segunda-feira, 6 de maio de 2024

Salman Rushdie: o triunfo da palavra

Salman Rushdie não acredita em milagres, embora apareçam muitos em seus textos de realismo mágico. Mas foi um milagre ele ter sobrevivido a um ataque de 27 segundos e 15 facadas em Chautauqua, Nova York, no dia 12 de agosto de 2022. A última coisa que seu olho direito viu foi um homem vestido de preto, correndo na plateia em sua direção e desfechando os golpes que o levaram a muito perto da morte.

Rushdie sobreviveu com a mente intacta e escreveu um livro, “Faca: reflexões sobre um atentado”. Além de ter perdido a visão do olho direito, foi gravemente ferido na mão esquerda, no peito, no pescoço e em outros pontos do corpo. Foram 18 dias internado num centro de trauma e muitos dias em seguida num hospital especializado em recuperação em Nova York. Ele não foi salvo apenas pela perícia dos cirurgiões, mas também pelo amor de sua mulher, Eliza (Rachel Eliza Griffiths), filhos de inúmeros amigos e até desconhecidos que se solidarizaram com ele.

O atentado ocorreu 33 anos e meio depois de o aiatolá Khomeini tê-lo condenado à morte, por causa da publicação do livro “Versos satânicos”. Os 18 dias após o atentado foram terríveis. No princípio, por causa da grande quantidade de analgésicos, inclusive morfina, ele delirou sonhando com edifícios em forma de letras do alfabeto. Em seguida, vieram as centenas de incômodos com os próprios ferimentos, em muitas partes do corpo, sobretudo a mão, unidas por pontos de metal, o olho deslocado da órbita.

Nesses momentos, e em todos os outros, Salman teve ao lado a mulher, Eliza, poeta e fotógrafa americana. A coragem e o afeto dessa mulher extraordinária, o próprio Salman reconhece, foram decisivos. Não é fácil alguém se mover escapando de paparazzi, protegido por policiais desconhecidos, sempre em dúvida se aquelas longas lentes fotográficas não poderiam ser um cano de arma disfarçado

No livro, Rushdie descreve muitos procedimentos médicos, a dor da retirada dos pontos, a tristeza de saber que ficaria sem a visão num olho, o medo de ficar cego, uma vez que já tinha problemas nos olhos antes do atentado. Ele chega a descrever até a dor de receber uma sonda para fazer xixi, pois um dos remédios inibiu sua função urinária. Adverte o leitor: se você nunca recebeu uma sonda, procure se manter invicto.

Eu acrescentaria com experiência própria: se perder a invencibilidade, não o faça após ser ferido e preso numa ditadura militar. Torça por enfermeiros amigáveis.

O livro é cheio de referências literárias, menciona até “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Mas o diálogo mais significativo é com o romance de Milan Kundera “A insustentável leveza do ser”. A vida não tem reprises. Mas Salman, na verdade, ganhou uma segunda chance e a desfruta com felicidade ao lado de Eliza.

A verdade é que amigos morrem, como morreu o escritor Martin Amis; outros sofrem doenças, com paralisia, como Hanif Kureishi; e alguns já estavam com câncer, como Paul Auster, que, por sinal, morreu na semana que passou. Além de todos esses problemas, há as dificuldades no mundo. A guerra contra a Ucrânia, conduzida por um tirano, as perseguições religiosas na Índia, os perigos de retrocesso nos Estados Unidos, com a ideia de supremacia branca e masculina.

Rushdie dedica um capítulo a uma discussão imaginária com o homem que tentou matá-lo, que ele chama apenas de A. Talvez nem precisasse, mas faz uma defesa de sua atuação, até em relação aos muçulmanos, e traça um perfil do terrorista religioso, que acredita em falsos profetas, é solitário e frustrado.

A conclusão é que os escritores têm de continuar escrevendo suas histórias, que ficarão para sempre e contribuem para combater as falsas narrativas nesta era de desinformação. Um poema não detém uma bala. Mas a luta de Rushdie é um exemplo de luta pela liberdade de expressão. No dia em que foi atacado, ele faria uma conferência em apoio aos escritores perseguidos no mundo, para os quais seu amigo Henry Reese, organizador do encontro, criava um espaço amplo de refúgio. O evento — onde o terrorista, um jovem de origem libanesa, criado em Nova Jersey, apareceu com sua fúria assassina — se intitulava “Mais que um abrigo, redefinindo o lar americano”.

Portanto as facadas foram contra todos os escritores perseguidos. Alguns também atingidos diretamente pela lâmina, como o egípcio Naguib Mahfouz, esfaqueado no pescoço em 1994 por um fundamentalista islâmico.

Pensamento do Dia

 


Viva!


Viver é a coisa mais rara no mundo. A maior parte das pessoas limita-se a existir
Oscar Wilde

Nosso tempo

A Osvaldo Alves

I


Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!

Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II

Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
a pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

III

E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes…
E muitos de vós nunca se abriram.

IV

É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

V

Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.

As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não veem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.

Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrado sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiura,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI

Nos porões da família,
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.

VII

Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco? no público? nas poltronas?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.

Carlos Drummond de Andrade, "A rosa do povo"

'Responsabilidade também de senadores e deputados que desmontam legislação ambiental'

As fortes chuvas que atingem o Rio Grande do Sul, as mais intensas registradas em território gaúcho em décadas, já deixaram dezenas de mortos, causaram estragos em 300 municípios, romperam uma barragem e desalojaram mais de 80 mil pessoas. Há ainda mais de uma centena de pessoas desaparecidas enquanto o mau tempo já provoca danos em outros Estados do Sul.

Os governos federal e estadual criaram uma força-tarefa e tentam evitar mais mortes promovendo evacuações e retirando pessoas de áreas de risco.

Mas a responsabilidade não é apenas dos governos estaduais e federal, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), mas também do Congresso — pois as tragédias são resultado da falta de adaptação e de combate às mudanças climáticas, duas áreas onde os Executivos precisam fazer mais e onde o Legislativo têm promovido ativamente retrocessos, na opinião dele.

"A maioria conservadora tem aprovado diversos projetos considerados nocivos para o meio ambiente. Nunca tivemos um Congresso tão dedicado a desmontar", afirma o especialista em políticas públicas à frente do Observatório do Clima, rede de entidades que monitora a questão climática no Brasil.

 


Além disso, segundo Astrini, ações que se limitam às respostas de emergência em situações de crise não são suficientes. Eventos extremos como esse — cada vez mais comuns por causa das mudanças climáticas — não podem mais ser tratados como “imprevistos”.

Embora nem sempre seja possível prever com precisão a intensidade de um evento extremo, já sabemos que eles se tornarão mais frequentes — e quais as medidas que precisam ser tomadas para nos adaptarmos a eles, afirma o especialista.

Modelos climáticos preveem há décadas um aumento de chuvas extremas no sul da América do Sul, incluindo toda a bacia do Prata (formada pelos rios Paraná e Uruguai), lembra Astrini.

“O maior problema que a gente enfrenta neste momento não é a previsão, é a aceitação”, afirma Astrini. “A gente precisa aceitar que, infelizmente, esse é o novo normal. Mas não basta aceitar pacificamente, é preciso aceitar e tomar atitudes.”

“Todo ano o governo do Rio Grande do Sul fica extremamente espantado que as chuvas são intensas. O governo do Rio de Janeiro fica super surpreso quando acontece em Petrópolis. É uma surpresa em São Sebastião (SP), no norte de Minas Gerais, em Recife (PE), no sul da Bahia. Só que acontece que já faz nove anos consecutivos que as médias de temperatura do planeta são as mais quentes já registradas. Não tem mais surpresa. A gente precisa se preparar para isso”, afirma Astrini.

Astrini explica que existem três tipos de resposta possíveis diante da crise climática: a mitigação das causas, a adaptação em preparação para as consequências e a redução de danos diante das tragédias.

“Mitigação é quando você ataca o problema: é quando você interrompe o desmatamento, quando você tira uma termoelétrica de operação, quando substitui uma fonte poluente por uma fonte renovável”, afirma o especialista.

“A adaptação é quando o problema vai acontecer e você começa a adaptar principalmente as populações mais vulneráveis ao problema. Por exemplo, quando tira as populações da área de risco, quando dá mais assistência para um pequeno agricultor lidar com uma seca.”

As ações também são necessárias contra problemas que não necessariamente são causados pelo aquecimento global, embora agravados por ele, explica Astrini.

“Adaptação é também quando você reforça a rede de saúde, porque vão aumentar os casos de dengue, porque o ciclo de reprodução do mosquito vai ficar mais longo por causa de chuvas desproporcionais e do calor prolongado.”

