representa 1,11% do PIB mundial.
Segundo os autores, tributar uma parte das fortunas daria aos governos mais capacidade fiscal para enfrentar desafios estruturais — seja da educação, saúde ou até transição climática —, sem aumentar o ônus sobre a classe média ou os mais pobres.
Carolina Nalin e Mayra Castro
O Congresso contra o Brasil
Justamente no momento no qual o Brasil tenta reassumir um papel de liderança internacional na agenda ambiental e climática, o Congresso – dominado por forças conservadoras, ruralistas e setores alinhados à extrema direita – age para sabotar o país. A derrubada dos vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao PL 2.159/2021 representa um dos maiores retrocessos ambientais desde a redemocratização. Não à toa, o texto ficou conhecido como "PL da Devastação ".
E não são apenas os movimentos ambientais que soam o alarme. Também a Anistia Internacional, setores da Igreja Católica, pesquisadores, cientistas e um relator especial da ONU alertam para as consequências da proposta.
O discurso tenta vender a ideia de "modernização" das regras de licenciamento ambiental . Mas o conteúdo real do projeto revela outra lógica: acabar com os estudos de impacto ambiental e social, justamente o coração de qualquer sistema democrático de proteção ambiental. Pela nova regra, empresas poderão "autorizar" seus próprios empreendimentos por meio de simples autodeclarações: sem análise técnica independente, sem transparência pública e sem participação da sociedade. É a porta aberta para abusos, fraudes e destruição acelerada.
A supressão da participação social é um dos pontos mais graves. Povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais perdem não apenas o direito à consulta, mas também o acesso a informações que lhes permitiriam contestar violações. Sem estudos prévios, resta um vácuo institucional no qual interesses privados passam a prevalecer de forma absoluta.
O PL 2.159/2021 não enfraquece apenas o licenciamento: ela fragiliza pilares elementares do Estado Democrático de Direito.
O impacto concreto pode ser ilustrado de forma simples: imagine um empresário adquirindo uma vasta área numa terra indígena ainda em processo de demarcação – processo conhecido por sua lentidão burocrática e vulnerável à pressão política. Com a nova legislação, bastará uma autodeclaração para desmatar, converter o território em pasto ou instalar monoculturas de alta degradação. Erosão do solo, contaminação de rios, perda de biodiversidade, agravamento do calor e redução das chuvas – todos esses efeitos deixam de ser analisados. E o modo de vida das populações originárias simplesmente desaparece do mapa.
O ataque legislativo recai principalmente sobre dois biomas cruciais: Amazônia e Cerrado . Ambos já enfrentam pressões históricas; ambos desempenham funções ecossistêmicas essenciais para o regime de chuvas no Brasil e para o equilíbrio climático global. Essa regressão normativa, além de colocar o país no caminho da devastação interna, prejudica os esforços internacionais para limitar o aquecimento global.
A ironia é que até o próprio agronegócio será a vítima. A ciência é unânime: o aumento das temperaturas, a irregularidade das chuvas e a intensificação das secas afetarão profundamente a produtividade agrícola. Hoje, cerca 60% das terras agrícolas brasileiras já apresenta algum nível de degradação. Projeções indicam que esse número pode chegar a quase 75% até 2060, com prejuízos bilionários. A bancada ruralista está destruindo a base material de seu próprio negócio.
No plano jurídico, a perplexidade é igualmente grande. O PL cria insegurança ao invés de solucioná-la: fragmenta competências entre União, estados e municípios; elimina parâmetros mínimos; abre brechas para interpretações contraditórias; e estimula um ambiente normativo caótico. Essa desorganização não é um acidente, mas arte do objetivo central: criar um cenário em que fiscalização se torne inviável. As comunidades tradicionais ficaram expostos a uma anarquia de um capitalismo sem regras.
Não surpreende, portanto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) deva ser acionado. Há sólidos argumentos constitucionais para questionar a PL, sobretudo sua violação ao princípio da proibição do retrocesso ambiental que impede o Estado de desmontar proteções essenciais sem motivação constitucional robusta.
Mas talvez o aspecto mais estarrecedor seja outro: o PL 2.159/2021 representa o oposto do que a sociedade brasileira quer. Pesquisas de escala nacional mostram 94% dos brasileiros reconhecem que o aquecimento global é real e já sentem os efeitos das mudanças climáticas, 74% afirmam que a proteção ambiental deve prevalecer sobre o crescimento econômico; mais de 90% consideram fundamental a defesa da Amazônia, mais de 80% da população mundial exige ações mais firmes dos governos em defesa do clima.
Em outras palavras, a população brasileira apoia de forma esmagadora a proteção ambiental. Quem sabota essa agenda é o Congresso, uma instituição hoje blindada contra a vontade popular, capturada por interesses privados e dominada pelas mesmas oligarquias que, há décadas, impõem seus privilégios ao país: homens brancos, ricos, herdeiros de clãs políticos e representantes de setores econômicos poderosos.
O paradoxo persiste: uma sociedade que defende massivamente a natureza e um Parlamento que age sistematicamente para destruí-la. A pergunta inevitável ecoa: por que o país continua elegendo representantes que não refletem seus valores nem seus interesses de longo prazo? Trata-se de um dos enigmas mais persistentes do cenário político brasileiro contemporâneo.
E não são apenas os movimentos ambientais que soam o alarme. Também a Anistia Internacional, setores da Igreja Católica, pesquisadores, cientistas e um relator especial da ONU alertam para as consequências da proposta.
O discurso tenta vender a ideia de "modernização" das regras de licenciamento ambiental . Mas o conteúdo real do projeto revela outra lógica: acabar com os estudos de impacto ambiental e social, justamente o coração de qualquer sistema democrático de proteção ambiental. Pela nova regra, empresas poderão "autorizar" seus próprios empreendimentos por meio de simples autodeclarações: sem análise técnica independente, sem transparência pública e sem participação da sociedade. É a porta aberta para abusos, fraudes e destruição acelerada.
A supressão da participação social é um dos pontos mais graves. Povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais perdem não apenas o direito à consulta, mas também o acesso a informações que lhes permitiriam contestar violações. Sem estudos prévios, resta um vácuo institucional no qual interesses privados passam a prevalecer de forma absoluta.
O PL 2.159/2021 não enfraquece apenas o licenciamento: ela fragiliza pilares elementares do Estado Democrático de Direito.
O impacto concreto pode ser ilustrado de forma simples: imagine um empresário adquirindo uma vasta área numa terra indígena ainda em processo de demarcação – processo conhecido por sua lentidão burocrática e vulnerável à pressão política. Com a nova legislação, bastará uma autodeclaração para desmatar, converter o território em pasto ou instalar monoculturas de alta degradação. Erosão do solo, contaminação de rios, perda de biodiversidade, agravamento do calor e redução das chuvas – todos esses efeitos deixam de ser analisados. E o modo de vida das populações originárias simplesmente desaparece do mapa.
O ataque legislativo recai principalmente sobre dois biomas cruciais: Amazônia e Cerrado . Ambos já enfrentam pressões históricas; ambos desempenham funções ecossistêmicas essenciais para o regime de chuvas no Brasil e para o equilíbrio climático global. Essa regressão normativa, além de colocar o país no caminho da devastação interna, prejudica os esforços internacionais para limitar o aquecimento global.
A ironia é que até o próprio agronegócio será a vítima. A ciência é unânime: o aumento das temperaturas, a irregularidade das chuvas e a intensificação das secas afetarão profundamente a produtividade agrícola. Hoje, cerca 60% das terras agrícolas brasileiras já apresenta algum nível de degradação. Projeções indicam que esse número pode chegar a quase 75% até 2060, com prejuízos bilionários. A bancada ruralista está destruindo a base material de seu próprio negócio.
No plano jurídico, a perplexidade é igualmente grande. O PL cria insegurança ao invés de solucioná-la: fragmenta competências entre União, estados e municípios; elimina parâmetros mínimos; abre brechas para interpretações contraditórias; e estimula um ambiente normativo caótico. Essa desorganização não é um acidente, mas arte do objetivo central: criar um cenário em que fiscalização se torne inviável. As comunidades tradicionais ficaram expostos a uma anarquia de um capitalismo sem regras.
Não surpreende, portanto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) deva ser acionado. Há sólidos argumentos constitucionais para questionar a PL, sobretudo sua violação ao princípio da proibição do retrocesso ambiental que impede o Estado de desmontar proteções essenciais sem motivação constitucional robusta.
Mas talvez o aspecto mais estarrecedor seja outro: o PL 2.159/2021 representa o oposto do que a sociedade brasileira quer. Pesquisas de escala nacional mostram 94% dos brasileiros reconhecem que o aquecimento global é real e já sentem os efeitos das mudanças climáticas, 74% afirmam que a proteção ambiental deve prevalecer sobre o crescimento econômico; mais de 90% consideram fundamental a defesa da Amazônia, mais de 80% da população mundial exige ações mais firmes dos governos em defesa do clima.
Em outras palavras, a população brasileira apoia de forma esmagadora a proteção ambiental. Quem sabota essa agenda é o Congresso, uma instituição hoje blindada contra a vontade popular, capturada por interesses privados e dominada pelas mesmas oligarquias que, há décadas, impõem seus privilégios ao país: homens brancos, ricos, herdeiros de clãs políticos e representantes de setores econômicos poderosos.
O paradoxo persiste: uma sociedade que defende massivamente a natureza e um Parlamento que age sistematicamente para destruí-la. A pergunta inevitável ecoa: por que o país continua elegendo representantes que não refletem seus valores nem seus interesses de longo prazo? Trata-se de um dos enigmas mais persistentes do cenário político brasileiro contemporâneo.
O mundo mais autoritário
A constatação é triste: 72% da população mundial vive hoje em países não democráticos, ditaduras ou autocracias eleitorais. Na última década, as ditaduras subiram de 22 para 33, enquanto os sistemas democráticos caíram de 44 para 32. Sobe também o número de democracias falhas, um modelo híbrido que abriga componentes de regimes autocráticos e democráticos, onde ocorrem falhas na aplicação de princípios e valores, como liberdade de imprensa, independência entre os Poderes, repressão policial, ameaças de golpes, integridade do sistema eleitoral, entre outros.
Tal constatação tem como fonte uma pesquisa feita pelo instituto sueco V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. A escalada autoritária é uma ameaça ao equilíbrio entre as nações. Nos últimos tempos, o planeta vive sob o temor de uma nova Guerra Fria, que poderá ser o estopim de um conflito de proporções mortíferas para a humanidade. China e Rússia, juntas na estratégia de eliminar o poderio ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos, e tendo como pano de fundo a tragédia que se abate sobre a Ucrânia, empurram o planeta na direção do precipício. Semana passada, vimos Vladimir Putin, o todo poderoso mandatário-mor da Rússia, falar alto: “Se a Europa quiser guerra, estamos prontos”.
Afinal, o que ocorre com as democracias? Estão morrendo? Assistem, inertes, ao desvanecimento de sua base? Não têm resistido ao volume crescente da violência, que invade os ares da liberdade? A luta do poder pelo poder, sem as luzes das ideologias e doutrinas, seria uma volta ao nosso passado ancestral?
São questões cruciais. Que já mereceram análises de cientistas políticos. A afamada obra Como as democracias morrem, dos professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, faz importante observação para entendermos a vida contemporânea. A tese principal dos dois autores é a de que os sistemas são corrompidos por meio da perversão do processo legal, significando que os governos legitimamente eleitos subvertem os meios que os levaram ao poder.
Na América Latina, basta ver os golpes militares, no Brasil (1964), na Argentina (1966), no Chile (1973), no Uruguai (1976) e os movimentos de tendência golpista, que ocorrem aqui e ali, a escancarar a instabilidade das instituições representativas, a militarização da vida política e o cerceamento da liberdade política e de expressão.
Até a maior democracia ocidental, a norte-americana, tem sofrido ameaças, a partir da eleição de Donald Trump e sua pregação antidemocrática. Ali, nunca se viu tanta pregação contra os eixos da democracia.
A crise, como se sabe, é crônica, se arrasta há tempos. E onde estão suas raízes? Norberto Bobbio, o cientista social e político italiano, em sua clássica obra O futuro da democracia, levanta a questão: as democracias não têm cumprido seus compromissos para com as comunidades.
Promessas não cumpridas caracterizam uma sociedade pluralista, com seus vários centros de poder, com o domínio das oligarquias que procuram preservar suas tradições e, ainda, com a força do poder invisível, que age nos subterrâneos do poder visível, representado pelo Estado. Basta ver a expansão das gangues e do crime organizado, hoje presentes em praticamente todos os países da América Latina. Calcula-se que cerca de 40% dos homicídios globais estão ligados ao crime organizado e à violência de gangues, que são prevalentes nas três Américas.
A incultura política campeia. Bobbio é enfático: a apatia política chega a envolver cerca da metade dos que têm direito a voto. É pouco. Em nosso Brasil, a imensa maioria do eleitorado ainda vegeta no terreno que se chama de “cidadania passiva”.
As promessas não têm sido cumpridas por causa dos obstáculos e desafios impostos por uma sociedade que saiu de uma economia familiar para uma economia de mercado, ou seja, uma economia planificada, que abriu a era do “governo dos técnicos”, e trouxe, em seu arcabouço, sérios problemas como desemprego, inflação, aumento das desigualdades, competição desvairada, violência.
O rendimento do Estado democrático sofre queda e, em muitos países, os sistemas governativos tornam-se ingovernáveis. As tensões entres Poderes (caso do Brasil) contribuem para a instabilidade institucional. As ingerências de um Poder sobre outro se tornam constantes, a ponto de se considerar que funções legislativas são absorvidas pelo Poder Judiciário, como ocorre, hoje, por nossas bandas. Basta olhar para a recente querela entre o STF e o Senado Federal e sua acusação recíproca de invasão de competências.
O STF até parece uma gigantesca delegacia de polícia, a julgar vândalos. O Poder Executivo, por sua vez, encabresta o Poder Legislativo, com sua articulação para cooptar parlamentares com liberação de recursos e outros meios de atração, como cargos e espaços na estrutura administrativa.
Em um ensaio alentado, os professores e pesquisadores Fernando Limongi e Angelina Figueiredo explicam: “O padrão organizacional do Legislativo brasileiro é bastante diferente do norte-americano. Os trabalhos legislativos no Brasil são altamente centralizados e se encontram ancorados na ação dos partidos. Ademais, enquanto o presidente norte-americano possui limitados poderes legislativos, o brasileiro é um dos mais poderosos do mundo. […] da mesma forma, não é possível desconsiderar os poderes legislativos do presidente”.
O fato é que o exercício da governança se torna cada vez mais complexo. Os interesses grupais e individuais suplantam as demandas coletivas. A conquista do poder, a qualquer custo, é a meta que transforma a política em uma arena de lutas. Sob essa paisagem conflituosa, golpes, insurreições, movimentos de ruptura, ancorados nos quartéis e nas armas, são os novos componentes que corroem os vãos e desvãos das democracias, tornando o mundo mais autoritário.
Tal constatação tem como fonte uma pesquisa feita pelo instituto sueco V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. A escalada autoritária é uma ameaça ao equilíbrio entre as nações. Nos últimos tempos, o planeta vive sob o temor de uma nova Guerra Fria, que poderá ser o estopim de um conflito de proporções mortíferas para a humanidade. China e Rússia, juntas na estratégia de eliminar o poderio ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos, e tendo como pano de fundo a tragédia que se abate sobre a Ucrânia, empurram o planeta na direção do precipício. Semana passada, vimos Vladimir Putin, o todo poderoso mandatário-mor da Rússia, falar alto: “Se a Europa quiser guerra, estamos prontos”.