Já lidar com as perdas e reduzir os danos é promover as respostas emergenciais às tragédias.

“Perdas e danos é o que se faz normalmente: desbarrancou, você vai procurar sobreviventes, vai construir casas”, diz Astrini. O problema, na visão do especialista, é que as ações tomadas por autoridades federais, estaduais e municípais tendem a se concentrar apenas nesse terceiro estágio de resposta.

“O pessoal só age quando já está no nível da desgraça”, diz Astrini.

“O dinheiro investido na primeira camada vale muito mais, porque ele evita a adaptação e evita o desastre.”

Ações que estão sendo tomadas tanto pelo governo federal quanto pelo governo estadual e pelos municípios no caso das chuvas no Rio Grande do Sul — alertas da Defesa Civil, evacuação de pessoas de áreas de emergência, restabelecimento de serviços etc — se encaixam no terceiro tipo.

Após a região ser atingida por um ciclone em setembro do ano passado, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional repassou R$ 82 milhões para o governo do Estado e outros R$ 243 milhões aos municípios gaúchos para lidar com a crise. Segundo reportagem da CNN Brasil, a maior parte do dinheiro foi usada em ações emergenciais, como compra de mantimentos e desobstrução de estradas.

“A gente pode ter a Defesa Civil 30 vezes maior no Rio Grande do Sul ou em qualquer outro Estado. Vai continuar morrendo gente, porque a Defesa Civil vai conseguir salvar a vida de alguém próximo, mas não de todos. Quem salva mais vidas é o planejamento, e no caso dos municípios, o planejamento urbano”, afirma o líder do Observatório do Clima.

Embora o aquecimento global seja um problema em escala mundial, ações de mitigação não são responsabilidade apenas de entidades internacionais e governos nacionais. Elas podem — e precisam — ser alvo também dos governos locais, diz Astrini.

“A mitigação é uma agenda de responsabilidade, não de ganho político. Vou pegar um exemplo aqui no Cerrado, que bateu o recorde de desmatamento nesse último período: mais de 60% de aumento de agosto do ano passado para cá. E quem dá as autorizações de desmatamento são os governos estaduais”, diz ele.

“E há vários outros exemplos, como legislações de licenciamento ambiental mais frouxas nos Estados, a responsabilidade com o saneamento básico, com a transição energética.”

O governo do Rio Grande do Sul não respondeu ao pedido de informações sobre ações de mitigação e adaptação da BBC News Brasil. O governador Eduardo Leite (PSDB) tem dado atualizações diárias sobre as medidas emergenciais tomadas no Estado, que incluem alertas e remoção das pessoas das áreas de risco.
Astrini diz ainda que é preciso lembrar da responsabilidade do Congresso em relação à situação climática que leva à tragédias como a sofrida pelo RS neste momento.

"Deputados trabalham dia e noite para destruir a legislação ambiental do Brasil com afinco. Neste momento estão querendo acabar com a Lei de Licenciamento Ambiental, querem acabar com a reserva legal na Amazônia, querem acabar com as reservas indígenas”, diz Astrini.

Ele se refere a um um projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, permitindo que Estados e Municípios determinem os projetos que precisam ou não fazer uma análise de impacto, entre outras medidas.

Os defensores do PL argumentam que ele “diminuirá a burocracia” e por isso facilitaria o desenvolvimento econômico.

Mas Astrini diz que o projeto não só não resolve o problema da burocracia como pode comprometer metas de desenvolvimento sustentável.

“A gente nunca teve um Congresso tão agressivo nesse esforço para desmontar a legislação ambiental no Brasil”, afirma.

Deputados e senadores contrários a pautas importantes para ambientalistas argumentam que a legislação ambiental atrapalha o desenvolvimento econômico e, em alguns casos, negam dados científicos sobre o aquecimento global ou sobre desmatamento no Brasil.

“Tem dois momentos em que o Congresso ajuda o Brasil na área ambiental: no recesso do meio do ano e no recesso do final”, diz Astrini.

Para Astrini, o governo federal vem falhando na disputa com os deputados e senadores pelas pautas ambientais, embora tenha um bom projeto para a área.

Ele cita, por exemplo, o fato de a bancada governista ter sido liberada para votar em qualquer sentido (em vez de receber a orientação para votar contra) o marco temporal para as terras indígenas.

“A gente nunca teve um Ministério do Meio Ambiente com tanto apoio no governo. É a primeira vez que um presidente fala em desmatamento zero e tolerância zero para desmatadores. Você tem um ministro da Economia que faz conversas sobre o meio ambiente, um Ministério dos Povos Indígenas... Mas mesmo assim as coisas não estão andando como deveriam”, afirma.

Além na tragédia no Sul, há outras notícias negativas na área. O Norte registra número recorde de queimadas de janeiro a maio deste enquanto a greve de servidores dos dois principais órgãos de fiscalização ambiental do país —Ibama e ICMBio— já dura mais de 100 dias.

Para o especialista, não se trata apenas de uma questão de orçamento mais robusto para ministérios da área —que também é importante — mas da capacidade de integrar essa visão em todos os setores.

“Quem causa o problema de emissões do Brasil? São os atores no setor do Ministério da Agricultura. E no Ministério das Minas e Energia. São esses ministérios que têm que ter programas e investimentos para diminuir as emissões de seus setores”, afirma Astrini. “O Ministério do Ambiente pode multar uma área que já foi desmatada, mas para as ações de mitigação você precisa da ação de todos os agentes.”

A BBC procurou o governo federal para falar sobre o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

O governo, que apesar de não ter maioria no Congresso conseguiu aprovar agendas suas como o novo arcabouço fiscal, não tem “comprado a briga” nas pautas ambientais, opina Astrini.

No caso do marco temporal para as terras indígenas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva até tentou barrar a aprovação da lei que limita a demarcação, mas seu veto foi derrubado pelo Congresso.

A tese do marco temporal é de que apenas áreas ocupadas por indígenas em outubro de 1988, momento em que a Constituição Federal foi promulgada, poderiam ser demarcadas.

Movimentos indígenas questionam a tese porque havia terras que, naquele momento, não eram ocupadas porque seus habitantes originários haviam sido expulsos por invasores. Já os ruralistas alegam que não estabelecer um marco temporal criava insegurança jurídica.

Além de um direito dos povos originários, a demarcação de terras indígenas é considerada por ambientalistas e pesquisadores uma das principais formas de preservação da mata nativa brasileira — hoje as reservas impedem o desmatamento de diversas áreas cujo entorno foi devastado.

Astrini também critica o fato de pautas ambientais terem entrado no cabo de guerra entre o Supremo e o Legislativo, virando parte de uma disputa de poder mais do que uma discussão sobre políticas públicas.

O Senado e Câmara têm entrado em rota de colisão com o STF em diversos temas, em uma disputa sobre os limites de cada poder.

A questão do marco temporal, inclusive, só teve a sua votação acelerada como resposta da bancada ruralista a uma decisão do STF de 2023.

Na época, a Corte rejeitou a tese do marco, que era baseada em uma situação jurídica ambígua. Logo em seguida o Congresso aprovou uma nova legislação determinando a existência de um marco temporal.

“Em algumas áreas, como essa do marco temporal, o Congresso tem usado a questão para atacar os indígenas e o Supremo.”

Além das decisões recentes tomadas pela maioria conservadora do Congresso e de projetos em tramitação, Astrini critica a postura pública de deputados e senadores em relação a temas ambientais.

“São os homens privilegiados, com espaço, que falam com seus eleitores e formam opinião pública. Eles não cansam de repetir que essa coisa de meio ambiente, de regra ambiental, é uma besteira”, diz Astrini. “Mas aí as consequências chegam e a responsabilidade é de quem?”

Para o secretário-executico do OC, esses parlamentares "incentivam quem quer desrespeitar a leis ambientais e prejudicam quem quer fazer certo”. “Então eles têm enorme responsabilidade por situações como essa (no Rio Grande do Sul) e têm que ser cobrados por isso.”

A era das compras

A economia capitalista moderna deve aumentar a produção constantemente se quiser sobreviver, como um tubarão que deve nadar para não morrer por asfixia. Mas só produzir não é o bastante. Também é preciso que alguém compre os produtos, ou os industrialistas e os investidores irão à falência. Para evitar essa catástrofe e garantir que as pessoas sempre comprem o que quer que a indústria produza, surgiu um novo tipo de ética: o consumismo.