Afinal, o que ocorre com as democracias? Estão morrendo? Assistem, inertes, ao desvanecimento de sua base? Não têm resistido ao volume crescente da violência, que invade os ares da liberdade? A luta do poder pelo poder, sem as luzes das ideologias e doutrinas, seria uma volta ao nosso passado ancestral?
São questões cruciais. Que já mereceram análises de cientistas políticos. A afamada obra Como as democracias morrem, dos professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, faz importante observação para entendermos a vida contemporânea. A tese principal dos dois autores é a de que os sistemas são corrompidos por meio da perversão do processo legal, significando que os governos legitimamente eleitos subvertem os meios que os levaram ao poder.
Na América Latina, basta ver os golpes militares, no Brasil (1964), na Argentina (1966), no Chile (1973), no Uruguai (1976) e os movimentos de tendência golpista, que ocorrem aqui e ali, a escancarar a instabilidade das instituições representativas, a militarização da vida política e o cerceamento da liberdade política e de expressão.
Até a maior democracia ocidental, a norte-americana, tem sofrido ameaças, a partir da eleição de Donald Trump e sua pregação antidemocrática. Ali, nunca se viu tanta pregação contra os eixos da democracia.
A crise, como se sabe, é crônica, se arrasta há tempos. E onde estão suas raízes? Norberto Bobbio, o cientista social e político italiano, em sua clássica obra O futuro da democracia, levanta a questão: as democracias não têm cumprido seus compromissos para com as comunidades.
Promessas não cumpridas caracterizam uma sociedade pluralista, com seus vários centros de poder, com o domínio das oligarquias que procuram preservar suas tradições e, ainda, com a força do poder invisível, que age nos subterrâneos do poder visível, representado pelo Estado. Basta ver a expansão das gangues e do crime organizado, hoje presentes em praticamente todos os países da América Latina. Calcula-se que cerca de 40% dos homicídios globais estão ligados ao crime organizado e à violência de gangues, que são prevalentes nas três Américas.
A incultura política campeia. Bobbio é enfático: a apatia política chega a envolver cerca da metade dos que têm direito a voto. É pouco. Em nosso Brasil, a imensa maioria do eleitorado ainda vegeta no terreno que se chama de “cidadania passiva”.
As promessas não têm sido cumpridas por causa dos obstáculos e desafios impostos por uma sociedade que saiu de uma economia familiar para uma economia de mercado, ou seja, uma economia planificada, que abriu a era do “governo dos técnicos”, e trouxe, em seu arcabouço, sérios problemas como desemprego, inflação, aumento das desigualdades, competição desvairada, violência.
O rendimento do Estado democrático sofre queda e, em muitos países, os sistemas governativos tornam-se ingovernáveis. As tensões entres Poderes (caso do Brasil) contribuem para a instabilidade institucional. As ingerências de um Poder sobre outro se tornam constantes, a ponto de se considerar que funções legislativas são absorvidas pelo Poder Judiciário, como ocorre, hoje, por nossas bandas. Basta olhar para a recente querela entre o STF e o Senado Federal e sua acusação recíproca de invasão de competências.
O STF até parece uma gigantesca delegacia de polícia, a julgar vândalos. O Poder Executivo, por sua vez, encabresta o Poder Legislativo, com sua articulação para cooptar parlamentares com liberação de recursos e outros meios de atração, como cargos e espaços na estrutura administrativa.
Em um ensaio alentado, os professores e pesquisadores Fernando Limongi e Angelina Figueiredo explicam: “O padrão organizacional do Legislativo brasileiro é bastante diferente do norte-americano. Os trabalhos legislativos no Brasil são altamente centralizados e se encontram ancorados na ação dos partidos. Ademais, enquanto o presidente norte-americano possui limitados poderes legislativos, o brasileiro é um dos mais poderosos do mundo. […] da mesma forma, não é possível desconsiderar os poderes legislativos do presidente”.
O fato é que o exercício da governança se torna cada vez mais complexo. Os interesses grupais e individuais suplantam as demandas coletivas. A conquista do poder, a qualquer custo, é a meta que transforma a política em uma arena de lutas. Sob essa paisagem conflituosa, golpes, insurreições, movimentos de ruptura, ancorados nos quartéis e nas armas, são os novos componentes que corroem os vãos e desvãos das democracias, tornando o mundo mais autoritário.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2025
Parasitas
Há 35 anos, fazia capa, no jornal Los Angeles Times, a notícia It’s True: Milli Vanilli Didn’t Sing (É verdade: Os Milli Vanilli não cantam). Seguiram-se processos judiciais a reclamar a devolução do valor pago pelos CD e bilhetes de concertos. O Grammy para Melhor Novo Artista de 1990 foi revogado. A editora Arista Records eliminou do seu catálogo os álbuns. Para quem já não se recorda ou ainda não ouvia música, o dueto alemão acumulou sucessos como Girl You Know it’s True, mas num concerto, um problema no sistema de som repetiu vezes sem conta o mesmo verso, desmontando a trapaça. Tinham estilo, eram peritos na sincronização labial, mas não cantavam… ou não cantavam suficientemente bem para a sua voz ser um hit. Foi um escândalo. A imitação, o logro, criou um momento Milli Vanilli. A autenticidade é um bem valioso… Ou era.
Este verão, os Velvet Sundown foram um êxito nos serviços de streaming, com mais de 900 mil ouvintes mensais no Spotify. Surgiram em junho, e em julho já a revista Rolling Stone publicava um artigo a confirmar que se tratava de músicas geradas por Inteligência Artificial. Mas ao contrário do que aconteceu há três décadas com os Milli Vanilli, as músicas continuam disponíveis nos serviços de streaming. Na bio, disponível no Spotify, passou a constar que é um “projeto de música sintética, guiada por criatividade humana”…
Na verdade, é um projeto muito lucrativo dos novos parasitas da música. Não são artistas, mas, com algoritmos e sem autorização dos artistas, utilizam o esforço criativo alheio para criar réplicas do que já foi inventado. O fenómeno está incontrolável.
De acordo com os serviços de streaming, mais de 30 000 novas “músicas” criadas usando a IA são todos os dias ali partilhadas. Os parasitas mais sofisticados criam bots para ouvir estas “músicas” e, assim, receberem royalties. Recorde-se que o streaming partilha entre todos os artistas as receitas, conforme o número de audições. Audições falsas ou mesmo verdadeiras de músicas criadas por IA canibalizam as receitas dos artistas. Spotify e outros serviços de streaming estão a utilizar ferramentas para detetar e retirar estas faixas (embora aparentemente não todas, dado que Velvet Sundown continua disponível). Mas nada impede que músicas geradas pela IA continuem a aparecer no seu feed, sem estarem identificadas.
Duas empresas (Udio e Suno) que desenvolveram os algoritmos mais utilizados para gerar novas músicas foram, no ano passado, processadas pela associação de editoras discográficas americana (RIAA). Mais uma vez, está em causa o uso não autorizado, e não pago, do trabalho dos artistas para treinar o algoritmo. Terão chegado a acordo há poucas semanas.
Os algoritmos passarão a estar disponíveis num serviço de subscrição e usando o trabalho dos artistas que o autorizem (recebendo por isso uma compensação financeira).
Os detalhes não são claros. Os algoritmos já estão treinados. Como se vai compensar o trabalho de todos os artistas que foi utilizado? Não parece que o algoritmo vá ser eliminado e novamente treinado, apenas com o trabalho de quem autorize e seja por isso compensado. Que individualmente, atraídos pela familiaridade, sejamos impelidos a ouvir música artificial é uma coisa, mas como sociedade aceitar que meia dúzia de informáticos (e os seus investidores, que sabem financiar um empreendimento ilegal) se tornem multibilionários, parasitando o trabalho criativo é, no mínimo, condenável. É urgente regular a utilização do algoritmo ou corremos o risco de uma infestação por músicas parasitas, que asfixiam a criatividade humana.
Este verão, os Velvet Sundown foram um êxito nos serviços de streaming, com mais de 900 mil ouvintes mensais no Spotify. Surgiram em junho, e em julho já a revista Rolling Stone publicava um artigo a confirmar que se tratava de músicas geradas por Inteligência Artificial. Mas ao contrário do que aconteceu há três décadas com os Milli Vanilli, as músicas continuam disponíveis nos serviços de streaming. Na bio, disponível no Spotify, passou a constar que é um “projeto de música sintética, guiada por criatividade humana”…
Na verdade, é um projeto muito lucrativo dos novos parasitas da música. Não são artistas, mas, com algoritmos e sem autorização dos artistas, utilizam o esforço criativo alheio para criar réplicas do que já foi inventado. O fenómeno está incontrolável.
De acordo com os serviços de streaming, mais de 30 000 novas “músicas” criadas usando a IA são todos os dias ali partilhadas. Os parasitas mais sofisticados criam bots para ouvir estas “músicas” e, assim, receberem royalties. Recorde-se que o streaming partilha entre todos os artistas as receitas, conforme o número de audições. Audições falsas ou mesmo verdadeiras de músicas criadas por IA canibalizam as receitas dos artistas. Spotify e outros serviços de streaming estão a utilizar ferramentas para detetar e retirar estas faixas (embora aparentemente não todas, dado que Velvet Sundown continua disponível). Mas nada impede que músicas geradas pela IA continuem a aparecer no seu feed, sem estarem identificadas.
Duas empresas (Udio e Suno) que desenvolveram os algoritmos mais utilizados para gerar novas músicas foram, no ano passado, processadas pela associação de editoras discográficas americana (RIAA). Mais uma vez, está em causa o uso não autorizado, e não pago, do trabalho dos artistas para treinar o algoritmo. Terão chegado a acordo há poucas semanas.
Os algoritmos passarão a estar disponíveis num serviço de subscrição e usando o trabalho dos artistas que o autorizem (recebendo por isso uma compensação financeira).
Os detalhes não são claros. Os algoritmos já estão treinados. Como se vai compensar o trabalho de todos os artistas que foi utilizado? Não parece que o algoritmo vá ser eliminado e novamente treinado, apenas com o trabalho de quem autorize e seja por isso compensado. Que individualmente, atraídos pela familiaridade, sejamos impelidos a ouvir música artificial é uma coisa, mas como sociedade aceitar que meia dúzia de informáticos (e os seus investidores, que sabem financiar um empreendimento ilegal) se tornem multibilionários, parasitando o trabalho criativo é, no mínimo, condenável. É urgente regular a utilização do algoritmo ou corremos o risco de uma infestação por músicas parasitas, que asfixiam a criatividade humana.
A inclusão é uma mentira que continuamos a contar
O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, assinalado a 3 de dezembro, surge todos os anos como um lembrete daquilo que ainda não conseguimos ser enquanto sociedade: verdadeiramente inclusivos. Embora Portugal tenha avançado em legislação, estratégias públicas e discursos institucionais, continua a existir um abismo entre a norma escrita e a realidade de quem vive com uma deficiência. E esse abismo mede-se diariamente, nos transportes, nas escolas, nos locais de trabalho e até na forma como a diferença é percebida socialmente.
O grande equívoco contemporâneo é acreditar que a inclusão se alcança apenas com boas intenções. As intenções podem sensibilizar, mas não removem escadas, não garantem intérpretes de Língua Gestual Portuguesa, não criam materiais acessíveis, não formam profissionais, nem transformam mentalidades. Inclusão exige investimento, exige planeamento e exige, sobretudo, desconforto, o de reconhecer que a exclusão é estrutural e que todos participamos, de alguma forma, na sua manutenção.
Ainda hoje, muitas pessoas com deficiência são tratadas como “casos especiais”, como exceções que obrigam a adaptações que se entendem como um favor, e não como um direito. Esta perceção reduz as pessoas à sua limitação e ignora as inúmeras barreiras criadas por uma sociedade construída para um padrão único, um corpo idealizado, um ritmo considerado “normal”, uma forma de comunicação dominante. As barreiras não estão nas pessoas, estão nos sistemas que não se adaptam à diversidade humana.
Quando falamos de acessibilidade, falamos também de dignidade. Fala-se de poder ir a um concerto sem depender de terceiros, de conseguir estudar em igualdade de oportunidades, de entrar num edifício público sem constrangimentos, de participar plenamente na economia e na vida cultural. A acessibilidade não é um luxo, é uma ferramenta fundamental de cidadania, mas, infelizmente, continua a ser vista como um custo ou um obstáculo burocrático.
A verdade é que uma sociedade mais acessível não beneficia apenas as pessoas com deficiência, beneficia também crianças, idosos, pais com carrinhos de bebé, pessoas temporariamente lesionadas, beneficia-nos a todos. A inclusão não é um nicho, é um projeto coletivo.
Mas para que este dia deixe de ser apenas simbólico, é necessário ir mais longe. Precisamos de políticas que garantam a implementação efetiva de condições de acessibilidade, precisamos de escolas preparadas para acolher todas as crianças, independentemente das suas necessidades, precisamos de emprego que valorize competências e não estigmas, precisamos de meios de comunicação que representem a deficiência para lá do paternalismo ou da superação extraordinária. Precisamos, sobretudo, de ouvir quem vive a realidade da deficiência e de integrar essa voz na decisão política, na criação de soluções e no desenho das cidades.
A mudança não depende apenas do Estado, depende das empresas que escolhem contratar, das instituições que repensam os seus espaços e dos cidadãos que exigem condições equitativas para todos. Em suma, depende da consciência individual e do compromisso coletivo.
O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência deve servir para recordar isto mesmo, não celebramos a deficiência, celebramos a luta por uma sociedade que reconheça, respeite e acolha todas as formas de existência humana. Uma sociedade onde a diferença não seja tolerada, mas valorizada.
A verdadeira inclusão será alcançada no dia em que esta data deixar de ser necessária. Até lá, cabe-nos transformar sensibilização em ação.
O grande equívoco contemporâneo é acreditar que a inclusão se alcança apenas com boas intenções. As intenções podem sensibilizar, mas não removem escadas, não garantem intérpretes de Língua Gestual Portuguesa, não criam materiais acessíveis, não formam profissionais, nem transformam mentalidades. Inclusão exige investimento, exige planeamento e exige, sobretudo, desconforto, o de reconhecer que a exclusão é estrutural e que todos participamos, de alguma forma, na sua manutenção.
Ainda hoje, muitas pessoas com deficiência são tratadas como “casos especiais”, como exceções que obrigam a adaptações que se entendem como um favor, e não como um direito. Esta perceção reduz as pessoas à sua limitação e ignora as inúmeras barreiras criadas por uma sociedade construída para um padrão único, um corpo idealizado, um ritmo considerado “normal”, uma forma de comunicação dominante. As barreiras não estão nas pessoas, estão nos sistemas que não se adaptam à diversidade humana.
Quando falamos de acessibilidade, falamos também de dignidade. Fala-se de poder ir a um concerto sem depender de terceiros, de conseguir estudar em igualdade de oportunidades, de entrar num edifício público sem constrangimentos, de participar plenamente na economia e na vida cultural. A acessibilidade não é um luxo, é uma ferramenta fundamental de cidadania, mas, infelizmente, continua a ser vista como um custo ou um obstáculo burocrático.
A verdade é que uma sociedade mais acessível não beneficia apenas as pessoas com deficiência, beneficia também crianças, idosos, pais com carrinhos de bebé, pessoas temporariamente lesionadas, beneficia-nos a todos. A inclusão não é um nicho, é um projeto coletivo.
Mas para que este dia deixe de ser apenas simbólico, é necessário ir mais longe. Precisamos de políticas que garantam a implementação efetiva de condições de acessibilidade, precisamos de escolas preparadas para acolher todas as crianças, independentemente das suas necessidades, precisamos de emprego que valorize competências e não estigmas, precisamos de meios de comunicação que representem a deficiência para lá do paternalismo ou da superação extraordinária. Precisamos, sobretudo, de ouvir quem vive a realidade da deficiência e de integrar essa voz na decisão política, na criação de soluções e no desenho das cidades.
A mudança não depende apenas do Estado, depende das empresas que escolhem contratar, das instituições que repensam os seus espaços e dos cidadãos que exigem condições equitativas para todos. Em suma, depende da consciência individual e do compromisso coletivo.
O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência deve servir para recordar isto mesmo, não celebramos a deficiência, celebramos a luta por uma sociedade que reconheça, respeite e acolha todas as formas de existência humana. Uma sociedade onde a diferença não seja tolerada, mas valorizada.
A verdadeira inclusão será alcançada no dia em que esta data deixar de ser necessária. Até lá, cabe-nos transformar sensibilização em ação.
Sobre a tortura dos outros
Há um longo tempo — pelo menos seis décadas —, as fotos têm deixado as marcas de como os conflitos importantes são julgados e lembrados. O museu da memória ocidental é, hoje, sobretudo visual. As fotos têm um poder insuperável para determinar o que recordamos dos fatos, e agora parece provável que a associação determinante das pessoas de todo o mundo com a guerra podre que os Estados Unidos desencadearam de forma preventiva no Iraque no ano passado serão as fotos da tortura dos prisioneiros iraquianos praticada por americanos na mais infame de todas as prisões de Saddam Hussein, Abu Ghraib.
O governo Bush e seus defensores procuraram acima de tudo limitar um desastre de relações públicas — a disseminação das fotos —, em vez de enfrentar os complexos crimes de liderança e de estratégia revelados pelas fotos. Antes de tudo, houve o deslocamento da realidade para as fotos em si. A reação inicial do governo foi dizer que o presidente estava chocado e indignado com as fotos — como se o erro ou o horror estivesse nas imagens, não no que elas retratam. Evitou-se também a palavra “tortura”. Os prisioneiros foram talvez objetos de “maus-tratos”, ou até de “humilhação” — isso foi o máximo que se admitiu. “Minha impressão é de que, até agora, se trata de uma acusação de maus-tratos, o que creio ser tecnicamente diferente de tortura”, disse o secretário de Defesa Donald Rumsfeld numa entrevista coletiva. “E, portanto, não vou usar a palavra ‘tortura’.”
Qualquer que seja a ação que esse governo implemente a fim de reduzir os prejuízos da ampla divulgação da tortura de prisioneiros em Abu Ghraib e outros locais — processos, cortes marciais, exoneração desonrosa, demissão de autoridades militares em altos cargos e de funcionários do governo, além de uma substancial compensação às vítimas —, é provável que a palavra “tortura” continue banida. Reconhecer que americanos torturam seus prisioneiros seria contradizer tudo o que esse governo pediu que o público acreditasse a respeito da virtude das intenções americanas e da universalidade dos valores americanos, o que é a suprema e triunfalista justificativa do direito americano a uma ação unilateral no mundo, em defesa de seus interesses e segurança.
Mesmo quando o presidente foi por fim coagido a usar a palavra “pesaroso”, em vista da ampliação e exacerbação da má reputação dos Estados Unidos em todo o mundo, o foco do pesar ainda parecia ser o estrago causado à pretensão americana de uma superioridade moral, ao seu objetivo hegemônico de levar “a liberdade e a democracia” ao ignorante Oriente Médio. Sim, o senhor Bush disse em Washington no dia 6 de maio, ao lado do rei Abdullah II, da Jordânia, que estava “pesaroso pela humilhação padecida pelos prisioneiros iraquianos e por seus familiares”. Mas prosseguiu e disse que estava “igualmente pesaroso porque as pessoas que viram essas fotos não compreenderam a verdadeira natureza e coração dos Estados Unidos”.
O fato de o esforço americano no Iraque ter sido sintetizado por essas imagens deve parecer “injusto” para aqueles que viam alguma justificativa numa guerra que de fato derrubou um dos tiranos monstruosos dos tempos modernos. Uma guerra, uma ocupação, é inevitavelmente uma imensa tapeçaria de ações. O que torna algumas ações representativas e outras não? A questão não é se a tortura foi praticada por indivíduos (ou seja, “não por todo mundo”), mas se foi sistemática. Autorizada. Sancionada. Todas as ações são praticadas por indivíduos. A questão não é se a maioria ou a minoria dos americanos pratica tais atos, mas se a natureza da política desenvolvida por esse governo e as hierarquias aplicadas para implementá-la tornam tais atos prováveis.
Vistas sob essa luz, as fotos somos nós. Ou seja, são representativas da corrupção fundamental de qualquer ocupação estrangeira associada à política distintiva do governo Bush. Os belgas no Congo, os franceses na Argélia, praticaram tortura e humilhações sexuais em desprezados nativos recalcitrantes. Acrescentemos a essa corrupção genérica o desconcertante e quase total despreparo dos governantes americanos do Iraque para lidar com as realidades complexas do país após a sua “liberação” — ou seja, conquista. E acrescentemos a isso as doutrinas abrangentes do governo Bush, em especial a doutrina de que os Estados Unidos entraram numa guerra sem fim (contra um inimigo polimorfo chamado “terrorismo”) e que as pessoas presas nessa guerra são, se o presidente assim decidir, “combatentes ilegais” — uma política formulada por Donald Rumsfeld já em janeiro de 2002 —, e assim, segundo Rumsfeld, “tecnicamente sem nenhum direito à Convenção de Genebra”, e temos uma receita perfeita para os crimes e as crueldades cometidas contra milhares de pessoas encarceradas sem julgamento e sem acesso a advogados em prisões dirigidas por americanos, criadas a partir dos ataques de 11 de setembro de 2001.
Portanto, a questão real não são as fotos em si, mas o que as fotos revelam que aconteceu com “suspeitos” sob custódia de americanos? Não: o horror do que é mostrado nas fotos não pode ser separado do horror do fato de as fotos terem sido tiradas — com os perpetradores fazendo pose, caras de contentes, sobre os seus cativos indefesos. Os soldados alemães na Segunda Guerra Mundial tiraram fotos das atrocidades que estavam cometendo na Polônia e na Rússia, mas instantâneos em que os carrascos se colocavam entre as suas vítimas são extremamente raros, como se pode ver em Fotografando o Holocausto, de Janina Struk. Se há algo comparável ao que essas fotos mostram, talvez sejam as fotos de vítimas negras de linchamento tiradas entre 1880 e 1930, que mostram americanos sorrindo embaixo do corpo mutilado e queimado de um homem ou de uma mulher negra, pendurado numa árvore às suas costas. As fotos de linchamento eram suvenires de uma ação coletiva, cujos participantes se sentiam perfeitamente justificados naquilo que tinham feito. Assim são as fotos de Abu Ghraib.
Se existe uma diferença, é uma diferença criada pela crescente ubiquidade de ações fotográficas. As fotos de linchamento eram da natureza das fotos como troféus — tiradas por um fotógrafo a fim de ser colecionadas, guardadas em álbuns, mostradas. As tiradas por soldados americanos em Abu Ghraib, porém, refletem uma mudança no uso feito de fotos — menos objetos que se devem salvar do que mensagens que se devem disseminar, difundir. Uma câmera digital é um bem comum entre soldados. Onde antes a fotografia de guerra constituía um domínio de repórteres-fotográficos, agora os próprios soldados são fotógrafos completos — registram a sua guerra, a sua diversão, as suas observações do que acham pitoresco, as suas atrocidades — e trocam fotos entre si, enviam fotos por e-mail para o mundo inteiro.
Há cada vez mais registros daquilo que as pessoas fazem, registros obtidos por elas mesmas. Pelo menos ou especialmente nos Estados Unidos, o ideal de Andy Warhol de filmar fatos reais em tempo real — a vida não é editada, por que seu registro deveria ser? — tornou-se uma norma para incontáveis sites da internet, nos quais as pessoas registram o seu dia, cada um no seu reality show particular. Aqui estou eu — andando, bocejando, me espreguiçando, escovando os dentes, tomando o café-da-manhã, levando os filhos à escola. As pessoas registram todos os aspectos da sua vida, guardam em arquivos de computador e despacham os arquivos para toda parte. A vida familiar caminha junto com o registro da vida familiar — mesmo, ou sobretudo, quando a família se acha nos estertores de uma crise ou numa grande infelicidade. Sem dúvida, a dedicada e incessante produção de vídeos domésticos em que uns filmavam os outros, em conversas ou em monólogos, ao longo de muitos anos, constituiu o material mais impressionante em Capturing the Friedmans (2003), documentário de Andrew Jarecki sobre uma família de Long Island envolvida em processos de pedofilia.
Uma vida erótica é, para um número cada vez maior de pessoas, aquilo que pode ser captado em fotos digitais e em vídeo. E talvez a tortura seja mais atraente, como algo para registrar, quando contém um componente sexual. À medida que mais fotos de Abu Ghraib se oferecem ao público, revela-se com certeza que as fotos de tortura aparecem intercaladas com imagens pornográficas em que soldados americanos se mostram fazendo sexo entre si. De fato, a maioria das fotos de tortura tem um tema sexual, como na que mostra a coerção de prisioneiros a praticarem, ou simularem, atos sexuais entre si. Uma exceção, já canônica, é a foto de um homem obrigado a ficar de pé sobre uma caixa, de capuz e envolto em fios elétricos, a quem informaram que seria eletrocutado se caísse. Contudo, fotos de prisioneiros mantidos em posições dolorosas, ou obrigados a ficar de pé com os braços abertos, são raras. Não dá para contestar que sejam tortura. Basta olhar para o terror no rosto da vítima. Mas a maioria das fotos parece parte de uma confluência mais vasta de tortura e pornografia: uma jovem conduzindo um homem nu por uma coleira é uma imagem clássica da dominadora. E nos perguntamos em que medida as torturas sexuais infligidas aos presos em Abu Ghraib se inspiraram no vasto repertório de imagens pornográficas disponível na internet — imagens que pessoas comuns tentaram emular, enviando elas mesmas os seus arquivos de computador.
Viver é ser fotografado, ter um registro da sua vida e, portanto, continuar a viver inconsciente, ou fingindo não ter consciência, das atenções incessantes da câmera. Mas viver é também posar. Agir é participar da comunidade de ações registradas como imagens. A expressão de satisfação com os atos de tortura infligidos a vítimas nuas, indefesas, amarradas é apenas uma parte da história. Há a profunda satisfação de ser fotografado, à qual hoje as pessoas estão mais inclinadas a reagir não com um olhar duro e direto (como acontecia antigamente), mas com alegria. Os fatos destinam-se, em parte, a ser fotografados. O sorriso é um sorriso para a câmera. Ficaria faltando alguma coisa se, depois de fazer uma pilha de homens nus, não se pudesse tirar uma foto deles.
Ao olhar para essas fotos, nos perguntamos: como alguém pode sorrir diante do sofrimento e da humilhação de outro ser humano? Atiçar cães de guarda contra os órgãos genitais e as pernas de prisioneiros nus agachados? Prisioneiros encapuzados, algemados, obrigados a se masturbarem ou simular sexo oral uns com os outros? E nos sentimos ingênuos ao perguntar, pois a resposta é, obviamente, que as pessoas fazem isso umas com as outras. Estupro e dor causada nos órgãos genitais estão entre as formas de tortura mais comuns. Não só nos campos de concentração nazistas e em Abu Ghraib, quando era dirigido por Saddam Hussein. Americanos também agiram e agem assim quando recebem ordens, ou quando são levados a sentir que as pessoas sobre as quais têm um poder absoluto merecem ser humilhadas, atormentadas. Agem assim quando são levados a crer que as pessoas que estão torturando pertencem a uma raça ou religião inferior. Pois o sentido dessas fotos não é só que tais atos foram praticados, mas que os seus perpetradores parecem não ter a menor idéia de que haja algo errado no que as fotos mostram.
E mais estarrecedor ainda, uma vez que as fotos destinavam-se a ser difundidas e vistas por muita gente: tudo era diversão. E essa ideia de diversão, infelizmente, cada vez mais — ao contrário do que o sr. Bush anda dizendo para o mundo —, faz parte da “verdadeira natureza e coração dos Estados Unidos”. É difícil medir a crescente aceitação da brutalidade na vida americana, mas sua evidência está em toda parte, a começar pelos videogames de matança que são o principal entretenimento dos meninos — não há de estar muito longe o lançamento do videogame Interrogando os terroristas — e vai até a violência que se tornou endêmica nos ritos grupais de jovens, com um ímpeto exuberante. O crime violento está em baixa, contudo o prazer fácil derivado da violência parece ter aumentado. Desde os tormentos dolorosos infligidos a estudantes calouros em muitas faculdades americanas do subúrbio — retratados no filme de Richard Linklater Tontos e confusos (1993) —, até os rituais de trote de brutalidade física e humilhação sexual em fraternidades das faculdades e em equipes esportivas, os Estados Unidos tornaram-se um país em que as fantasias e as práticas da violência são vistas como um bom entretenimento, uma diversão.
O que antes era segregado como pornografia, como o exercício de desejos sadomasoquistas radicais — como no último e inassistível filme de Pier Paolo Pasolini, Salò (1975), que retrata orgias de tortura no reduto fascista ao norte da Itália no fim da era Mussolini —, agora está sendo normalizado pelos apóstolos da nova, imperial, belicosa América, como brincadeiras de júbilo ou descontração. “Empilhar homens nus” é semelhante a uma brincadeira de fraternidade universitária, disse por telefone um ouvinte no programa de Rush Limbaugh, e também os muitos milhões de americanos que ouvem o seu programa de rádio. Podemos nos perguntar: será que essa pessoa de fato viu as fotografias? Não importa. O comentário — ou será uma fantasia? — acertou em cheio. O que talvez ainda seja capaz de chocar alguns americanos é a reação de Limbaugh: “Exatamente!”, exclamou ele. “É exatamente isso o que penso. Não é nem um pouco diferente do que acontece na recepção de calouros na sociedade secreta de estudantes Crânio e Caveira, na Universidade de Yale, e vamos arruinar a vida das pessoas por causa disso, e vamos criar embaraços para o nosso esforço militar, e vamos então de fato marretá-los porque eles estão se divertindo?” “Eles” são os soldados americanos, os torturadores. E Limbaugh prossegue: “Sabe, essas pessoas estão sob o fogo inimigo todos os dias. Eu estou falando de pessoas que se divertem, é o caso delas. Já ouviram falar em alívio emocional?”.