A maioria das pessoas ao longo da história viveu em condições de escassez. A frugalidade era, portanto, sua palavra de ordem. A ética austera dos puritanos e a dos espartanos são apenas dois exemplos famosos. Uma pessoa boa evitava luxos, nunca desperdiçava comida e remendava calças rasgadas em vez de comprar novas. Somente reis e nobres se permitiam renunciar publicamente a tais valores e ostentar suas riquezas.

O consumismo vê o consumo de cada vez mais produtos e serviços como algo positivo. Encoraja as pessoas a cuidarem de si mesmas, a se mimarem e até a se matarem pouco a pouco por meio do consumo exagerado. A frugalidade é uma doença a ser curada. Não é preciso olhar muito longe para ver a ética do consumo em ação – basta ler a parte de trás de uma caixa de cereal. Esta é uma citação de uma caixa de um dos meus cereais matinais favoritos, produzido por uma empresa israelense, a Telma:

Às vezes você precisa de cuidados. Às vezes você precisa de um pouco mais de energia. Há momentos para controlar o peso e momentos em que você simplesmente precisa fazer alguma coisa... imediatamente! A Telma oferece uma variedade de cereais saborosos especialmente para você – prazer sem remorso.

A mesma embalagem traz uma propaganda de outra marca de cereal chamada Health Treats:

Health Treats oferece uma porção de grãos, frutas, nozes e castanhas para uma experiência que combina sabor, prazer e saúde. Para uma refeição saborosa no meio do dia, perfeita para um estilo de vida saudável. Um verdadeiro deleite com o sabor maravilhoso de “quero mais” [grifo no original].

Durante a maior parte da história, as pessoas teriam sido repelidas, e não atraídas, por esse texto. Eles o teriam considerado egoísta, indecente e moralmente corrupto. O consumismo trabalhou duro, com a ajuda da psicologia popular (“Just do it!”), para convencer as pessoas de que a indulgência é algo bom, ao passo que a frugalidade significa auto-opressão.

O consumismo prosperou. Somos todos bons consumistas. Compramos uma série de produtos de que não precisamos realmente e que até ontem não sabíamos que existiam. Os fabricantes criam deliberadamente produtos de vida curta e inventam modelos novos e desnecessários de produtos perfeitamente satisfatórios que devemos comprar para “não ficar de fora”. Ir às compras se tornou um passatempo favorito, e os bens de consumo se tornaram mediadores essenciais nas relações entre membros da família, casais e amigos. Feriados religiosos como o Natal se tornaram festivais de compras. Nos Estados Unidos, até mesmo o Memorial Day – originalmente um dia solene para lembrar os soldados mortos em combate – é hoje uma ocasião para vendas especiais. A maioria das pessoas comemora esse dia indo às compras, talvez para provar que os defensores da liberdade não morreram em vão.

O florescimento da ética consumista é mais visível no mercado de alimentos. As sociedades agrícolas tradicionais viviam à sombra terrível da fome. No mundo afluente de hoje, um dos principais problemas de saúde é a obesidade, que acomete os pobres (que se empanturram de hambúrgueres e pizzas) de maneira ainda mais severa do que os ricos (que comem saladas orgânicas e vitaminas de frutas). Todos os anos, a população dos Estados Unidos gasta mais dinheiro em dietas do que a quantidade necessária para alimentar todas as pessoas famintas no resto do mundo. A obesidade é uma vitória dupla para o consumismo. Em vez de comer pouco, o que levará à contração econômica, as pessoas comem demais e então compram produtos para dieta – contribuindo duplamente para o crescimento econômico. Como podemos alinhar a ética consumista com a ética capitalista do empresário, de acordo com a qual os lucros não devem ser desperdiçados, e sim reinvestidos na produção? É simples. Como em épocas anteriores, existe hoje uma divisão de trabalho entre a elite e as massas. Na Europa medieval, os aristocratas gastavam o dinheiro despreocupadamente em luxos extravagantes, ao passo que os camponeses levavam uma vida frugal, cuidando de cada centavo. Hoje, a situação se inverteu. Os ricos gerenciam seus ativos e investimentos com muito cuidado, enquanto os menos abastados se endividam comprando carros e televisores de que na verdade não necessitam.

A ética capitalista e a consumista são dois lados da mesma moeda, uma combinação de dois mandamentos. O mandamento supremo dos ricos é “invista!”. O mandamento supremo do resto de nós é “compre!”.

A ética capitalista-consumista é revolucionária em outro aspecto. A maioria dos sistemas éticos anteriores apresentava às pessoas um acordo muito difícil. Elas recebiam a promessa do paraíso, mas só se cultivassem a compaixão e a tolerância, superassem o desejo e a fúria e controlassem seus interesses egoístas. Isso era difícil demais para a maioria. A história da ética é um conto triste de ideais maravilhosos que ninguém consegue colocar em prática. A maioria dos cristãos não imitou Cristo, a maioria dos budistas não conseguiu seguir os passos de Buda, e a maioria dos confucianos teria causado um ataque de nervos a Confúcio.

Já a maioria das pessoas hoje consegue viver de acordo com o ideal capitalista-consumista. A nova ética promete o paraíso sob a condição de que os ricos continuem gananciosos e dediquem seu tempo a ganhar mais dinheiro e as massas deem rédea solta a seus desejos e paixões – e comprem cada vez mais. Essa é a primeira religião na história cujos seguidores realmente fazem o que se espera que façam. Mas como temos certeza de que, em troca, teremos o paraíso? Nós vimos na televisão.
Yuval Noah Harari, "Sapiens: uma breve história da humanidade"

O urso no meio da sala

Tudo começou com um vídeo do TikTok visto mais de 14 milhões de vezes, da conta Screenshothq, em que se pergunta a oito mulheres se preferiam ficar encurraladas numa floresta com um urso ou com um homem. Sete mulheres respondem “com um urso”. As respostas criaram comoção em muitos homens que não compreenderam as respostas.

Muitas mulheres compreenderam e justificaram porque também fariam essa escolha: se fosse atacada por um urso as pessoas acreditavam, não perguntavam como estava vestida, se disse não, se resisti, se bebi, se denunciei para ficar famosa, um urso não me violaria, não me torturaria, não faria de conta que é simpático, não me perseguiria só porque não dei o meu número de telefone, não me fecharia numa cave, não me violaria sozinho ou em grupo, deixaria o meu corpo tranquilo depois de me ter morto, e ninguém diria que estou a sujar a reputação do urso, ou que nem todos os ursos são assim, etc.

Ora, o clássico “nem todos os homens” tem sido uma das reações frequentes a esta questão, demonstrando que o primeiro instinto de muitos homens é o de defender a sua reputação, identificando-se desde logo com a posição dos agressores e não com a das mulheres que preferem nem sequer ouvir e compreender. Encontramos este tipo de reação em vários outros domínios que têm como fator comum a identificação imediata com as posições de dominação, e não com as perspetivas das vítimas. Exemplo disso é a forma como de cada vez que se fala de racismo até pessoas aliadas da causa não resistem em mostrar a que ponto elas não são assim, a que ponto são antirracistas. Participam numa espécie de concurso de inocência, ao ponto de por vezes caírem no ridículo de compararem os seus comportamentos engajados com o das pessoas vítimas de racismo e de acharem ter legitimidade para explicarem, por exemplo, a pessoas racializadas o que é o racismo e como conduzir a luta antirracista. Da mesma forma que homens explicam a mulheres o que é o machismo ou o verdadeiro feminismo e até no caso em questão como se comporta um urso.

Encontramos este tipo de reação em vários outros domínios que têm como fator comum a identificação imediata com as posições de dominação, e não com as perspectivas das vítimas. Assistimos a este mesmo tipo de padrão nas reações à questão da escravatura e colonialismo, e neste momento, mais especificamente à questão das reparações. A justificação, a relativização e a minimização destes crimes contra a humanidade são muitas vezes motivadas pela identificação com a posição dos opressores, dos criminosos, dos ladrões, dos violadores, e não das vítimas. O argumento tantas vezes utilizado “não se pode ver o passado com os olhos de hoje” é disso uma prova. É porque, para “os olhos” das vítimas, serem violadas, mutiladas, torturadas, separadas das suas famílias, escravizadas, assassinadas sempre doeu, sempre foi horrendo, no passado, no presente, como o será no futuro.

E, aqui, estranhamente, o “nem todos” só parece fazer sentido no presente e esquece-se que de facto no passado “nem todos”. Que houve quem resistisse, quem contestasse a barbárie, a desumanidade, a ilegalidade. Penso, entre tantos outros, no abolicionista Henri Gregoire, a quem já recorri e que escrevia em 1808: “Caluniámos os negros, primeiro para ter o direito de escravizá-los, depois para justificar tê-los escravizado.”

Mas este “nem todo ” do passado não convém agora mobilizar, porque isto quereria dizer que sim, era possível já na altura ver com outros olhos. E, se já era possível ver com outros olhos, isso responsabiliza quem participou nestes crimes contra a humanidade. Nestas questões que parecem ter ficado no passado – sendo que aqui estamos a falar de um tempo ainda mais recente do que o 25 de Abril –, o argumento passa a ser “eu não participei nisto”, portanto “não sou responsável”, “não toquem no meu bolso”, caricaturando o que significam as reparações neste contexto, arrogando-se a autoridade para decidir o que se deve lembrar e o que se deve desmemoriar, esquecendo que no presente ainda existem vítimas, assim como beneficiários individuais e coletivos desse passado. E este urso no meio da sala parece ser bem mais difícil de enfrentar do que o da floresta.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Pensamento do Dia

 


A implosão da mentira

Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente,
mas o tribunal que o julga
herege/mente.

Mentem como se Colombo partindo
do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.

Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso,
iludindo a corrente em curso,
transformando a história do país
num acidente de percurso.
Affonso Romano de Sant’Anna, "A implosão da mentira e outros poemas"

De volta aos trogloditas


A cultura do cancelamento nos embruteceu como sociedade
Wilson Gomes

Incertezas da crise brasileira

O que nos espera lá adiante na história social e política? Tudo indica que, em comparação com o que fomos e com as certezas que já tivemos do que poderíamos ser, nosso lá adiante será a confirmação de uma opção preferencial pelo atraso. Uma opção acidental, por ação e omissão, aos trancos e barrancos de uma história política sem a nervura própria de partidos doutrinários. Em que mais teve voz a incompetência e o oportunismo do que a consciência política propriamente dita.

Essa anomalia chegou ao auge no governo de 2019 a 2022, em que o Brasil foi capturado por um êmulo do Chacrinha, que iniciava seus programas de TV com a advertência: “Vim para confundir”, por meio do desmonte do nosso modesto patrimônio de conquistas democráticas.

Alguns episódios dramáticos de nossa história revelam todo seu sentido nesta atualidade de incertezas. Quando começou nossa decadência? Quando começou o fim de nossa confiança em nós mesmos? Um sinal preocupante de nossa ruína é a persistência de um Brasil bipolar, que estreita nossas alternativas sem abrir-nos a possibilidade de superação democrática de nossas limitações.


Em nenhum lugar do mundo o caminho da história é aberto no rumo do passado. Para ser apenas o que já fomos não é necessário andar para trás. Basta ficar onde já estamos bloqueados desde 1964. O nacional-desenvolvimentismo industrialista, do desenvolvimento econômico com desenvolvimento social, foi revogado pelo crescimento econômico com desenvolvimento social meramente residual. Surgiu a categoria ideológica de “exclusão social”, na verdade inclusão social perversa.

No lugar da urbanização crescente, a urbanização patológica das grandes cidades. No lugar da educação desenvolvimentista, a educação superficial e insuficiente da mão de obra de durabilidade limitada e descartável. É isso que dá entregar um país ao mando do neoliberalismo econômico de periferia.

A direita não tem motivos para se preocupar. Para ela, o poder é o sistema de benefícios subjetivos, próprio da desfiguração do que é propriamente o poder político. A reunião do governo Bolsonaro de 22 de abril de 2020 foi deplorável confissão de pouco caso pelo poder, pelo país e pelo povo brasileiro. Mesmo o dos cúmplices e subalternos do mando, civis e militares. Eles sabem que precisam uns dos outros, dos iguais. Aquilo foi o indício desavergonhado da transformação da nossa decadência em espetáculo.

Mas a esquerda não tem motivos para não se preocupar. Sua missão histórica de levar adiante a construção social e política hoje do Brasil de amanhã vem sendo comprometida por sua fragmentação. E por suas vacilações em relação tanto a urgências sociais e políticas de governo quanto a prioridades sociais, econômicas, educacionais.

Sobretudo sua dificuldade para definir uma coalização política de centro-esquerda que revigore a social-democracia como aliada e dê aos diferentes grupos de esquerda um protagonismo real na política social e na democracia. Que oponha a consciência do presente como história à indigência de concepções que oscilam entre a porta do botequim e o gazofilácio de igreja fundamentalista. Nesse movimento, o protagonismo dos verdadeiros cristãos precisa reencontrar a igreja dos profetas e da comunidade, o da expulsão dos vendilhões do templo.

O processo político não substitui nem precede as outras dimensões do processo social: a cultura, a educação, a ciência, a própria economia. A criatividade minguou. O país vacila numa espécie de indiferença de povo que renunciou ao seu destino.

Hoje, “patriota” é basicamente quem está no rol dos que foram capturados na insurgência de 8 de janeiro de 2023 e estão sendo processados como delinquentes políticos e condenados a longas penas. Inconscientes e alienados, acham que estão cumprindo uma missão de Deus, pois tudo sugere que muitos acreditam que foram chamados por ele a um serviço pela pátria.

A esquerda se fragiliza porque capturada pela armadilha do contraponto com a extrema direita militarizada cuja identidade se apoia num imaginário manipulado. Uma direita que, negação da democracia, não demonstra competência como mediação de superação de impasses políticos da sociedade brasileira.

Em boa parte porque a esquerda se fragmentou no que poderia ter sido diversificação das orientações políticas como expressões da diversidade social de uma sociedade que se desagregava e continua se desagregando. Uma esquerda representativa da pluralidade social e ideológica, mas com dificuldades para desenvolver uma consciência de referência de uma coalização possível de oposição ao totalitarismo e de crítica social do autoritarismo de um capitalismo da menos-valia e do prejuízo.

Vítima das Embalagens

Entro no chuveiro. Relaxo na água quentinha. Pego o xampu. É novo. Tento virar a tampa. Não cede. Aproximo meus olhos míopes. Está envolta em um plástico duro, transparente. Puxo. Minhas unhas curtas resvalam. A batalha demora alguns instantes. Minhas investidas não produzem resultado algum. Tenho cabelos oleosos. Sem um bom xampu, fico tão charmoso quanto um tapete de pele de carneiro. Ataco a tampa a mordidas. Meus dentes rangem. Mal arranco uma lasquinha. O xampu cai da minha mão. Abaixo-me. Tropeço. Caio sentado. O frasco continua invicto.

Recentemente, também fui vítima de uma lata de patê de fígado. Era daquele tipo que vem com uma chavinha. O segredo é enrolar a chavinha bem devagar em torno do topo, até que a parte de cima se solte. Teoricamente. Como sempre, fiquei com a chavinha inútil numa mão e a lata fechada na outra. Os amigos bebiam cerveja na sala. Quis enfiar a chavinha de novo. Impossível. Tentei com o abridor. Não havia ângulo para apoiar. Peguei uma faca e um martelo. Fui esfaqueando a lata pela parte de cima. Cavava um buraco, em seguida outro do lado, e assim por diante. Quando achei que dava, puxei. Abri.

Mas a lata, cheia de pontas metálicas, bateu na minha mão.

Espalhei patê pelo piso. Eu me cortei. Um cortezinho ridículo, mas corte. Os amigos vieram correndo. Falaram em tétano e pronto-socorro. Jurei nunca mais comprar patê de fígado com chavinha. -


Frascos, latas e semelhantes levam qualquer ser humano à beira da loucura. Remédios e vitaminas são hors-concours. Só provam uma coisa: quem conseguir abrir está perfeitamente saudável. As aspirinas têm vindo com uma tampa na qual há uma setinha minúscula em relevo. A tal setinha tem de encaixar com outra marquinha. Algo tão minucioso quanto abrir um cofre sem o segredo. Para quem está estalando de dor de cabeça, uma delícia. Alguns sucos vêm em embalagens de papelão com um recorte picotado. "Aperte aqui", diz um aviso. Aperto e não acontece nada. Depois de inúmeras tentativas, arrebento o papelão no lugar errado. O suco esguicha para o copo pelo lado. Um horror.