É provável que um número bem grande de americanos prefira pensar que não há nenhum problema em torturar e humilhar outros seres humanos — que, na condição de nossos inimigos supostos ou suspeitos, perderam todos os seus direitos — a reconhecer a loucura, a incompetência e o engodo da aventura americana no Iraque. Quanto ao fato de a tortura e a humilhação sexual serem vistas como diversão, parece haver pouca oposição a essa tendência, enquanto os Estados Unidos continuam a tornar-se um Estado militarizado, onde os patriotas se definem como aqueles que têm um respeito incondicional pelo poder armado e pela necessidade de máxima vigilância doméstica. E essas fotos que os americanos distribuíram anunciam ao mundo choque e terrível estupefação: um padrão de comportamento criminoso em franco desacato às convenções humanitárias internacionais. Soldados agora posam, com o polegar para cima, perante as atrocidades que cometem, e enviam as fotos para seus companheiros. Deveríamos ficar totalmente surpresos? Em nossa sociedade, na qual antigamente se fazia de tudo para esconder os segredos da vida privada, agora as pessoas clamam para ser convidadas a um programa de tevê a fim de justamente revelar tais segredos. O que essas fotos ilustram é tanto a cultura da falta de vergonha como a reinante admiração da brutalidade que não pede desculpas.
A ideia de que desculpas ou profissões de “pesar” feitas pelo presidente e pela secretária de Defesa são uma reação suficiente constitui um insulto ao nosso senso histórico e moral. A tortura de prisioneiros não é uma aberração. É uma conseqüência direta da doutrina “ou está conosco ou está contra nós” de conflito mundial, com a qual o governo Bush procurou mudar, e mudar radicalmente, a postura internacional dos Estados Unidos e reformular muitas instituições e prerrogativas domésticas. O governo Bush envolveu o país numa doutrina de guerra pseudo-religiosa, de guerra interminável — pois a “guerra contra o terror” nada mais é do que isso. O que aconteceu no novo império carcerário internacional dirigido pelas Forças Armadas dos Estados Unidos ultrapassa os famigerados procedimentos da Ilha do Diabo francesa ou do sistema do Gulag da União Soviética, que no caso da ilha penal francesa contavam, primeiro, com processos e sentenças judiciais, e no caso do império prisional russo, com uma acusação de algum tipo e uma sentença de um número específico de anos. Trava-se uma guerra sem fim para justificar encarceramentos sem fim. As pessoas presas no império penal extralegal americano são “detidas”; “prisioneiras”, palavra que acaba de se tornar obsoleta, poderia sugerir que elas têm os direitos conferidos pelas leis internacionais e pelas leis de todos os países civilizados. Essa interminável “guerra global contra o terrorismo” — na qual tanto a bastante justificável invasão do Afeganistão e a invencível insensatez do Iraque foram incluídas por um decreto do Pentágono — leva inevitavelmente à demonização e à desumanização de qualquer pessoa que o governo Bush declare ser um possível terrorista: uma definição que não é objeto de debate e, na verdade, é em geral feita em segredo.
Como não existem acusações contra a maioria das pessoas detidas nas prisões no Iraque e no Afeganistão — a Cruz Vermelha informa que entre 70% e 90% dos presos parecem não ter cometido nenhum crime, exceto simplesmente estar no lugar errado na hora errada, recolhidos em alguma leva de “suspeitos” —, a principal justificativa para mantê-los presos é um “interrogatório”. Interrogatório sobre o quê? Sobre qualquer coisa. O que quer que o preso saiba. Se o interrogatório é o motivo para deter prisioneiros por um tempo indefinido, então a coerção física, a humilhação e a tortura tornam-se inevitáveis.
Lembremos: não estamos falando daquele caso raríssimo, a situação “bomba-relógio”, que é às vezes usada como caso-limite que justifica a tortura de presos que possuem um conhecimento de um ataque iminente. Trata-se de uma coleta de informações inespecífica ou genérica, sancionada pelas Forças Armadas americanas e pelos governantes civis a fim de saber mais a respeito de um nebuloso império de malfeitores, sobre os quais os americanos não sabem quase nada, em países sobre os quais eles são especialmente ignorantes: em princípio, toda e qualquer informação pode ser útil. Um interrogatório que não produz nenhuma informação (não importa em que consista essa informação) será considerado um fracasso. Por isso é mais justificável ainda que se preparem os prisioneiros para falar. Amolecer os prisioneiros, deixá-los debilitados — são eufemismos para as práticas bestiais nas prisões americanas onde suspeitos de terrorismo estão detidos. Infelizmente, parece que são muitos aqueles que ficam debilitados demais e morrem.
As fotos não vão desaparecer. Essa é a natureza do mundo digital em que vivemos. De fato, parece que elas eram necessárias para levar os nossos líderes a reconhecer que tinham um problema nas mãos. Afinal, as conclusões dos relatórios compilados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e outros relatos feitos por jornalistas e protestos apresentados por organizações humanitárias sobre os castigos atrozes infligidos aos “detidos” e “suspeitos de terrorismo” nas prisões dirigidas pelas Forças Armadas americanas, primeiro no Afeganistão e depois no Iraque, já circulavam havia mais de um ano. Parece duvidoso que tais relatórios tenham sido lidos pelo sr. Bush, pelo sr. Cheney, pela sra. Rice ou pelo sr. Rumsfeld. Ao que parece, foi preciso que as fotos surgissem para que a atenção deles despertasse, quando ficou claro que elas não poderiam ser apagadas; foram as fotos que tornaram tudo isso “real” para o presidente e seus associados. Até então, só havia palavras, que são mais fáceis de encobrir, em nossa era de auto-reprodução e autodisseminação digitais infinitas, e, portanto, muito mais fáceis de esquecer.
Assim, as fotos agora continuarão a nos “agredir” — como muitos americanos são forçados a sentir. Será que as pessoas irão se acostumar com elas? Alguns americanos andam dizendo que já viram demais. Porém o resto do mundo pensa diferente. Guerra interminável: fluxo de fotos interminável. Será que os editores irão agora debater se devem mostrar mais fotos, ou se mostrá-las sem cortes (o que, no caso de algumas das mais conhecidas imagens, como a de um homem encapuzado sobre uma caixa, forma uma imagem diferente e, em certos exemplos, mais aterradora) seria “mau gosto” ou implicitamente político demais? Por “político” entenda-se: “crítico” do projeto imperial do governo Bush. Pois não pode haver nenhuma dúvida de que as fotos prejudicam, como atestou o sr. Rumsfeld, “a reputação dos homens e mulheres honrados das Forças Armadas que estão corajosamente e com toda a responsabilidade e profissionalismo defendendo a nossa liberdade em todo o mundo”. Esse prejuízo — à nossa reputação, nossa imagem, nosso sucesso como única superpotência — é aquilo que o governo Bush deplora acima de tudo. Como a proteção da “nossa liberdade” — a liberdade de 5% da humanidade — chegou ao ponto de exigir a presença de soldados americanos em todo o mundo é uma questão nunca discutida pelos nossos governantes eleitos. Os Estados Unidos vêem a si mesmos como uma vítima do terror futuro ou potencial. Os Estados Unidos estão apenas se defendendo, contra inimigos furtivos e implacáveis.
A reação violenta já começou. Os americanos estão sendo advertidos por se entregarem a uma orgia de autocondenação. A contínua publicação das fotos está sendo vista por muitos americanos como uma sugestão de que não temos o direito de nos defender: afinal, eles (os terroristas) começaram. Eles — Osama bin Laden? Saddam Hussein? Qual a diferença? — nos atacaram primeiro. James Inhofe, de Oklahoma, membro republicano do Comitê do Serviço Militar do Senado, diante do qual o secretário Rumsfeld prestou testemunho, confessou que tinha certeza de que ele não era o único membro do comitê “mais ultrajado pelo ultraje” das fotos do que pelo que as fotos mostravam. “Esses prisioneiros, sabe”, explicou o senador Inhofe, “não estão lá por uma violação das regras de trânsito. Se eles estão no bloco de celas 1-A ou 1-B, esses prisioneiros são assassinos, são terroristas, são insurgentes. Muitos deles provavelmente têm sangue americano nas mãos, e nós vamos ficar preocupados aqui com o tratamento recebido por esses elementos?” É culpa da “mídia”, que está provocando e vai continuar a provocar mais violência contra os americanos em todo o mundo. Mais americanos vão morrer. Por causa dessas fotos.
Seria um grande erro deixar que tais revelações da autorização da tortura, autorização feita pelas forças militares americanas e pelas autoridades civis americanas, na “guerra global contra o terrorismo” se tornem uma questão de guerra de — e contra — imagens. Os americanos estão morrendo não por causa das fotos, mas por causa daquilo que as fotos mostram que está acontecendo, acontecendo sob as ordens e com a cumplicidade de uma cadeia de comando que chega aos níveis mais altos do governo Bush. Mas a distinção entre foto e realidade — como entre enquadrar o assunto de um ângulo favorável na imprensa e uma estratégia política — pode evaporar-se facilmente. E é isso o que o governo Bush quer que aconteça.
“Existem muito mais fotos e vídeos”, admitiu o sr. Rumsfeld em seu depoimento. “Se forem liberadas para o público, obviamente a situação irá piorar.” Piorar para o governo e seus projetos, supostamente, não para aqueles que são as efetivas — e potenciais — vítimas da tortura.
A mídia pode se autocensurar, mas como reconhece o sr. Rumsfeld é difícil censurar os soldados que estão em outros países, que não escrevem cartas para casa, como antigamente, cartas que podem ser abertas por censores militares que riscam os trechos inaceitáveis. Em vez disso, os soldados de hoje agem como turistas, conforme disse o sr. Rumsfeld, “saem por aí com câmeras digitais e tiram essas fotos inacreditáveis e depois as enviam, contra a lei, para a mídia, para a nossa surpresa”. O esforço do governo para reter as fotos se dá em diversas frentes ao mesmo tempo. No momento, a discussão está assumindo uma feição legalista: as fotos são agora classificadas como provas para futuros processos criminais, cujo resultado pode ser prejudicado se elas forem divulgadas. O presidente republicano do Comitê do Serviço Militar do Senado, John Warner, da Virgínia, depois da apresentação das fotos em slides, no dia 12 de maio, mostrando seguidas imagens de humilhação e violência sexual contra prisioneiros iraquianos, disse estar “firmemente convencido” de que as novas fotos “não devem ser divulgadas. Creio que isso poderia pôr em perigo os homens e as mulheres das Forças Armadas, pois estão em atividade e sob grande risco”.
Mas a verdadeira iniciativa de limitar o acesso às fotos virá do esforço contínuo de proteger o governo e encobrir os nossos desmandos no Iraque — identificar o “ultraje” das fotos com uma campanha para minar o poder militar americano e os propósitos a que ele atualmente serve. Assim como muitos achavam que as imagens de soldados americanos mortos durante a invasão e a ocupação do Iraque que apareciam na televisão eram uma crítica implícita da guerra, divulgar as novas fotos e macular mais ainda a imagem dos Estados Unidos será entendido, de modo crescente, como impatriótico.
Afinal, estamos em guerra. Guerra interminável. E a guerra é um inferno maior do que as pessoas que nos colocaram nessa guerra podre parecem ter planejado. Em nossa sala de espelhos digital, as fotos não vão desaparecer. Sim, parece que uma foto vale mil palavras. E mesmo que nossos líderes prefiram não olhar para elas, haverá outros milhares de instantâneos e de vídeos. Incontroláveis.
Susan Sontag, "Ao Mesmo Tempo — Ensaios e Discursos"
O governo Bush e seus defensores procuraram acima de tudo limitar um desastre de relações públicas — a disseminação das fotos —, em vez de enfrentar os complexos crimes de liderança e de estratégia revelados pelas fotos. Antes de tudo, houve o deslocamento da realidade para as fotos em si. A reação inicial do governo foi dizer que o presidente estava chocado e indignado com as fotos — como se o erro ou o horror estivesse nas imagens, não no que elas retratam. Evitou-se também a palavra “tortura”. Os prisioneiros foram talvez objetos de “maus-tratos”, ou até de “humilhação” — isso foi o máximo que se admitiu. “Minha impressão é de que, até agora, se trata de uma acusação de maus-tratos, o que creio ser tecnicamente diferente de tortura”, disse o secretário de Defesa Donald Rumsfeld numa entrevista coletiva. “E, portanto, não vou usar a palavra ‘tortura’.”
Palavras alteram, palavras acrescentam, palavras subtraem. Foi a insistência em evitar a palavra “genocídio”, enquanto cerca de 800 mil tútsis em Ruanda estavam sendo massacrados, durante poucas semanas, pelos seus vizinhos hútus, dez anos atrás, que indicou que o governo americano não tinha a menor intenção de fazer nada. Recusar-se a chamar o que ocorreu em Abu Ghraib — e aconteceu em outros locais do Iraque e do Afeganistão, e na baía de Guantánamo — pelo seu nome verdadeiro, tortura, é tão escandaloso quanto a recusa de chamar o genocídio de Ruanda de genocídio. Aqui está uma das definições de tortura contidas na convenção da qual os Estados Unidos são signatários: “Qualquer ato mediante o qual uma dor ou um sofrimento forte, físico ou mental, é causado intencionalmente a uma pessoa, com propósitos como obter dela ou de uma terceira pessoa alguma informação ou uma confissão”. (A definição provém da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984. Definições semelhantes existiram durante algum tempo em leis consuetudinárias e em tratados, a começar pelo Artigo 3 — comum às quatro Convenções de Genebra, de 1949 — e muitas convenções de direitos humanos recentes.) A convenção de 1984 declara: “Nenhuma circunstância excepcional, qualquer que seja ela, mesmo um estado de guerra ou uma ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer emergência pública, pode ser invocada como justificativa da tortura”. E todos os acordos sobre tortura fazem referência ao tratamento destinado a humilhar a vítima, como deixar prisioneiros nus em celas e corredores.
Qualquer que seja a ação que esse governo implemente a fim de reduzir os prejuízos da ampla divulgação da tortura de prisioneiros em Abu Ghraib e outros locais — processos, cortes marciais, exoneração desonrosa, demissão de autoridades militares em altos cargos e de funcionários do governo, além de uma substancial compensação às vítimas —, é provável que a palavra “tortura” continue banida. Reconhecer que americanos torturam seus prisioneiros seria contradizer tudo o que esse governo pediu que o público acreditasse a respeito da virtude das intenções americanas e da universalidade dos valores americanos, o que é a suprema e triunfalista justificativa do direito americano a uma ação unilateral no mundo, em defesa de seus interesses e segurança.
Mesmo quando o presidente foi por fim coagido a usar a palavra “pesaroso”, em vista da ampliação e exacerbação da má reputação dos Estados Unidos em todo o mundo, o foco do pesar ainda parecia ser o estrago causado à pretensão americana de uma superioridade moral, ao seu objetivo hegemônico de levar “a liberdade e a democracia” ao ignorante Oriente Médio. Sim, o senhor Bush disse em Washington no dia 6 de maio, ao lado do rei Abdullah II, da Jordânia, que estava “pesaroso pela humilhação padecida pelos prisioneiros iraquianos e por seus familiares”. Mas prosseguiu e disse que estava “igualmente pesaroso porque as pessoas que viram essas fotos não compreenderam a verdadeira natureza e coração dos Estados Unidos”.