Engoli derrotas até de embalagens de produtos de limpeza. Algumas vêm com uma tampa simples. Aberta, descobre-se uma nova tampa. O lugar onde devia haver um furinho está tapado com plástico resistente. Tudo bem. E uma medida natural do fabricante para impedir que o detergente alague o caminhão de entrega. Mas a tampa é planejada numa medida tal que nada consegue fazer o furinho. A ponta das facas não penetra. Nem a da tesoura de cozinha. Tento com um garfo. A dimensão é perfeita. Quase consigo. Empurro um dente do garfo no plástico. Entorta para o lado, mas não faz o furinho. Fico com o garfo destruído e a embalagem fechada. Paro alguns segundos. Tomo um café. Cravo chaves de fenda de tamanhos variados. Nenhuma serve. Lembro-me do abridor de vinhos. Tenho um superchique, de design italiano, que reservo para os dias de visita. Quase acabo com o abridor, mas consigo. Furinho feito, vou lavar os pratos. Espremo a embalagem e o produto sai por todos os lados. As várias tentativas criaram pequenas aberturas. Espirra até no armário da cozinha. Minha orelha fica cheia de detergente.

Estou consciente de que os fabricantes têm sólidas razões para me torturar dessa maneira. Proteger o produto é uma delas. Impedir que crianças abram frascos indevidos é outra. Nesse último caso, trata-se de pura ilusão. Petiscos em saquinhos metálicos indevassáveis e bugigangas eletrônicas treinaram a meninada. Para minha humilhação, qualquer garotinho abre uma embalagem complexa em segundos. Eu me sinto como se fosse um alienígena, ainda não adaptado para conviver com os progressos da civilização. Tenho saudade das embalagens do passado. Quando bastava um pouco de firmeza para torcer tampas ou usar o abridor de latas. Força, só para estourar a rolha da garrafa de champanhe. Mas, aí, sempre valia a pena, por conta da comemoração.
Walcyr Carrasco

Milei e Bolsonaro: o desprezo pelas universidades públicas

Ganhou cinco prêmios Nobel, formou 16 presidentes e estava entre as 100 melhores universidades do mundo: essas são apenas algumas das conquistas da Universidade de Buenos Aires (UBA). Incrível, né? Mas isso não impediu Javier Milei, o polêmico presidente argentino, de descrever a universidade como "um espaço de doutrinação comunista e lavagem cerebral".

O ataque também afetou o orçamento das instituições públicas de ensino superior na Argentina. Atualmente, o país tem a maior inflação do mundo, cerca de 290 % anuais, mas foi liberado para a instituição o mesmo orçamento de 2023. Emiliano Yacobitti, o vice-reitor da UBA, disse em uma entrevista que o hospital universitário precisou até cancelar algumas cirurgias e que a instituição corre o risco de eventualmente não conseguir arcar mais com despesas operacionais básicas, como luz e água.


Tive a oportunidade de conversar com Estefanía Paola Cuello, advogada e professora de Teoria do Estado e História do Direito na Faculdade de Direito da UBA. "Sou contra as políticas de cortes levadas a cabo por Milei. As universidades favorecem a construção da identidade do país, uma vez que promovem e endossam a própria função do Estado. Atacar elas é atacar qualquer possibilidade de aproximação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade", afirmou.

Segundo ela, governos como o de Milei tendem à disciplina e à censura dos centros de pensamento. "Contudo, no caso particular da Argentina, o atual executivo está adotando um papel exageradamente ridículo e desnecessário na sua gestão pública. Milei transcende os discursos comuns na América Latina que lutam contra o ‘marxismo cultural'. Ao lado de Milei, Bukele parece moderado e Bolsonaro sério. Mas sua busca vai além de uma posição ideológica. É a busca pelo posicionamento digital através do desprezo por qualquer manifestação cultural séria. O presidente argentino busca ser uma estrela das redes sociais, uma réplica vulgar de Bukele".

O caso Argentino me lembra muito o caso brasileiro. A USP, a Unesp, a Unicamp, a UFRJ, a UFRGS, a UFBA, a UFMG e muitas outras instituições de ensino superior público brasileiro são referência mundial, mas isso não as impediu de serem alvo de perseguição do ex-presidente, Jair Bolsonaro. Ele e Milei compartilham, além de outras características, um aparente ódio pelo ensino superior público, classificando as universidades como supostos centros de esquerda e espaços de comunismo, que fazem lavagem cerebral.

A UFRJ, assim como a UBA, chegou bem próximo de fechar as portas simplesmente por correr o risco de não conseguir pagar as despesas de luz.

Espaços plurais

A semelhança descrita acima não é coincidência e para entender melhor eu entrevistei Paolo Ricci, cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP). "Há certo consenso na literatura em chamar esses políticos de populistas. Em seus discursos, é uma constante a contraposição entre o povo, moralmente puro, e os "outros", a elite, vistos como corruptos e imorais fazendo amplo uso de uma linguagem emotiva. Na América Latina, a direita populista centra sua fala contra a esquerda taxada não apenas de ser corrupta, mas de ser comunista e socialista; uma caracterização extremamente marginal. Em geral, o que caracteriza um discurso populista é a simplificação de questões complexas dando a entender que os populistas possuem soluções para os problemas que os "outros" não conseguem enfrentar", afirmou.

Ele continua: "Um dos elementos destacados pelos estudiosos é o aspecto antipluralista dos populistas no sentido de se apresentar com os únicos que representam o povo. Aqui, portanto, temos que reconhecer um aspecto autoritário no populista, voltado para deslegitimar a ação do opositor em termos competitivos e representativos. Milei e Bolsonaro se enquadram nessa ideia. Se a literatura tem clareza sobre o populismo autoritário de Bolsonaro, Miliei ainda está sob avaliação, mas há fortes similaridades entre os dois".

O ataque às universidades, segundo ele, não é uma constante entre os governos populistas. Esses ataques no Brasil são "uma tentativa a mais de deslegitimar o PT e, mais em geral, a esquerda e suas pautas que encontram expressão no âmbito universitário, como as pautas identitárias".

Já na Argentina, segundo Cuello, "este movimento, talvez, tenha sido uma tentativa de se destacar pelo contraste e se opor diametralmente às políticas públicas características dos governos de Cristina Fernández de Kirchner e do peronismo em geral. Possivelmente, ele procurou atrair o eleitorado antiperonista e o emergente eleitorado libertário".

Além disso, os dois especialistas também concordam em um importante aspecto: não é verdade que há uma hegemonia esquerdista nas universidades públicas. Elas são, muito pelo contrário, espaços heterogêneos de correntes e posicionamentos.

Faço no mestrado em uma universidade pública e cursei a graduação em outra, ambas estão entre as melhores do país. São centros de excelência e que não "doutrinam" seus alunos, mas sim os provocam para despertar o próprio senso crítico.

Graças à formação que recebemos, conseguimos, inclusive, perceber o quanto governantes como os aqui descritos se maquiam com uma narrativa pró-povo, anticorrupção e a favor da liberdade, quando na verdade são antidemocracia e não se preocupam nem um pouco com próprio povo.

Muitos deles, talvez não coincidentemente, não estudaram em uma universidade pública. Se dedicassem o mesmo tempo que gastam falando mal delas as visitando, saberiam o que realmente acontece lá e talvez teriam posicionamentos diferentes e mais respeitosos com instituições que, inclusive, impulsionam o desenvolvimento do país.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Pensamento do Dia

 


Pobre com carro

Freud dizia que o dinheiro não traz felicidade porque não é um desejo de infância. Talvez seja por isto que a posse de um automóvel enche de lágrimas felizes os olhos de tantos brasileiros. Desde os primeiros cambaleios infantis esses pobres diabos são induzidos a puxar por um cordão uma traquitana qualquer com quatro rodas e a produzir onomatopéias tipo rom-rom-rom e pi-biiit. Para milhões desses desventurados, o carro torna-se o mais multifuncional dos símbolos. Ele é rito de passagem para o mundo adulto, é diploma de ascensão social, é triunfo tecnológico sobre o Espaçotempo, é alcova sobre rodas, é escafandro protetor contra os esbarrões da plebe, é talismã semiótico, é prótese locomotora em quatro dimensões… O verbo ser é um conceito abstrato, metafísico, mas ganha carne, osso e metal com este sinônimo reluzente: “ter um carro”.


Muitos amigos meus dizem que pagariam qualquer preço por um frasco de perfume com “cheiro de carro novo”, e só não mango porque eu, por exemplo, gosto de cheiro de livro velho (mas não, não compraria um frasco de perfume, compraria um livro velho, como se tivesse poucos). E assim não é difícil entender porque nossas cidades não funcionam, nosso transporte público é uma porcaria, nossos urbanistas fazem as pessoas se adaptarem ao trânsito e não o contrário. Diz-se mundo afora que “país rico não é aquele onde pobre tem carro, é aquele onde rico anda em transporte público”. Duvido que vejamos o Brasil ser assim um dia. O sonho dos governos brasileiros e da indústria brasileira é termos um dia 200 milhões de carros para 200 milhões de pessoas. E as cidades que se explodam.