O fato de o esforço americano no Iraque ter sido sintetizado por essas imagens deve parecer “injusto” para aqueles que viam alguma justificativa numa guerra que de fato derrubou um dos tiranos monstruosos dos tempos modernos. Uma guerra, uma ocupação, é inevitavelmente uma imensa tapeçaria de ações. O que torna algumas ações representativas e outras não? A questão não é se a tortura foi praticada por indivíduos (ou seja, “não por todo mundo”), mas se foi sistemática. Autorizada. Sancionada. Todas as ações são praticadas por indivíduos. A questão não é se a maioria ou a minoria dos americanos pratica tais atos, mas se a natureza da política desenvolvida por esse governo e as hierarquias aplicadas para implementá-la tornam tais atos prováveis.
Vistas sob essa luz, as fotos somos nós. Ou seja, são representativas da corrupção fundamental de qualquer ocupação estrangeira associada à política distintiva do governo Bush. Os belgas no Congo, os franceses na Argélia, praticaram tortura e humilhações sexuais em desprezados nativos recalcitrantes. Acrescentemos a essa corrupção genérica o desconcertante e quase total despreparo dos governantes americanos do Iraque para lidar com as realidades complexas do país após a sua “liberação” — ou seja, conquista. E acrescentemos a isso as doutrinas abrangentes do governo Bush, em especial a doutrina de que os Estados Unidos entraram numa guerra sem fim (contra um inimigo polimorfo chamado “terrorismo”) e que as pessoas presas nessa guerra são, se o presidente assim decidir, “combatentes ilegais” — uma política formulada por Donald Rumsfeld já em janeiro de 2002 —, e assim, segundo Rumsfeld, “tecnicamente sem nenhum direito à Convenção de Genebra”, e temos uma receita perfeita para os crimes e as crueldades cometidas contra milhares de pessoas encarceradas sem julgamento e sem acesso a advogados em prisões dirigidas por americanos, criadas a partir dos ataques de 11 de setembro de 2001.
Portanto, a questão real não são as fotos em si, mas o que as fotos revelam que aconteceu com “suspeitos” sob custódia de americanos? Não: o horror do que é mostrado nas fotos não pode ser separado do horror do fato de as fotos terem sido tiradas — com os perpetradores fazendo pose, caras de contentes, sobre os seus cativos indefesos. Os soldados alemães na Segunda Guerra Mundial tiraram fotos das atrocidades que estavam cometendo na Polônia e na Rússia, mas instantâneos em que os carrascos se colocavam entre as suas vítimas são extremamente raros, como se pode ver em Fotografando o Holocausto, de Janina Struk. Se há algo comparável ao que essas fotos mostram, talvez sejam as fotos de vítimas negras de linchamento tiradas entre 1880 e 1930, que mostram americanos sorrindo embaixo do corpo mutilado e queimado de um homem ou de uma mulher negra, pendurado numa árvore às suas costas. As fotos de linchamento eram suvenires de uma ação coletiva, cujos participantes se sentiam perfeitamente justificados naquilo que tinham feito. Assim são as fotos de Abu Ghraib.
Se existe uma diferença, é uma diferença criada pela crescente ubiquidade de ações fotográficas. As fotos de linchamento eram da natureza das fotos como troféus — tiradas por um fotógrafo a fim de ser colecionadas, guardadas em álbuns, mostradas. As tiradas por soldados americanos em Abu Ghraib, porém, refletem uma mudança no uso feito de fotos — menos objetos que se devem salvar do que mensagens que se devem disseminar, difundir. Uma câmera digital é um bem comum entre soldados. Onde antes a fotografia de guerra constituía um domínio de repórteres-fotográficos, agora os próprios soldados são fotógrafos completos — registram a sua guerra, a sua diversão, as suas observações do que acham pitoresco, as suas atrocidades — e trocam fotos entre si, enviam fotos por e-mail para o mundo inteiro.
Há cada vez mais registros daquilo que as pessoas fazem, registros obtidos por elas mesmas. Pelo menos ou especialmente nos Estados Unidos, o ideal de Andy Warhol de filmar fatos reais em tempo real — a vida não é editada, por que seu registro deveria ser? — tornou-se uma norma para incontáveis sites da internet, nos quais as pessoas registram o seu dia, cada um no seu reality show particular. Aqui estou eu — andando, bocejando, me espreguiçando, escovando os dentes, tomando o café-da-manhã, levando os filhos à escola. As pessoas registram todos os aspectos da sua vida, guardam em arquivos de computador e despacham os arquivos para toda parte. A vida familiar caminha junto com o registro da vida familiar — mesmo, ou sobretudo, quando a família se acha nos estertores de uma crise ou numa grande infelicidade. Sem dúvida, a dedicada e incessante produção de vídeos domésticos em que uns filmavam os outros, em conversas ou em monólogos, ao longo de muitos anos, constituiu o material mais impressionante em Capturing the Friedmans (2003), documentário de Andrew Jarecki sobre uma família de Long Island envolvida em processos de pedofilia.
Uma vida erótica é, para um número cada vez maior de pessoas, aquilo que pode ser captado em fotos digitais e em vídeo. E talvez a tortura seja mais atraente, como algo para registrar, quando contém um componente sexual. À medida que mais fotos de Abu Ghraib se oferecem ao público, revela-se com certeza que as fotos de tortura aparecem intercaladas com imagens pornográficas em que soldados americanos se mostram fazendo sexo entre si. De fato, a maioria das fotos de tortura tem um tema sexual, como na que mostra a coerção de prisioneiros a praticarem, ou simularem, atos sexuais entre si. Uma exceção, já canônica, é a foto de um homem obrigado a ficar de pé sobre uma caixa, de capuz e envolto em fios elétricos, a quem informaram que seria eletrocutado se caísse. Contudo, fotos de prisioneiros mantidos em posições dolorosas, ou obrigados a ficar de pé com os braços abertos, são raras. Não dá para contestar que sejam tortura. Basta olhar para o terror no rosto da vítima. Mas a maioria das fotos parece parte de uma confluência mais vasta de tortura e pornografia: uma jovem conduzindo um homem nu por uma coleira é uma imagem clássica da dominadora. E nos perguntamos em que medida as torturas sexuais infligidas aos presos em Abu Ghraib se inspiraram no vasto repertório de imagens pornográficas disponível na internet — imagens que pessoas comuns tentaram emular, enviando elas mesmas os seus arquivos de computador.
Viver é ser fotografado, ter um registro da sua vida e, portanto, continuar a viver inconsciente, ou fingindo não ter consciência, das atenções incessantes da câmera. Mas viver é também posar. Agir é participar da comunidade de ações registradas como imagens. A expressão de satisfação com os atos de tortura infligidos a vítimas nuas, indefesas, amarradas é apenas uma parte da história. Há a profunda satisfação de ser fotografado, à qual hoje as pessoas estão mais inclinadas a reagir não com um olhar duro e direto (como acontecia antigamente), mas com alegria. Os fatos destinam-se, em parte, a ser fotografados. O sorriso é um sorriso para a câmera. Ficaria faltando alguma coisa se, depois de fazer uma pilha de homens nus, não se pudesse tirar uma foto deles.
Ao olhar para essas fotos, nos perguntamos: como alguém pode sorrir diante do sofrimento e da humilhação de outro ser humano? Atiçar cães de guarda contra os órgãos genitais e as pernas de prisioneiros nus agachados? Prisioneiros encapuzados, algemados, obrigados a se masturbarem ou simular sexo oral uns com os outros? E nos sentimos ingênuos ao perguntar, pois a resposta é, obviamente, que as pessoas fazem isso umas com as outras. Estupro e dor causada nos órgãos genitais estão entre as formas de tortura mais comuns. Não só nos campos de concentração nazistas e em Abu Ghraib, quando era dirigido por Saddam Hussein. Americanos também agiram e agem assim quando recebem ordens, ou quando são levados a sentir que as pessoas sobre as quais têm um poder absoluto merecem ser humilhadas, atormentadas. Agem assim quando são levados a crer que as pessoas que estão torturando pertencem a uma raça ou religião inferior. Pois o sentido dessas fotos não é só que tais atos foram praticados, mas que os seus perpetradores parecem não ter a menor idéia de que haja algo errado no que as fotos mostram.
E mais estarrecedor ainda, uma vez que as fotos destinavam-se a ser difundidas e vistas por muita gente: tudo era diversão. E essa ideia de diversão, infelizmente, cada vez mais — ao contrário do que o sr. Bush anda dizendo para o mundo —, faz parte da “verdadeira natureza e coração dos Estados Unidos”. É difícil medir a crescente aceitação da brutalidade na vida americana, mas sua evidência está em toda parte, a começar pelos videogames de matança que são o principal entretenimento dos meninos — não há de estar muito longe o lançamento do videogame Interrogando os terroristas — e vai até a violência que se tornou endêmica nos ritos grupais de jovens, com um ímpeto exuberante. O crime violento está em baixa, contudo o prazer fácil derivado da violência parece ter aumentado. Desde os tormentos dolorosos infligidos a estudantes calouros em muitas faculdades americanas do subúrbio — retratados no filme de Richard Linklater Tontos e confusos (1993) —, até os rituais de trote de brutalidade física e humilhação sexual em fraternidades das faculdades e em equipes esportivas, os Estados Unidos tornaram-se um país em que as fantasias e as práticas da violência são vistas como um bom entretenimento, uma diversão.
O que antes era segregado como pornografia, como o exercício de desejos sadomasoquistas radicais — como no último e inassistível filme de Pier Paolo Pasolini, Salò (1975), que retrata orgias de tortura no reduto fascista ao norte da Itália no fim da era Mussolini —, agora está sendo normalizado pelos apóstolos da nova, imperial, belicosa América, como brincadeiras de júbilo ou descontração. “Empilhar homens nus” é semelhante a uma brincadeira de fraternidade universitária, disse por telefone um ouvinte no programa de Rush Limbaugh, e também os muitos milhões de americanos que ouvem o seu programa de rádio. Podemos nos perguntar: será que essa pessoa de fato viu as fotografias? Não importa. O comentário — ou será uma fantasia? — acertou em cheio. O que talvez ainda seja capaz de chocar alguns americanos é a reação de Limbaugh: “Exatamente!”, exclamou ele. “É exatamente isso o que penso. Não é nem um pouco diferente do que acontece na recepção de calouros na sociedade secreta de estudantes Crânio e Caveira, na Universidade de Yale, e vamos arruinar a vida das pessoas por causa disso, e vamos criar embaraços para o nosso esforço militar, e vamos então de fato marretá-los porque eles estão se divertindo?” “Eles” são os soldados americanos, os torturadores. E Limbaugh prossegue: “Sabe, essas pessoas estão sob o fogo inimigo todos os dias. Eu estou falando de pessoas que se divertem, é o caso delas. Já ouviram falar em alívio emocional?”.
É provável que um número bem grande de americanos prefira pensar que não há nenhum problema em torturar e humilhar outros seres humanos — que, na condição de nossos inimigos supostos ou suspeitos, perderam todos os seus direitos — a reconhecer a loucura, a incompetência e o engodo da aventura americana no Iraque. Quanto ao fato de a tortura e a humilhação sexual serem vistas como diversão, parece haver pouca oposição a essa tendência, enquanto os Estados Unidos continuam a tornar-se um Estado militarizado, onde os patriotas se definem como aqueles que têm um respeito incondicional pelo poder armado e pela necessidade de máxima vigilância doméstica. E essas fotos que os americanos distribuíram anunciam ao mundo choque e terrível estupefação: um padrão de comportamento criminoso em franco desacato às convenções humanitárias internacionais. Soldados agora posam, com o polegar para cima, perante as atrocidades que cometem, e enviam as fotos para seus companheiros. Deveríamos ficar totalmente surpresos? Em nossa sociedade, na qual antigamente se fazia de tudo para esconder os segredos da vida privada, agora as pessoas clamam para ser convidadas a um programa de tevê a fim de justamente revelar tais segredos. O que essas fotos ilustram é tanto a cultura da falta de vergonha como a reinante admiração da brutalidade que não pede desculpas.
A ideia de que desculpas ou profissões de “pesar” feitas pelo presidente e pela secretária de Defesa são uma reação suficiente constitui um insulto ao nosso senso histórico e moral. A tortura de prisioneiros não é uma aberração. É uma conseqüência direta da doutrina “ou está conosco ou está contra nós” de conflito mundial, com a qual o governo Bush procurou mudar, e mudar radicalmente, a postura internacional dos Estados Unidos e reformular muitas instituições e prerrogativas domésticas. O governo Bush envolveu o país numa doutrina de guerra pseudo-religiosa, de guerra interminável — pois a “guerra contra o terror” nada mais é do que isso. O que aconteceu no novo império carcerário internacional dirigido pelas Forças Armadas dos Estados Unidos ultrapassa os famigerados procedimentos da Ilha do Diabo francesa ou do sistema do Gulag da União Soviética, que no caso da ilha penal francesa contavam, primeiro, com processos e sentenças judiciais, e no caso do império prisional russo, com uma acusação de algum tipo e uma sentença de um número específico de anos. Trava-se uma guerra sem fim para justificar encarceramentos sem fim. As pessoas presas no império penal extralegal americano são “detidas”; “prisioneiras”, palavra que acaba de se tornar obsoleta, poderia sugerir que elas têm os direitos conferidos pelas leis internacionais e pelas leis de todos os países civilizados. Essa interminável “guerra global contra o terrorismo” — na qual tanto a bastante justificável invasão do Afeganistão e a invencível insensatez do Iraque foram incluídas por um decreto do Pentágono — leva inevitavelmente à demonização e à desumanização de qualquer pessoa que o governo Bush declare ser um possível terrorista: uma definição que não é objeto de debate e, na verdade, é em geral feita em segredo.
Como não existem acusações contra a maioria das pessoas detidas nas prisões no Iraque e no Afeganistão — a Cruz Vermelha informa que entre 70% e 90% dos presos parecem não ter cometido nenhum crime, exceto simplesmente estar no lugar errado na hora errada, recolhidos em alguma leva de “suspeitos” —, a principal justificativa para mantê-los presos é um “interrogatório”. Interrogatório sobre o quê? Sobre qualquer coisa. O que quer que o preso saiba. Se o interrogatório é o motivo para deter prisioneiros por um tempo indefinido, então a coerção física, a humilhação e a tortura tornam-se inevitáveis.
Lembremos: não estamos falando daquele caso raríssimo, a situação “bomba-relógio”, que é às vezes usada como caso-limite que justifica a tortura de presos que possuem um conhecimento de um ataque iminente. Trata-se de uma coleta de informações inespecífica ou genérica, sancionada pelas Forças Armadas americanas e pelos governantes civis a fim de saber mais a respeito de um nebuloso império de malfeitores, sobre os quais os americanos não sabem quase nada, em países sobre os quais eles são especialmente ignorantes: em princípio, toda e qualquer informação pode ser útil. Um interrogatório que não produz nenhuma informação (não importa em que consista essa informação) será considerado um fracasso. Por isso é mais justificável ainda que se preparem os prisioneiros para falar. Amolecer os prisioneiros, deixá-los debilitados — são eufemismos para as práticas bestiais nas prisões americanas onde suspeitos de terrorismo estão detidos. Infelizmente, parece que são muitos aqueles que ficam debilitados demais e morrem.
As fotos não vão desaparecer. Essa é a natureza do mundo digital em que vivemos. De fato, parece que elas eram necessárias para levar os nossos líderes a reconhecer que tinham um problema nas mãos. Afinal, as conclusões dos relatórios compilados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e outros relatos feitos por jornalistas e protestos apresentados por organizações humanitárias sobre os castigos atrozes infligidos aos “detidos” e “suspeitos de terrorismo” nas prisões dirigidas pelas Forças Armadas americanas, primeiro no Afeganistão e depois no Iraque, já circulavam havia mais de um ano. Parece duvidoso que tais relatórios tenham sido lidos pelo sr. Bush, pelo sr. Cheney, pela sra. Rice ou pelo sr. Rumsfeld. Ao que parece, foi preciso que as fotos surgissem para que a atenção deles despertasse, quando ficou claro que elas não poderiam ser apagadas; foram as fotos que tornaram tudo isso “real” para o presidente e seus associados. Até então, só havia palavras, que são mais fáceis de encobrir, em nossa era de auto-reprodução e autodisseminação digitais infinitas, e, portanto, muito mais fáceis de esquecer.
Assim, as fotos agora continuarão a nos “agredir” — como muitos americanos são forçados a sentir. Será que as pessoas irão se acostumar com elas? Alguns americanos andam dizendo que já viram demais. Porém o resto do mundo pensa diferente. Guerra interminável: fluxo de fotos interminável. Será que os editores irão agora debater se devem mostrar mais fotos, ou se mostrá-las sem cortes (o que, no caso de algumas das mais conhecidas imagens, como a de um homem encapuzado sobre uma caixa, forma uma imagem diferente e, em certos exemplos, mais aterradora) seria “mau gosto” ou implicitamente político demais? Por “político” entenda-se: “crítico” do projeto imperial do governo Bush. Pois não pode haver nenhuma dúvida de que as fotos prejudicam, como atestou o sr. Rumsfeld, “a reputação dos homens e mulheres honrados das Forças Armadas que estão corajosamente e com toda a responsabilidade e profissionalismo defendendo a nossa liberdade em todo o mundo”. Esse prejuízo — à nossa reputação, nossa imagem, nosso sucesso como única superpotência — é aquilo que o governo Bush deplora acima de tudo. Como a proteção da “nossa liberdade” — a liberdade de 5% da humanidade — chegou ao ponto de exigir a presença de soldados americanos em todo o mundo é uma questão nunca discutida pelos nossos governantes eleitos. Os Estados Unidos vêem a si mesmos como uma vítima do terror futuro ou potencial. Os Estados Unidos estão apenas se defendendo, contra inimigos furtivos e implacáveis.
A reação violenta já começou. Os americanos estão sendo advertidos por se entregarem a uma orgia de autocondenação. A contínua publicação das fotos está sendo vista por muitos americanos como uma sugestão de que não temos o direito de nos defender: afinal, eles (os terroristas) começaram. Eles — Osama bin Laden? Saddam Hussein? Qual a diferença? — nos atacaram primeiro. James Inhofe, de Oklahoma, membro republicano do Comitê do Serviço Militar do Senado, diante do qual o secretário Rumsfeld prestou testemunho, confessou que tinha certeza de que ele não era o único membro do comitê “mais ultrajado pelo ultraje” das fotos do que pelo que as fotos mostravam. “Esses prisioneiros, sabe”, explicou o senador Inhofe, “não estão lá por uma violação das regras de trânsito. Se eles estão no bloco de celas 1-A ou 1-B, esses prisioneiros são assassinos, são terroristas, são insurgentes. Muitos deles provavelmente têm sangue americano nas mãos, e nós vamos ficar preocupados aqui com o tratamento recebido por esses elementos?” É culpa da “mídia”, que está provocando e vai continuar a provocar mais violência contra os americanos em todo o mundo. Mais americanos vão morrer. Por causa dessas fotos.
Seria um grande erro deixar que tais revelações da autorização da tortura, autorização feita pelas forças militares americanas e pelas autoridades civis americanas, na “guerra global contra o terrorismo” se tornem uma questão de guerra de — e contra — imagens. Os americanos estão morrendo não por causa das fotos, mas por causa daquilo que as fotos mostram que está acontecendo, acontecendo sob as ordens e com a cumplicidade de uma cadeia de comando que chega aos níveis mais altos do governo Bush. Mas a distinção entre foto e realidade — como entre enquadrar o assunto de um ângulo favorável na imprensa e uma estratégia política — pode evaporar-se facilmente. E é isso o que o governo Bush quer que aconteça.
“Existem muito mais fotos e vídeos”, admitiu o sr. Rumsfeld em seu depoimento. “Se forem liberadas para o público, obviamente a situação irá piorar.” Piorar para o governo e seus projetos, supostamente, não para aqueles que são as efetivas — e potenciais — vítimas da tortura.
A mídia pode se autocensurar, mas como reconhece o sr. Rumsfeld é difícil censurar os soldados que estão em outros países, que não escrevem cartas para casa, como antigamente, cartas que podem ser abertas por censores militares que riscam os trechos inaceitáveis. Em vez disso, os soldados de hoje agem como turistas, conforme disse o sr. Rumsfeld, “saem por aí com câmeras digitais e tiram essas fotos inacreditáveis e depois as enviam, contra a lei, para a mídia, para a nossa surpresa”. O esforço do governo para reter as fotos se dá em diversas frentes ao mesmo tempo. No momento, a discussão está assumindo uma feição legalista: as fotos são agora classificadas como provas para futuros processos criminais, cujo resultado pode ser prejudicado se elas forem divulgadas. O presidente republicano do Comitê do Serviço Militar do Senado, John Warner, da Virgínia, depois da apresentação das fotos em slides, no dia 12 de maio, mostrando seguidas imagens de humilhação e violência sexual contra prisioneiros iraquianos, disse estar “firmemente convencido” de que as novas fotos “não devem ser divulgadas. Creio que isso poderia pôr em perigo os homens e as mulheres das Forças Armadas, pois estão em atividade e sob grande risco”.
Mas a verdadeira iniciativa de limitar o acesso às fotos virá do esforço contínuo de proteger o governo e encobrir os nossos desmandos no Iraque — identificar o “ultraje” das fotos com uma campanha para minar o poder militar americano e os propósitos a que ele atualmente serve. Assim como muitos achavam que as imagens de soldados americanos mortos durante a invasão e a ocupação do Iraque que apareciam na televisão eram uma crítica implícita da guerra, divulgar as novas fotos e macular mais ainda a imagem dos Estados Unidos será entendido, de modo crescente, como impatriótico.
Afinal, estamos em guerra. Guerra interminável. E a guerra é um inferno maior do que as pessoas que nos colocaram nessa guerra podre parecem ter planejado. Em nossa sala de espelhos digital, as fotos não vão desaparecer. Sim, parece que uma foto vale mil palavras. E mesmo que nossos líderes prefiram não olhar para elas, haverá outros milhares de instantâneos e de vídeos. Incontroláveis.
Susan Sontag, "Ao Mesmo Tempo — Ensaios e Discursos"
terça-feira, 9 de dezembro de 2025
Radicalismo de direita
Talvez alguns entre os senhores me perguntarão ou me perguntariam o que penso sob o futuro do radicalismo de direita. Penso que essa pergunta é falsa, pois ela é demasiado contemplativa. Nessa forma de pensar, que vê de antemão essas coisas como catástrofes naturais, sobre as quais se fazem previsões assim como sobre furacões ou sobre desastres meteorológicos, há já uma espécie de resignação na qual as pessoas desligam-se enquanto sujeitos políticos, há aí uma má relação de espectador com a realidade. Como essas coisas vão evoluir e a responsabilidade sobre como elas vão evoluir – isso depende, em última instância, de nós.
Theodor W. Adorno
O Estado a que chegámos
Sentam-se ao meu lado no restaurante do bairro. A sala está cheia. As mesas estão encostadas. Têm os dois camisas brancas, gravatas azuis, calças cinzentas. Um deles já passou dos 40, o outro deve andar pelos 60. “Então, os miúdos?”, pergunta o mais velho, sem saber bem por onde começar a conversa, enquanto as azeitonas chegam à mesa. “Estão no colégio, não é?” O outro responde que a mais nova está na escola pública. “Na escola pública?”, quase se engasga de espanto. “E não estão sempre a faltar?”, interroga, curioso, perante aquela extravagância do colega de almoço. “É uma escola pequena, quase não há greves. Funciona bem. Depois do 4º ano é que a coisa piora. Vai ser preciso mudar”, assevera o mais novo, tentando tranquilizar o mais velho, que lá concede, com um suspiro, que “se é assim, está bem”.
Chega o jarro de vinho tinto da casa à mesa. Sai um cachaço de porco para um, um bacalhau espiritual para outro. E a conversa continua à volta das crianças. “Aquilo no colégio do mais velho é que é só faturar”, comenta o mais novo dos comensais. “Só faturar, pois, só faturar”, reage o outro, em tom de galhofa, gargalhada aberta, enquanto cospe um caroço de azeitona e enumera as coisas “pagas à parte”, que ainda se lembra bem dos tempos em que a filha andava também numa escola privada. “São 750 euros por mês”, revela o mais novo. O mais velho estaca. “São 750 euros por mês?”, pergunta, de olhos arregalados, talvez fazendo as contas ao que ganha o colega, num cálculo rápido e assustado. “Mas ao menos come lá?”, quer saber. “Come”, sossega-o o outro, que acrescenta ao rol das despesas as exigências de materiais. “No outro dia, andei a correr não sei quantas lojas atrás de uma marca de lápis. Aquilo era caríssimo! O vendedor até me explicou que os lápis eram feitos com madeira de cedro ou não sei o quê… E eu quero lá saber! São lápis! Mas eles pedem”, resigna-se.
O mais velho lembra-se bem de como era quando a miúda estava no colégio. “Eu bem lhe dizia: ‘Não precisas de levar esse esquadro XTPO, não vais fazer desenho profissional! Levas esse e depois, se não der, logo se vê’”, recorda entre mais uma garfada de porco e batatas fritas. Chegou ao fim o jarro de tinto de casa. “Traga mais antes que acabe”, brincam para o empregado, acenando o recipiente vazio.
Começam, então, a falar do trabalho “lá do banco”, das colegas que se zangaram e do chefe novo que acabou de chegar. “Aquilo é a cultura lá do norte. Disciplina”, comenta o mais velho. “Pois, é a sério”, concorda o mais novo. Percebo, pela conversa, que estão os dois mais ou menos no mesmo barco, que neste caso é uma das agências bancárias das redondezas e que ambos encaram com algum receio o chefe novo e os novos métodos. O tom gabarolas não o esconde. Não são patrões nem banqueiros, não são CEO nem grandes investidores, não são sequer diretores. Tenho quase a certeza de que se encolheriam, com o mesmo desdém com que o mais velho encarou a hipótese de alguém pôr um filho na escola pública, se lhes dissesse o que são. Mas são isso. São trabalhadores.
Vêm de gravata ao restaurante que faz o menu do dia a 12 euros. Mas estão apertados. Estão apertados porque cada vez menos lhes chega do Estado social. Se põem um filho na escola pública, sentem quase a culpa de não estar a fazer esforço suficiente por ele. Não lhes passa pela cabeça exigir que a escola pública melhore. Isso que é de graça é para os outros, eles não, eles trabalham, não precisam cá de esmolas. E se precisam é só até à coisa se endireitar e conseguirem, a muito esforço, pagar o colégio, mesmo que ele leve uma fatia demasiado grande do rendimento familiar. É o que é. “É só faturar”, como dizia o outro, mas nada de questionar, que a escola pública é cada vez mais um lugar para os pobres, para os que ficam para trás, cheio de gente que nem fala português, vazio de professores e técnicos, uma bandalheira de faltas e greves, para onde ninguém no seu juízo atiraria os filhos, tendo outra opção, ainda que não se trate bem de opção, mas de um sacrifício. Que diabo! É um sacrifício necessário. Nem se questiona.
Não falaram de doenças, mas aposto que têm o seguro de saúde lá do banco. E, enquanto assim for, é menos uma dor de cabeça, que isto dos hospitais públicos já se sabe como é e dos centros de saúde o melhor é nem falar. Sorte foi as mulheres terem parido quando ainda não era preciso andar em bolandas, numa gincana entre hospitais, a ver qual deles terá a urgência aberta. O pior será se um dia tiverem um acidente grave ou um cancro ou uma daquelas doenças raras de nomes impronunciáveis que só se tratam com medicamentos que custam milhões. Aí, logo se vê. Mas, para já, hospitais públicos só os veem nas notícias e, claro, sabem bem que estão à pinha com os imigrantes que vêm para cá para se tratar às nossas custas, mesmo que os jornais expliquem que não é bem assim e as estatísticas o desmintam. Também quem é que ainda lê jornais? A vida já é complicada o suficiente para se estar a encher mais a cabeça com desgraças.
Saí do restaurante antes de eles chegarem à sobremesa. Deixei o mais novo a admitir que “até podia trabalhar mais, se houvesse outra organização”, num desabafo sincero, que não mereceu resposta do mais velho, visivelmente mais calejado nestas coisas, sabedor de que não é boa política mostrar fraquezas e muito menos admitir que não se faz tudo o que se pode e mais um pouco ainda. Mas, pronto, o rapaz ainda é novo, coitado, não sabe tudo da vida. Até tem a mais nova numa escola pública, vejam bem.
Há uns tempos, noutro restaurante popular no bairro ao lado, à hora de almoço, fiquei ao pé de outros dois homens de camisas brancas, mas abertas, sem gravata, com um sotaque afetado, que em menos de nada começaram a rosnar contra o adicional ao IMI – cobrado aos imóveis cuja soma do valor patrimonial tributário supera os 600 mil euros. “O imposto Mortágua”, diziam, entre a raiva e o desdém, como quem descreve um assalto. Estavam muito zangados com os impostos em geral, mas com este em particular. E lembro-me de ter pensado em como estavam bem na vida para, tão novos (ainda não chegavam aos 50), já terem este tipo de problemas. Há, de facto, problemas que são um luxo.
Os meus vizinhos de almoço, desta vez, não me parecem padecer do mesmo tipo de ansiedades tributárias. Mas, pelo pouco que lhes ouvi e pelo resto que imagino – concedam à cronista esse exercício de alguma ficção –, quase aposto que teriam reagido bem se, para meter conversa, me tivesse posto a atacar o Estado e os impostos. Não sabendo a afinidade clubística de quem está ao lado, esse é o tema mais seguro para quem quer fazer amigos de ocasião em conversas de tasco.
Sabem que mais? Não os julgo. Não com a intensidade com que julguei os dois betos endinheirados, enojados com a ideia de pagar entre 0,7% e 1% a mais de IMI sobre imóveis avaliados (sublinhem o “avaliados”) entre os 600 mil e o milhão de euros. Estes dois bancários não são rentistas e será até excessivo chamar-lhes capitalistas. São só assalariados em negação. Estão endoutrinados na ideia de que devem pagar por tudo aquilo que já pagam nos impostos.
Não é estranho que se revoltem contra os impostos. Não é estranho que se sintam espoliados. Concedo até que se sintam um pouco explorados, quando veem o que pagam para não usufruir de quase nada. E vejo que é aí, nesse ponto sensível, que fica o lugar onde medra o ódio pelo outro, aquele que não se esforça e “vive de subsídios”, mesmo que esse outro seja tão imaginado como essas fortunas de subsídios ou que esse viver seja, afinal, tão miserável que não há como o invejar.