O site “Livable Streets” faz um apanhado de pequenas mudanças que poderiam ser implementadas em nossas ruas para expandir o espao humano e controlar melhor o espaço dos automóveis. Isto de nada adianta, contudo, se o país continuar se suicidando com o aumento da produção e venda de automóveis, sob o pretexto de geração de divisas e criação de empregos.

A psicose automobilística endivida milhões de famílias hipnotizadas pela fantasia de ascensão social e inviabiliza as cidades. Cidades deformadas e desfiguradas pela ideologia individualista do cada-um-por-si, onde usar transporte público ou é uma tortura (onde ele é entregue às baratas) ou é humilhante mesmo onde ele tem boa qualidade. Refugiar-se no carro é a derradeira ilusão da classe média. Ela imagina estar melhorando de vida e está apenas trocando a pobreza por uma engorda para abate, uma espécie de empobrecimento financiado que a leva a trabalhar e produzir cada vez mais para ficar com cada vez menos.

As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

“Ganharás o pão com o suor do teu rosto”
Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão.”

Ó vendilhões do templo
Ó constructores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Livro sexto"

Indecência


O Hamas tem diante de si duma proposta extraordinariamente generosa e deve decidir rapidamente
Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA 

Emprego melhor não muda mau humor de boa parte do pais

Este é um país conflagrado, bidu. Dedica-se a guerras político-culturais por qualquer motivo, das últimas do Xandão do Supremo à música de cantores populares e casamentos de "famosos" e "influencers". Quando começar a campanha para a eleição municipal, deve haver picos de burrice, mentira e "polarização".

Dados econômicos causam o torpor do enfado na maioria das pessoas. São ainda mais desprezados nesse ambiente inflamável, quando não são desmentidos nas redes com fé cega, faca amolada e nenhum argumento.

No entanto, números recentes, como os do emprego indicam melhorias reais.

O número de pessoas ocupadas, com algum emprego, está crescendo a 2,3% ao ano: rápido. Havia desacelerado até outubro de 2023, mas se recupera desde então. O salário médio cresce ao ritmo anual de 4% acima da inflação.

A massa salarial, soma de todos os rendimentos do trabalho, cresce a 6,6% ao ano. Está em um nível cerca de 16% maior do que o dos picos de 2014 e 2015.

São contas feitas com dados do IBGE, divulgados nesta terça-feira (30), quando também saíram os números do emprego formal, dos registros do Ministério do Trabalho (vulgo Caged). No primeiro trimestre, foram criados cerca de 719 mil empregos, bem mais do que os 536 mil do início de 2023.

O mercado formal está movimentado, com muitas admissões e demissões, com alta forte do salário de admissão. Isso quer dizer também que mais pessoas têm oportunidade de mudar de emprego, por um trabalho melhor.

O índice de sofrimento ou de infelicidade ("misery index", em inglês) é uma medida elementar de bem-estar econômico e da conjuntura, da economia no curto prazo, uma ideia do economista americano Arthur Okun (1928-1980).

É a soma das taxas anuais de inflação e de desemprego. Para os meses de março, está no menor nível desde 2012, período para o qual há dados comparáveis. Desemprego e inflação estão em níveis historicamente baixos.

O mal-estar difuso permanece, porém, como se pode notar também pela ligeira baixa de popularidade de Lula da Silva ou pelo nível ainda baixo da confiança do consumidor.

Mesmo dando o desconto do clima político e o fato de que o país ainda não se recuperou de uma década de desastre socioeconômico, o tamanho do desânimo é um pouco intrigante, porém.

Quem quer que comente a queda recente da taxa de inflação será apedrejado nas redes e noutros fóruns virtuais, nos quais se vai ler também que o IBGE mente. Em parte, entende-se a reação.

A taxa de inflação, no caso a variação da média dos preços para o consumidor, é de fato menor. Mas o nível de preços fundamentais continua alto em relação ao salário médio.

Entre os preços mais conhecidos e acompanhados pelo consumidor estão os de comida, combustíveis, remédios, energia e transporte.

Desde pouco antes do início do impacto da epidemia (março de 2020) até março de 2024, a média do preço dos alimentos levados para casa aumentou 46,7%; o salário médio subiu 31,2%. Desde 2012, a disparidade havia sido tão ruim apenas no ano de 2016 da Grande Recessão.

A vida despiorou um tico até para quem está no fundo do poço do inferno social, quem não tem trabalho algum ou sobrevive dos bicos mais tristes. As taxas de pobreza e miséria diminuíram por causa do Bolsa Família ampliado.

A alta da dívida pública, a perspectiva crônica de juros altos, a guerra dos impostos travada pelas elites, a falta de investimento etc. não entram no radar popular. Comida cara ajuda a explicar o desânimo, assim como a impaciência justa depois de uma década de sofrimento ou frustração.

"Polarização" não explica o aumento do desânimo entre eleitores lulistas. Parece haver algo que ainda não entrou no radar das elites explicadoras.

Como a guerra afeta o desenvolvimento das crianças

A violência ao redor do mundo chegou a patamares que não se viam há pelo menos 30 anos. Além das guerras na Ucrânia e entre Israel e o Hamas, no Oriente Médio, existem ao menos outros 110 conflitos armados acontecendo na África, na Ásia, na América Latina e na Europa.

Muitas dessas guerras estão sendo travadas em cidades e áreas civis densamente habitadas. Como consequência, ataques com mísseis e drones têm afetado civis, escolas, hospitais e abrigos.

Autoridades alertam que hoje, mais do que nunca na história moderna do planeta, as maiores vítimas dessas disputas geopolíticas são crianças. O secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, disse diversas vezes que elas estão carregando o peso dos conflitos modernos de forma "desproporcional".

Parte desse fardo é físico: muitas crianças vivendo em zonas de guerra são recrutadas para o combate; outras são abusadas sexualmente por agressores armados. Mas independente de terem ou não sua integridade física violada, crianças em áreas de conflito armado passam por um sofrimento psicológico profundo.


Crianças em cidades ucranianas na linha de frente da guerra, por exemplo, passaram entre 3 mil e 5 mil horas de suas vidas – o equivalente a entre quatro e sete meses – em abrigos subterrâneos desde o início da invasão russa, dois anos atrás.

"A mistura de medo, luto e separação de entes queridos está tendo um impacto tremendo em crianças à medida que a guerra se arrasta ", afirma Leah James, especialista em apoio à saúde mental do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Segundo ela, 40% dessas crianças não estão tendo aulas presenciais.

O resultado disso tudo é que milhões de pessoas devem sofrer futuramente com níveis desproporcionalmente altos de problemas de saúde mental e psiquiátrica, alertam especialistas.

Na Ucrânia, assistentes psicossociais temem que a longa duração da guerra possa estar provocando atrasos severos no desenvolvimento das crianças.

Segundo Christoph Anacker, neurocientista da Universidade de Columbia nos Estados Unidos, isso é algo confirmado pela ciência. "Estressores na primeira infância podem causar anomalias específicas no desenvolvimento e na função dos circuitos neurais na vida adulta, principalmente aqueles envolvidos na resposta ao estresse."

Anacker explica que o trauma nessa fase inicial da vida altera as respostas ao estresse e ao medo no cérebro, "ensinando-o" a ser mais suscetível ao estresse na vida adulta. Daí o motivo de os hormônios do estresse serem muitas vezes liberados mais frequentemente nas pessoas que passaram por adversidades na infância.

Além disso, o neurocientista diz que crianças com esse perfil têm um risco maior de sofrerem mais tarde com transtornos de ansiedade, depressão e doença de Alzheimer.

E embora tanto adultos quanto crianças que vivenciam uma guerra possam sofrer de transtorno do estresse pós-traumático, Anacker pondera que o cérebro adulto é muito mais resiliente porque é menos "plástico" – ou seja, não tende a sofrer grandes alterações.

Durante a infância, o cérebro passa pelo que especialistas chamam de "períodos sensíveis" do desenvolvimento. Se uma criança é hiperestimulada por causa de um luto ou da ansiedade de estar sob um bombardeio, ou se é privada de estímulos sociais e emocionais durante esses períodos, como acontece quando são separadas da família, por exemplo, Anacker diz que isso pode levar a uma reconfiguração do cérebro.

O dano que isso causa é irreparável, afirma Anacker. "Não há maneiras eficazes de reverter os efeitos do trauma infantil em adultos."

Daí a importância, segundo o neurocientista, de minimizar a exposição de crianças a fatores estressores durante os períodos sensíveis de desenvolvimento.

James, da Unicef, afirma que o órgão tem trabalhado para reduzir os efeitos de longo prazo dos estressores na primeira infância em crianças na Ucrânia.

"Algumas das intervenções que realizamos são simples: garantir que as crianças tenham um espaço seguro para brincar e se conectar com outros, ensinar habilidades básicas para lidar com o luto e a separação", lista James. "Mas grande parte consiste em apoiar os cuidadores para que possam ser modelos positivos para as crianças. Cuidar de alguém em tempos de guerra é incrivelmente difícil. Aliviar o estresse deles também impacta seus filhos."

Porta-voz da Unicef, Joe English ressalta, porém, que crianças em conflitos em outras regiões não têm tido o mesmo apoio.

"Diante da escala das necessidades em conflitos ao redor do mundo e do subfinanciamento crítico e crônico de questões humanitárias em geral e proteção infantil mais especificamente, muitas crianças não conseguem obter o apoio de que podem estar precisando", afirma English.

Enquanto há maior disponibilidade de dados sobre crianças e famílias ucranianas, a extensão do problema em outras zonas de guerra no mundo, inclusive em Gaza, Iêmen e Sudão, ainda é desconhecida devido à falta de dados confiáveis.

terça-feira, 30 de abril de 2024

CEFEs e Lula

Louvável o elogio do presidente Lula ao ex-governador Leonel Brizola por implantar os chamados Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) no Rio de Janeiro, nos anos 1980. Entre o Merenda Escolar (1955) e o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (2023), o Brasil lançou dezenas de leis. Sete décadas depois do primeiro, a necessidade desse último mostra o fracasso dos anteriores: os bisnetos ainda estão precisando de pacto federativo para realizar, aos oito anos, o que deveria ter beneficiado seus bisavós, aos cinco.

Fracassamos porque, no lugar de projetos executivos nacionais ambiciosos, optamos por intenções legais e com execução municipal. Brizola não fez leis, implantou escolas. Mas os CIEPs já não comportam as inovações pedagógicas surgidas nas últimas décadas; além disso, a estratégia de mudar a educação do país por unidades escolares isoladas não dá a continuidade necessária para atingir todo o sistema escolar. No lugar de escolas, o Brasil precisa de Cidades inteiras com Educação Federal (CEFEs) até formar um sistema de educação de base com qualidade e equidade para todos.


A solução para a qualidade e a equidade já existe e é praticada: ampliar para todas as crianças o sistema escolar das públicas federais. Essas escolas federais já demonstram qualidade superior à média nacional e às próprias escolas particulares de boa qualidade. Faltam-lhes pouco para poderem oferecer a todos seus alunos a formação para terminarem a educação de base plenamente preparados para o mundo contemporâneo: falar e escrever bem o idioma português; fluente em pelo menos mais um idioma; conhecer os fundamentos da matemática, ciências, geografia, história, artes, filosofia; debater os temas do mundo moderno; usar as ferramentas digitais; dispor de pelo menos um ofício; ser capaz de administrar suas finanças particulares; adquirir solidariedade com os vizinhos, com a humanidade e com a natureza; ser capaz de obter educação continuada até o fim da vida; disputar vaga em curso superior de qualidade em condições iguais com os demais brasileiros. Com esse conhecimento, todos concluiriam sua educação de base dispondo do mapa para caminhar em busca da felicidade pessoal e das ferramentas para construir um Brasil com pleno desenvolvimento sustentável.

Sucessivos governos nacionais substituiriam as escolas municipais de cada cidade por federais, todas em horário integral, com edificações e equipamentos modernos; professores de uma carreira nacional com elevada remuneração, formação, dedicação e avaliação de resultados. Ao final, estaria implantado o sistema nacional com o padrão das atuais escolas federais de reconhecida qualidade.

Há décadas, essa solução é limitada para um pequeno número de brasileiros que podem pagar custosas escolas particulares ou que conseguem acesso em competentes escolas federais: um sistema injusto, porque exclusivo para poucos, e ineficiente, porque desperdiça milhões de cérebros, principal recurso do mundo atual. Além da injustiça, o Brasil continua barrando o potencial de 80% de seus cérebros. Sem uma política nacional ambiciosa e com instrumentos federais efetivos, em 2041, apenas 50% dos 2,5 milhões dos brasileiros que nasceram em 2023 terminarão o ensino médio; no máximo, a metade deles plenamente preparados para as exigências do mundo contemporâneo. Hoje, pagamos elevado preço por esse descuido histórico. Está no momento de fazer a inflexão necessária para construirmos o país que desejamos.

Nenhum governo será capaz de implantar esse sistema em todo o território nacional durante um ou dois mandatos, mas o governo Lula ainda tem condições de espalhar o padrão federal em 50 a 100 cidades, com 10 mil alunos cada. Seu governo estaria dando início à revolução que o país precisa se quiser aproveitar o recurso intelectual de cada brasileiro e dar oportunidades iguais a todos eles.

Outros presidentes adotaram estratégias nacionais para indústria e infraestrutura, sucessivos governos desde a redemocratização investiram no aumento do número de alunos no ensino superior, mas nenhum assumiu a responsabilidade nem definiu metas e rumos ambiciosos para a base do progresso, que é a educação básica. O presidente Lula tem a oportunidade de deixar essa marca originada em seu governo com ambição transformadora para todo o Brasil. Se ele não quiser, esperemos que, em 2026, algum candidato apresente a proposta das CEFEs em sua plataforma eleitoral. E que os eleitores o escolham.

Relaxe

Estupidez de morte


Deus nos acuda. Contra a estupidez até os deuses lutam em vão
Kurt Vonnegut, "Um pássaro na gaiola"

Contarás

Contarás de Abril o assombro, o desassossego, as súbitas visões de beleza longamente sonhadas, o assanhamento da hora vesperal; o renascer, meu e teu. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas docemente nossas que rimam connosco, as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas docemente nossas que rimam connosco , as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril os gritos, as imprecações, as cóleras, o idioma ressurecto na fraternidade de frases efusivas, no estertor. Contarás de Abril aquele haver viagem, aquele cheiro antigo de chuva de infância, a peca sombra, o chouto curto, o bêbado de rua que te assustou, temulento, a frugal manhã. Contarás de Abril o lado esquerdo da madrugada; cíclicos, os sismos: o chão em fissuras laceradas; de vagarosa, a capa da terra a recobrir o oco, as galerias naturais do ódio, onde rebramia o mar, sobre o qual haviam colocado o pinho e pedra e reconstruído a cidade, longa história de uma frustração. Contarás de Abril, os passos. Contarás de Abril , os sons , ínsitos na paisagem nocturna, nas betesgas. Contarás de Abril que me viste trajado de briche e holandilha, seteira ao ombro, num baixel de antigamente, soletrando palavras felizes, sem direcção nem sentido, como tudo o que é feliz. Contarás de Abril, aos meus filhos, filhos teus, que os meus olhos míopes, ardidos, urbanos, ficaram cheios de um ofício de dizer coisas singelas, humildes e absurdas: como amor, liberdade.
 
(...) Contarás de Abril o renascer da essencial frescura.
Contarás de Abril.
Contarás , meu amor.

Baptista-Bastos , " Contar de Abril" 

Em algum momento, toda guerra vira sumidouro de vidas

É sabido que somente cada um de nós pode construir a ponte em que atravessará o rio da vida. Nessa trajetória, somos únicos e estamos sozinhos. O caminho de fuga mais fácil para essa travessia, esse navegar pela vasta e complexa realidade que escapa a nosso controle e compreensão, é acumular certezas. Só que certezas de porteira fechada, além de daninhas para nós mesmos, em nada ajudam o convívio em sociedade. Como escreveu o espirituoso ensaísta americano George Saunders, neste mundo cheio de pessoas que confundem certeza com poder, é um alívio encontrar alguém que não teme a própria insegurança. Não raro são mentes privilegiadas, perpetuamente curiosas, que sabem como a realidade é plural, não singular, planície para vários pontos de vista, não ponto de observação com foco único.

A bebê Sabreen al-Rouch Jouda não teve tempo para esse tipo de elucubração existencial. Nasceu prematuramente, arrancada do ventre materno no Hospital Emirati de Rafah, em Gaza, no sábado, dia 20. Mãe, pai e irmã haviam morrido nos escombros da casa familiar atingida pelo bombardeio israelense. Sobreviveu por cinco dias envolta em orações dos parentes. “Agora”, contou o tio à Associated Press, depois de enterrá-la numa franja de cemitério ainda intacta, “a família do meu irmão está completamente erradicada. Será deletada do registro civil. Não restará nenhum vestígio dele”.