Um Estado que anda há décadas a cortar, até se amputar no mais básico. Um Estado que acha que os serviços que presta – cada vez menos e cada vez pior – são uma espécie de esmola, que deve ser reservada aos mais pobres. Um Estado que abre os bolsos às Web Summits e dá bodos de descontos às maiores empresas, que oferece benefícios fiscais a estrangeiros ricos e a fundos que especulam com a habitação até ela deixar de ser um direito e se parecer mais com um ativo numa folha de Excel. Um Estado assim não pode admirar-se que a porta ao fascismo comece a abrir-se.
O Estado a que chegámos, meus amigos, é este. Não o escrevo com fatalismo. Recuso-me a acreditar que isto não tenha remédio. Mas escrevo-o para que fique claro que estas coisas não aparecem do nada nem são só o produto de algoritmos viciados em vídeos extremistas. O terreno onde o ódio cresce anda a ser lavrado há anos. Arrancar-lhe as raízes não se fará com as políticas do costume.
Chega o jarro de vinho tinto da casa à mesa. Sai um cachaço de porco para um, um bacalhau espiritual para outro. E a conversa continua à volta das crianças. “Aquilo no colégio do mais velho é que é só faturar”, comenta o mais novo dos comensais. “Só faturar, pois, só faturar”, reage o outro, em tom de galhofa, gargalhada aberta, enquanto cospe um caroço de azeitona e enumera as coisas “pagas à parte”, que ainda se lembra bem dos tempos em que a filha andava também numa escola privada. “São 750 euros por mês”, revela o mais novo. O mais velho estaca. “São 750 euros por mês?”, pergunta, de olhos arregalados, talvez fazendo as contas ao que ganha o colega, num cálculo rápido e assustado. “Mas ao menos come lá?”, quer saber. “Come”, sossega-o o outro, que acrescenta ao rol das despesas as exigências de materiais. “No outro dia, andei a correr não sei quantas lojas atrás de uma marca de lápis. Aquilo era caríssimo! O vendedor até me explicou que os lápis eram feitos com madeira de cedro ou não sei o quê… E eu quero lá saber! São lápis! Mas eles pedem”, resigna-se.
O mais velho lembra-se bem de como era quando a miúda estava no colégio. “Eu bem lhe dizia: ‘Não precisas de levar esse esquadro XTPO, não vais fazer desenho profissional! Levas esse e depois, se não der, logo se vê’”, recorda entre mais uma garfada de porco e batatas fritas. Chegou ao fim o jarro de tinto de casa. “Traga mais antes que acabe”, brincam para o empregado, acenando o recipiente vazio.
Começam, então, a falar do trabalho “lá do banco”, das colegas que se zangaram e do chefe novo que acabou de chegar. “Aquilo é a cultura lá do norte. Disciplina”, comenta o mais velho. “Pois, é a sério”, concorda o mais novo. Percebo, pela conversa, que estão os dois mais ou menos no mesmo barco, que neste caso é uma das agências bancárias das redondezas e que ambos encaram com algum receio o chefe novo e os novos métodos. O tom gabarolas não o esconde. Não são patrões nem banqueiros, não são CEO nem grandes investidores, não são sequer diretores. Tenho quase a certeza de que se encolheriam, com o mesmo desdém com que o mais velho encarou a hipótese de alguém pôr um filho na escola pública, se lhes dissesse o que são. Mas são isso. São trabalhadores.
Vêm de gravata ao restaurante que faz o menu do dia a 12 euros. Mas estão apertados. Estão apertados porque cada vez menos lhes chega do Estado social. Se põem um filho na escola pública, sentem quase a culpa de não estar a fazer esforço suficiente por ele. Não lhes passa pela cabeça exigir que a escola pública melhore. Isso que é de graça é para os outros, eles não, eles trabalham, não precisam cá de esmolas. E se precisam é só até à coisa se endireitar e conseguirem, a muito esforço, pagar o colégio, mesmo que ele leve uma fatia demasiado grande do rendimento familiar. É o que é. “É só faturar”, como dizia o outro, mas nada de questionar, que a escola pública é cada vez mais um lugar para os pobres, para os que ficam para trás, cheio de gente que nem fala português, vazio de professores e técnicos, uma bandalheira de faltas e greves, para onde ninguém no seu juízo atiraria os filhos, tendo outra opção, ainda que não se trate bem de opção, mas de um sacrifício. Que diabo! É um sacrifício necessário. Nem se questiona.
Não falaram de doenças, mas aposto que têm o seguro de saúde lá do banco. E, enquanto assim for, é menos uma dor de cabeça, que isto dos hospitais públicos já se sabe como é e dos centros de saúde o melhor é nem falar. Sorte foi as mulheres terem parido quando ainda não era preciso andar em bolandas, numa gincana entre hospitais, a ver qual deles terá a urgência aberta. O pior será se um dia tiverem um acidente grave ou um cancro ou uma daquelas doenças raras de nomes impronunciáveis que só se tratam com medicamentos que custam milhões. Aí, logo se vê. Mas, para já, hospitais públicos só os veem nas notícias e, claro, sabem bem que estão à pinha com os imigrantes que vêm para cá para se tratar às nossas custas, mesmo que os jornais expliquem que não é bem assim e as estatísticas o desmintam. Também quem é que ainda lê jornais? A vida já é complicada o suficiente para se estar a encher mais a cabeça com desgraças.
Saí do restaurante antes de eles chegarem à sobremesa. Deixei o mais novo a admitir que “até podia trabalhar mais, se houvesse outra organização”, num desabafo sincero, que não mereceu resposta do mais velho, visivelmente mais calejado nestas coisas, sabedor de que não é boa política mostrar fraquezas e muito menos admitir que não se faz tudo o que se pode e mais um pouco ainda. Mas, pronto, o rapaz ainda é novo, coitado, não sabe tudo da vida. Até tem a mais nova numa escola pública, vejam bem.
Há uns tempos, noutro restaurante popular no bairro ao lado, à hora de almoço, fiquei ao pé de outros dois homens de camisas brancas, mas abertas, sem gravata, com um sotaque afetado, que em menos de nada começaram a rosnar contra o adicional ao IMI – cobrado aos imóveis cuja soma do valor patrimonial tributário supera os 600 mil euros. “O imposto Mortágua”, diziam, entre a raiva e o desdém, como quem descreve um assalto. Estavam muito zangados com os impostos em geral, mas com este em particular. E lembro-me de ter pensado em como estavam bem na vida para, tão novos (ainda não chegavam aos 50), já terem este tipo de problemas. Há, de facto, problemas que são um luxo.
Os meus vizinhos de almoço, desta vez, não me parecem padecer do mesmo tipo de ansiedades tributárias. Mas, pelo pouco que lhes ouvi e pelo resto que imagino – concedam à cronista esse exercício de alguma ficção –, quase aposto que teriam reagido bem se, para meter conversa, me tivesse posto a atacar o Estado e os impostos. Não sabendo a afinidade clubística de quem está ao lado, esse é o tema mais seguro para quem quer fazer amigos de ocasião em conversas de tasco.
Sabem que mais? Não os julgo. Não com a intensidade com que julguei os dois betos endinheirados, enojados com a ideia de pagar entre 0,7% e 1% a mais de IMI sobre imóveis avaliados (sublinhem o “avaliados”) entre os 600 mil e o milhão de euros. Estes dois bancários não são rentistas e será até excessivo chamar-lhes capitalistas. São só assalariados em negação. Estão endoutrinados na ideia de que devem pagar por tudo aquilo que já pagam nos impostos.
Não é estranho que se revoltem contra os impostos. Não é estranho que se sintam espoliados. Concedo até que se sintam um pouco explorados, quando veem o que pagam para não usufruir de quase nada. E vejo que é aí, nesse ponto sensível, que fica o lugar onde medra o ódio pelo outro, aquele que não se esforça e “vive de subsídios”, mesmo que esse outro seja tão imaginado como essas fortunas de subsídios ou que esse viver seja, afinal, tão miserável que não há como o invejar.
Um Estado que anda há décadas a cortar, até se amputar no mais básico. Um Estado que acha que os serviços que presta – cada vez menos e cada vez pior – são uma espécie de esmola, que deve ser reservada aos mais pobres. Um Estado que abre os bolsos às Web Summits e dá bodos de descontos às maiores empresas, que oferece benefícios fiscais a estrangeiros ricos e a fundos que especulam com a habitação até ela deixar de ser um direito e se parecer mais com um ativo numa folha de Excel. Um Estado assim não pode admirar-se que a porta ao fascismo comece a abrir-se.
O Estado a que chegámos, meus amigos, é este. Não o escrevo com fatalismo. Recuso-me a acreditar que isto não tenha remédio. Mas escrevo-o para que fique claro que estas coisas não aparecem do nada nem são só o produto de algoritmos viciados em vídeos extremistas. O terreno onde o ódio cresce anda a ser lavrado há anos. Arrancar-lhe as raízes não se fará com as políticas do costume.
Dos pequenos poderes
O tempo em que se cortavam cabeças nas esquadras de polícia do País era também o tempo em que se espancavam estudantes nas manifestações, automobilistas na Ponte 25 de Abril ou, uns poucos anos antes, outros polícias no Terreiro do Paço, no famoso protesto dos “secos contra os molhados”. Uns anos duros e autoritários do “cavaquismo”, em que as forças de segurança refletiam o estilo das lideranças, ao jeito do “eu nunca me engano e raramente tenho dúvidas”. Doa a quem doer.
O crime chocante na esquadra de Santarém, em que o sargento Santos decapitou um suspeito de roubar para alimentar o vício da droga, aconteceu já nos primeiros meses de uma nova era, com o governo de António Guterres, em que as polícias ganharam uma face mais humanista. Mudaram muito, de facto, porque o discurso político assim os orientou. A palavra, vinda de cima, tem esse efeito, quando usada de forma responsável, sensata, com sentido de Estado.
Não é que os nossos líderes políticos sejam responsáveis por tudo e mais alguma coisa, mas o oposto também não é verdadeiro. Eles não existem fora do tom social – sobretudo, eles não podem conduzir-se na vida pública achando que em nada contribuem para o tom social.
Os pequenos poderes, aqueles com que o cidadão lida no seu dia a dia, são uma esponja do discurso político dos grandes poderes. Seja Governo, oposição, extrema-direita, candidatos presidenciais, todos os que por estes dias têm palco, microfone e uma aura de credibilidade – o seu tom define não só o sistema como a forma de o contornar, aproveitando-se dele.
O discurso político dominante coloca os imigrantes como uma entidade utilitária, um “mal necessário” de que a economia precisa até certo ponto, logo a base da escala social, as “mulas de carga” dos baixos salários e da vida indigna, espécies sub-humanas que se traduzem em números e contingentes a tolerar, mas sem direito a verdadeiras políticas de integração. Este é o sistema. Os que se aproveitam do sistema para ganhar dinheiro organizam-se no tráfico de pessoas para explorar imigrantes (vistos como “não pessoas”) em serventia de quase escravatura. Mas não estamos a falar das clássicas redes mafiosas, a bandidagem habitual; estamos a falar dos dez militares da GNR de Beja detidos na semana passada por serem “capatazes”, contratados por uma rede de exploração de imigrantes para os controlar e espancar. Rede encabeçada por dois portugueses, já que estamos sempre a pedir as nacionalidades dos criminosos.
Estamos a falar do agente da PSP que matou Odair Moniz e terá plantado provas para justificar o crime; de um agente da PSP que espancou até à morte um imigrante marroquino em Olhão; e falamos também dos 11 bombeiros do Fundão detidos por violarem um colega de 19 anos, facto justificado com o âmbito de uma suposta “praxe”.
São os pequenos poderes a mostrar o tom da hipocrisia podre e sem valores de certos discursos políticos, anti-imigração e cheios de masculinidades mais do que tóxicas, criminosas, que, mais do que qualquer partidarismo, demonstram uma falta de humanidade (ainda) chocante.
São os monstros comuns, os que vivem entre nós, na porta do lado, na vizinhança, de que falava Hannah Arendt. Aqueles que estão à solta, sentindo-se mais justificados do que nunca.
O crime chocante na esquadra de Santarém, em que o sargento Santos decapitou um suspeito de roubar para alimentar o vício da droga, aconteceu já nos primeiros meses de uma nova era, com o governo de António Guterres, em que as polícias ganharam uma face mais humanista. Mudaram muito, de facto, porque o discurso político assim os orientou. A palavra, vinda de cima, tem esse efeito, quando usada de forma responsável, sensata, com sentido de Estado.
Não é que os nossos líderes políticos sejam responsáveis por tudo e mais alguma coisa, mas o oposto também não é verdadeiro. Eles não existem fora do tom social – sobretudo, eles não podem conduzir-se na vida pública achando que em nada contribuem para o tom social.
Os pequenos poderes, aqueles com que o cidadão lida no seu dia a dia, são uma esponja do discurso político dos grandes poderes. Seja Governo, oposição, extrema-direita, candidatos presidenciais, todos os que por estes dias têm palco, microfone e uma aura de credibilidade – o seu tom define não só o sistema como a forma de o contornar, aproveitando-se dele.
O discurso político dominante coloca os imigrantes como uma entidade utilitária, um “mal necessário” de que a economia precisa até certo ponto, logo a base da escala social, as “mulas de carga” dos baixos salários e da vida indigna, espécies sub-humanas que se traduzem em números e contingentes a tolerar, mas sem direito a verdadeiras políticas de integração. Este é o sistema. Os que se aproveitam do sistema para ganhar dinheiro organizam-se no tráfico de pessoas para explorar imigrantes (vistos como “não pessoas”) em serventia de quase escravatura. Mas não estamos a falar das clássicas redes mafiosas, a bandidagem habitual; estamos a falar dos dez militares da GNR de Beja detidos na semana passada por serem “capatazes”, contratados por uma rede de exploração de imigrantes para os controlar e espancar. Rede encabeçada por dois portugueses, já que estamos sempre a pedir as nacionalidades dos criminosos.
Estamos a falar do agente da PSP que matou Odair Moniz e terá plantado provas para justificar o crime; de um agente da PSP que espancou até à morte um imigrante marroquino em Olhão; e falamos também dos 11 bombeiros do Fundão detidos por violarem um colega de 19 anos, facto justificado com o âmbito de uma suposta “praxe”.
São os pequenos poderes a mostrar o tom da hipocrisia podre e sem valores de certos discursos políticos, anti-imigração e cheios de masculinidades mais do que tóxicas, criminosas, que, mais do que qualquer partidarismo, demonstram uma falta de humanidade (ainda) chocante.
São os monstros comuns, os que vivem entre nós, na porta do lado, na vizinhança, de que falava Hannah Arendt. Aqueles que estão à solta, sentindo-se mais justificados do que nunca.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
Julgamento de generais não é só fato inédito mas atestado de velhice de uma casta
Diz um provérbio russo que peixe começa a feder a partir da cabeça ("ryba is galovy gniot", para conferência dos cultores da língua). Como em todo provérbio, há um jogo entre a significação aparente e o sentido oculto. Isso se aplica ao momento presente da escuridão que nos segue desde a formação moderna do país: o julgamento de generais, almirante e oficiais menores não é só fato inédito nas Forças, mas também atestado de velhice de uma casta, entranhada como um alien nas vísceras da República.
Refletindo sobre a idade avançada em seu "De Senectute — o tempo da memória", o pensador italiano Norberto Bobbio relata um lamento ponderado de idosos: "Não é que a velhice seja ruim, o problema é que dura pouco". Bobbio pergunta-se "será mesmo que dura pouco?" E contrapõe um verso de Dario Bellezza: "Fugaz é a juventude/ um suspiro a maturidade/ avança terrível a velhice/ e dura uma eternidade".