Em algum momento, toda guerra vira sumidouro de vidas — quanto mais longa, mais nos entorpecemos com o noticiário repetitivo. Só por vezes, quando a rotina da desgraceira acusa algum pico de desumanidade, voltamos a prestar alguma atenção ao horror. Foi assim com a recente descoberta de mais de 700 cadáveres palestinos no perímetro de dois grandes complexos hospitalares do enclave — o Nasser, em Khan Younis, e o Al-Shifa, em Gaza.

Durante seis dias, uma única escavadeira (só resta uma em funcionamento na região) desenterrou mais de 320 corpos de valas comuns na área do hospital Nasser. Semanas antes, perto de 400 outros haviam sido descobertos entre as ruínas do Al-Shifa, desossado pelas Forças de Defesa de Israel depois de um cerco de duas semanas em abril. Segundo testemunho de entidades humanitárias, a cada corpo encontrado acorrem dezenas de pessoas na esperança de identificar algum parente desaparecido. Algumas lápides improvisadas têm inscrições rudimentares: “Sujeito alto. Cabelo comprido. Camiseta cinza”. Fiapos de informação deixados por alguma alma caridosa. Cabe então a cada parente tentar lembrar o que filho, mãe, irmão, mulher usavam quando foram mortos. Felicidade, em Gaza, é poder salvar os seus mortos da invisibilidade de um não enterro.

De onde surgiram tantos cadáveres de uma só vez? De acordo com a Defesa Civil do enclave, seriam, originalmente, túmulos temporários para quem morreu no perímetro hospitalar durante o cerco israelense regado a bombas. Com os hospitais cercados, era impossível levar qualquer morto até um cemitério. O próprio Exército de Israel, em comunicado, confirma que os cadáveres de palestinos apressadamente enterrados “foram examinados” pelas forças invasoras, na tentativa de “localizar nossos reféns e desaparecidos”. Acrescenta o comunicado que “a perícia foi realizada de forma cuidadosa”, e os cadáveres não pertencentes a israelenses foram “devolvidos a seu lugares”. Não há menção de haver sido encontrado qualquer um dos 133 reféns ainda em mãos dos terroristas do Hamas.

De Washington a Berlim, passando por Londres, Bruxelas e Paris, e inevitavelmente pela ONU, houve um surto de inquietação com pedido de “apuração transparente, clara e crível”, conduzida por investigadores independentes. O jornalista palestino Akram al-Satarri, entrevistado pelo portal Democracy Now!, dá de ombros. Exerce o jornalismo há 16 anos e perdeu a conta de comissões independentes, investigações, relatórios internacionais, missões de averiguação vazias. “A comunidade internacional falhou ao não observar a lei humanitária, que sabe ser tão rica em termos e palavreado. Precisamos de algo tangível, já.”

Esse algo ainda tímido veio à luz nesta semana, na forma de um apelo capitaneado por um emparedado presidente Joe Biden em conjunto com 16 outras nações (inclusive o Brasil), para que o Hamas aceite a proposta de libertar todos os reféns que mantém cativos em condições inimagináveis por mais de 200 dias. Em troca, um cessar-fogo imediato e prolongado — o que, para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, equivaleria a admitir que sua guerra ao Hamas fracassou, que a realidade é plural e que o acúmulo de certezas é sinal de fraqueza. A estudantada mundial, com seus erros e acertos de DNA, já compreendeu o essencial. Falta aos adultos no poder fazerem o mesmo.

A nova espiritualidade sem os deuses da extrema direita

Talvez a paixão pela Bíblia dos novos movimentos fascistas e nazistas de extrema direita não seja uma coincidência. O livro considerado o maior monumento literário religioso de todos os tempos é hoje contestado politicamente pelos partidos que ressurgem das cavernas da intransigência e da violência. E confesso o meu desconforto ao ver esta publicação da Bíblia, usada mais como arma envenenada do que como remédio para a alma, erguida bem alto, como uma bandeira pelas mãos dos novos ditadores no poder: de Trump a um Bolsonaro que veio para querer impor a Bíblia como único livro didático nas escolas.


É verdade que a Bíblia contém a mais sublime e a mais baixa das paixões humanas porque é, na realidade, uma visão do céu e do inferno que todos carregamos dentro de nós. É a fotografia da complexidade do ser humano, meio deus e meio demônio. O que acontece é que no ressurgimento de novos fascismos, quase sempre com conotações religiosas, o que é interessante na Bíblia é apenas a fotografia que ela faz do Deus da vingança, dos massacres, dos medos ancestrais da condenação eterna.

Assim, mesmo os movimentos modernos das igrejas evangélicas e pentecostais que tanto atraem os novos ditadores, acabam apresentando aos fiéis Deus como vingador ao invés do misericordioso que abençoa os pacíficos e os que sofrem perseguições. É a religião da violência contra o Deus do perdão e da solidariedade, mais o Deus das guerras do que o Deus da paz.

Acredito que a Bíblia é o melhor compêndio que existe da complexidade do Homo sapiens com suas mais variadas pulsões e contradições. O livro que melhor nos retrata e que mais se presta a tornar-se um manual guerreiro, sublimando o manual do perdão e da paz.

Talvez por esta razão, embora me deixe visivelmente desconfortável ver a Bíblia nas mãos dos novos ditadores no poder que incitam guerras e praticam a religião do olho por olho, sinto uma certa ternura quando a vejo nas mãos de gente simples e humilde que mal sabe ler. Apenas dois exemplos vividos pessoalmente aqui no Brasil . A primeira foi a de uma trabalhadora que veio da favela do Turano, no bairro Rio Comprido, no Rio. Eu estava passeando com meu cachorro quando vi aquela mulher sentada em uma pedra lendo a Bíblia. Ela provavelmente estava esperando uma Van para ir trabalhar, para limpar uma casa.

Não ousei perguntar que parte da Bíblia ela estava lendo, mas percebi que era o Livro dos Salmos. Nós nos cumprimentamos apenas com os olhos. Percebi que as mãos que seguravam o exemplar já desgastado eram mãos que traziam marcas de muito trabalho. A cena produziu em mim ternura e não pouca reflexão.

Aqui na pequena e alegre cidade pesqueira de Saquarema, famosa por seus campeonatos mundiais de surf, tomando um café com leite e um pão de queijo em um bar, notei alium exemplar aberto da Bíblia. Quando perguntei à proprietária por que seu pequeno bar abria tão tarde, ela me disse que eles tinham uma filha com uma deficiência grave e que precisavam esperar alguém para cuidar dela enquanto trabalhavam.

Comecei a olhar o exemplar aberto da Bíblia e perguntei se ela gostava dele. Ela me respondeu algo que ainda não foi apagado da minha memória anos depois: “Isso me ajuda a não me desesperar”. A verdade é que o Deus da Bíblia daquela mãe que sofreu para sempre a dor da filha doente, não era, como o do trabalhador da favela do Rio, o dos novos ditadores de plantão, os Trumps e os Bolsonaros ou o Deus do ditador espanhol Francisco Franco que manteve a Espanha afastada do mundo durante 50 anos, atolada na pobreza e que parece ameaçar ressuscitar novamente.

Entretanto, pela primeira vez na história, surge uma nova espiritualidade sem deuses e menos ainda sem os deuses dos ditadores. Pela primeira vez, está a surgir um movimento que tenta reconciliar a fé e a esperança com a ciência moderna. É esse diálogo novo e criativo entre ciência e fé que nos redime dos nossos medos, das nossas depressões e angústias psíquicas modernas. Mesmo nas famosas universidades americanas, coisas tão simples e profundas ao mesmo tempo como a gratidão, a amizade, a esperança, a compaixão por quem sofre e a verdadeira amizade são estudadas através de experiências pessoais como novas realidades, até religiosas e libertadoras.

A novidade do nosso tempo, tão complexo e em plena evolução existencial, é que é precisamente a ciência e não os velhos feiticeiros que descobrem os laços estreitos que existem, como antídoto para o desespero existencial que nos persegue, e não as virtudes divinas de tempos antigos, mas os verdadeiramente humanos, aqueles que nos são oferecidos pela força curativa da natureza, que mais consola do que castiga, que no final nos reconcilia com o que de melhor existe no nosso complexo labirinto humano que, ao querer divinizá-lo, acabou desumanizando-o.