É que o pensador também rumina sobre os artifícios que tanto prolongam a vida quanto impedem de morrer. A decrepitude pode estender-se como um fardo. "Ao lado da velhice censitária ou cronológica e da velhice burocrática, existe também a velhice psicológica ou subjetiva". As duas últimas coexistem em aspectos grotescos da política, como o dos parlamentares vitalícios, maldosamente comentados na imprensa: "Era lindo ver o triste desfile dos senadores vitalícios, cada um mais cadavérico que o outro; uma velha Itália que ninguém quer mais e que sozinha sepultou a si mesma" (Pietro Buscaroli, musicólogo). E mais: "Velhos, mas podres de tanto veneno e rancor, sobras ilícitas e condenáveis do regime das bombas e das tangentes".
Como no aforismo do peixe, há outro sentido nessas referências italianas. "Velhice", última fase da vida", diz Bobbio, "exprime um ciclo que se avizinha do fim. Por isso, ela é também empregada metaforicamente para assinalar a decadência de uma civilização, de um povo, de uma cidade". Mesmo citando clássicos, como Cícero, que fazem apologia da sabedoria da idade, ele sustenta: "quem louva a velhice não a viu de perto". Notícias recentes de Trump o reportam cochilando acordado ou preocupado apenas em aumentar seu nababesco salão de baile dourado em construção.
Mas a velhice aqui pautada não é o natural amadurecimento biológico. É principalmente o fato institucional sem a necessária renovação existencial. É o que faz do bicentenário Parlamento nacional exemplo de decrepitude. E nos golpistas, peixes grandes condenados, não carece ver de perto sinais de doença física e mental. Por mais distantes, exibem não senioridade, mas uma velhice pesada tanto para si mesmos quanto para outros.
Para si, porque contemplam um futuro despido das patentes e medalhas que lhe fazem a glória pessoal. Para outros, efeitos cansativos da vontade de eternizar-se de uma casta que se arroga a tutela da República, desatenta à sua própria degeneração. Dado o estado dessas cabeças, é hora de pensar também com o nariz.
Refletindo sobre a idade avançada em seu "De Senectute — o tempo da memória", o pensador italiano Norberto Bobbio relata um lamento ponderado de idosos: "Não é que a velhice seja ruim, o problema é que dura pouco". Bobbio pergunta-se "será mesmo que dura pouco?" E contrapõe um verso de Dario Bellezza: "Fugaz é a juventude/ um suspiro a maturidade/ avança terrível a velhice/ e dura uma eternidade".
É que o pensador também rumina sobre os artifícios que tanto prolongam a vida quanto impedem de morrer. A decrepitude pode estender-se como um fardo. "Ao lado da velhice censitária ou cronológica e da velhice burocrática, existe também a velhice psicológica ou subjetiva". As duas últimas coexistem em aspectos grotescos da política, como o dos parlamentares vitalícios, maldosamente comentados na imprensa: "Era lindo ver o triste desfile dos senadores vitalícios, cada um mais cadavérico que o outro; uma velha Itália que ninguém quer mais e que sozinha sepultou a si mesma" (Pietro Buscaroli, musicólogo). E mais: "Velhos, mas podres de tanto veneno e rancor, sobras ilícitas e condenáveis do regime das bombas e das tangentes".
Como no aforismo do peixe, há outro sentido nessas referências italianas. "Velhice", última fase da vida", diz Bobbio, "exprime um ciclo que se avizinha do fim. Por isso, ela é também empregada metaforicamente para assinalar a decadência de uma civilização, de um povo, de uma cidade". Mesmo citando clássicos, como Cícero, que fazem apologia da sabedoria da idade, ele sustenta: "quem louva a velhice não a viu de perto". Notícias recentes de Trump o reportam cochilando acordado ou preocupado apenas em aumentar seu nababesco salão de baile dourado em construção.
Mas a velhice aqui pautada não é o natural amadurecimento biológico. É principalmente o fato institucional sem a necessária renovação existencial. É o que faz do bicentenário Parlamento nacional exemplo de decrepitude. E nos golpistas, peixes grandes condenados, não carece ver de perto sinais de doença física e mental. Por mais distantes, exibem não senioridade, mas uma velhice pesada tanto para si mesmos quanto para outros.
Para si, porque contemplam um futuro despido das patentes e medalhas que lhe fazem a glória pessoal. Para outros, efeitos cansativos da vontade de eternizar-se de uma casta que se arroga a tutela da República, desatenta à sua própria degeneração. Dado o estado dessas cabeças, é hora de pensar também com o nariz.
Chega-se a Marte, mas não se chega ao próximo
Neste meio século não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lhe permitem aquelas que efetivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Pensamos que nenhuns direitos humanos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que não é de esperar que os governos façam nos próximos 50 anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.
José Saramago ao receber o Prêmio Nobel de Literatura
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lhe permitem aquelas que efetivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Pensamos que nenhuns direitos humanos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que não é de esperar que os governos façam nos próximos 50 anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.
José Saramago ao receber o Prêmio Nobel de Literatura
O mundo mais autoritário
A constatação é triste: 72% da população mundial vive hoje em países não democráticos, ditaduras ou autocracias eleitorais. Na última década, as ditaduras subiram de 22 para 33, enquanto os sistemas democráticos caíram de 44 para 32. Sobe também o número de democracias falhas, um modelo híbrido que abriga componentes de regimes autocráticos e democráticos, onde ocorrem falhas na aplicação de princípios e valores, como liberdade de imprensa, independência entre os Poderes, repressão policial, ameaças de golpes, integridade do sistema eleitoral, entre outros.
Tal constatação tem como fonte uma pesquisa feita pelo Instituto sueco, V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. A escalada autoritária é uma ameaça ao equilíbrio entre as Nações. Nos últimos tempos, o planeta vive sob o temor de que uma nova Guerra Fria, que poderá ser o estopim de um conflito de proporções mortíferas para a Humanidade. China e Rússia, juntos na estratégia de eliminar o poderio ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos, e tendo como pano de fundo a tragédia que se abate sobre a Ucrânia, empurram o planeta na direção do precipício. Semana passada, vimos Vladimir Putin, o todo poderoso mandatário-mor da Rússia, falar alto: “Se a Europa quiser guerra, estamos pronto”.
Afinal, o que ocorre com as democracias? Estão morrendo? Assistem, inertes, ao desvanecimento de sua base? Não têm resistido ao volume crescente da violência, que invade os ares da liberdade? A luta do poder pelo poder, sem as luzes das ideologias e doutrinas, seria uma volta ao nosso passado ancestral?
São questões cruciais. Que já mereceram análises de cientistas políticos. A afamada obra Como as democracias morrem, dos professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, faz importante observação para entendermos a vida contemporânea. A tese principal dos dois autores é a de que os sistemas são corrompidos por meio da perversão do processo legal, significando que os governos legitimamente eleitos subvertem os meios que os levaram ao poder.
Na América Latina, basta ver os golpes militares, no Brasil (1964), na Argentina (1966), no Chile (1973), no Uruguai (1976) e os movimentos de tendência golpista, que ocorrem aqui e ali, a escancarar a instabilidade das instituições representativas, a militarização da vida política e cerceamento da liberdade política e de expressão.
Até a maior democracia ocidental, a norte-americana, tem sofrido ameaças, a partir da eleição de Donald Trump e sua pregação antidemocrática. Ali, nunca se viu tanta pregação contra os eixos da democracia.
A crise, como se sabe, é crônica, se arrasta há tempos. E onde estão suas raízes? Norberto Bobbio, o cientista social e político italiano, em sua clássica obra, O Futuro da Democracia, levanta a questão: as democracias não têm cumprido seus compromissos para com as comunidades.
Promessas não cumpridas caracterizam uma sociedade pluralista, com seus vários centros de poder, com o domínio das oligarquias que procuram preservar suas tradições e, ainda, com a força do poder invisível, que age nos subterrâneos do poder visível, representado pelo Estado. Basta ver a expansão das gangues e do crime organizado, hoje presentes em praticamente todos os países da América Latina. Calcula-se que cerca de 40% dos homicídios globais estão ligados ao crime organizado e à violência de gangues, que são prevalentes nas três Américas,
A incultura política campeia. Bobbio é enfático: a apatia política chega a envolver cerca da metade dos que têm direito a voto. É pouco. Em nosso Brasil, a imensa maioria do eleitorado ainda vegeta no terreno que se chama de “cidadania passiva”.
As promessas não têm sido cumpridas por causa dos obstáculos e desafios impostos por uma sociedade que saiu de uma economia familiar para uma economia de mercado, ou seja, uma economia planificada, que abriu a era do “governo dos técnicos”, e trouxe, em seu arcabouço, sérios problemas, como desemprego, inflação, aumento das desigualdades, competição desvairada, violência.
O rendimento do estado democrático sofre queda e, em muitos países, os sistemas governativos tornam-se ingovernáveis. As tensões entres Poderes (caso do Brasil) contribuem para a instabilidade institucional. As ingerências de um Poder sobre outro se tornam constantes, a ponto de se considerar que funções legislativas são absorvidas pelo Poder Judiciário, como ocorre, hoje, por nossas bandas. Basta olhar para a recente querela entre o STF e o Senado Federal e sua acusação recíproca de invasão de competências.
O STF até parece uma gigantesca delegacia de polícia, a julgar vândalos. O Poder Executivo, por sua vez, encabresta o Poder Legislativo, com sua articulação para cooptar parlamentares com liberação de recursos e outros meios de atração, como cargos e espaços na estrutura administrativa.
Em um ensaio alentado, os professores e pesquisadores Fernando Limongi e Angelina Figueiredo explicam: “o padrão organizacional do Legislativo brasileiro é bastante diferente do norte-americano. Os trabalhos legislativos no Brasil são altamente centralizados e se encontram ancorados na ação dos partidos. Ademais, enquanto o presidente norte-americano possui limitados poderes legislativos, o brasileiro é um dos mais poderosos do mundo. … da mesma forma, não é possível desconsiderar os poderes legislativos do presidente.”
O fato é que o exercício da governança se torna cada vez mais complexo. Os interesses grupais e individuais suplantam as demandas coletivas. A conquista do poder, a qualquer custo, é a meta que transforma a política em uma arena de lutas. Sob essa paisagem conflituosa, golpes, insurreições, movimentos de ruptura, ancorados nos quartéis e nas armas, são os novos componentes que corroem os vãos e desvãos das democracias, tornando o mundo mais autoritário.
Tal constatação tem como fonte uma pesquisa feita pelo Instituto sueco, V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. A escalada autoritária é uma ameaça ao equilíbrio entre as Nações. Nos últimos tempos, o planeta vive sob o temor de que uma nova Guerra Fria, que poderá ser o estopim de um conflito de proporções mortíferas para a Humanidade. China e Rússia, juntos na estratégia de eliminar o poderio ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos, e tendo como pano de fundo a tragédia que se abate sobre a Ucrânia, empurram o planeta na direção do precipício. Semana passada, vimos Vladimir Putin, o todo poderoso mandatário-mor da Rússia, falar alto: “Se a Europa quiser guerra, estamos pronto”.
Afinal, o que ocorre com as democracias? Estão morrendo? Assistem, inertes, ao desvanecimento de sua base? Não têm resistido ao volume crescente da violência, que invade os ares da liberdade? A luta do poder pelo poder, sem as luzes das ideologias e doutrinas, seria uma volta ao nosso passado ancestral?
São questões cruciais. Que já mereceram análises de cientistas políticos. A afamada obra Como as democracias morrem, dos professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, faz importante observação para entendermos a vida contemporânea. A tese principal dos dois autores é a de que os sistemas são corrompidos por meio da perversão do processo legal, significando que os governos legitimamente eleitos subvertem os meios que os levaram ao poder.
Na América Latina, basta ver os golpes militares, no Brasil (1964), na Argentina (1966), no Chile (1973), no Uruguai (1976) e os movimentos de tendência golpista, que ocorrem aqui e ali, a escancarar a instabilidade das instituições representativas, a militarização da vida política e cerceamento da liberdade política e de expressão.
Até a maior democracia ocidental, a norte-americana, tem sofrido ameaças, a partir da eleição de Donald Trump e sua pregação antidemocrática. Ali, nunca se viu tanta pregação contra os eixos da democracia.
A crise, como se sabe, é crônica, se arrasta há tempos. E onde estão suas raízes? Norberto Bobbio, o cientista social e político italiano, em sua clássica obra, O Futuro da Democracia, levanta a questão: as democracias não têm cumprido seus compromissos para com as comunidades.
Promessas não cumpridas caracterizam uma sociedade pluralista, com seus vários centros de poder, com o domínio das oligarquias que procuram preservar suas tradições e, ainda, com a força do poder invisível, que age nos subterrâneos do poder visível, representado pelo Estado. Basta ver a expansão das gangues e do crime organizado, hoje presentes em praticamente todos os países da América Latina. Calcula-se que cerca de 40% dos homicídios globais estão ligados ao crime organizado e à violência de gangues, que são prevalentes nas três Américas,
A incultura política campeia. Bobbio é enfático: a apatia política chega a envolver cerca da metade dos que têm direito a voto. É pouco. Em nosso Brasil, a imensa maioria do eleitorado ainda vegeta no terreno que se chama de “cidadania passiva”.
As promessas não têm sido cumpridas por causa dos obstáculos e desafios impostos por uma sociedade que saiu de uma economia familiar para uma economia de mercado, ou seja, uma economia planificada, que abriu a era do “governo dos técnicos”, e trouxe, em seu arcabouço, sérios problemas, como desemprego, inflação, aumento das desigualdades, competição desvairada, violência.
O rendimento do estado democrático sofre queda e, em muitos países, os sistemas governativos tornam-se ingovernáveis. As tensões entres Poderes (caso do Brasil) contribuem para a instabilidade institucional. As ingerências de um Poder sobre outro se tornam constantes, a ponto de se considerar que funções legislativas são absorvidas pelo Poder Judiciário, como ocorre, hoje, por nossas bandas. Basta olhar para a recente querela entre o STF e o Senado Federal e sua acusação recíproca de invasão de competências.
O STF até parece uma gigantesca delegacia de polícia, a julgar vândalos. O Poder Executivo, por sua vez, encabresta o Poder Legislativo, com sua articulação para cooptar parlamentares com liberação de recursos e outros meios de atração, como cargos e espaços na estrutura administrativa.
Em um ensaio alentado, os professores e pesquisadores Fernando Limongi e Angelina Figueiredo explicam: “o padrão organizacional do Legislativo brasileiro é bastante diferente do norte-americano. Os trabalhos legislativos no Brasil são altamente centralizados e se encontram ancorados na ação dos partidos. Ademais, enquanto o presidente norte-americano possui limitados poderes legislativos, o brasileiro é um dos mais poderosos do mundo. … da mesma forma, não é possível desconsiderar os poderes legislativos do presidente.”
O fato é que o exercício da governança se torna cada vez mais complexo. Os interesses grupais e individuais suplantam as demandas coletivas. A conquista do poder, a qualquer custo, é a meta que transforma a política em uma arena de lutas. Sob essa paisagem conflituosa, golpes, insurreições, movimentos de ruptura, ancorados nos quartéis e nas armas, são os novos componentes que corroem os vãos e desvãos das democracias, tornando o mundo mais autoritário.
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