segunda-feira, 5 de maio de 2025
Mussolini inspira esquerda e direita
Ao final da estupenda trilogia de Antonio Scurati sobre Benito Mussolini, um misto de espanto e encanto fica gravado no leitor. “M — Os últimos dias da Europa” encerra a narrativa da triste epopeia quando flagra o ditador italiano, entre a vaidade e a covardia, transformado em capacho de Adolf Hitler. Armado de retórica trágica, em cada parágrafo, sob a poesia de desabamento, Scurati constrói um personagem sempre fadado ao atoleiro, mesmo se vitorioso, ou em queda no precipício, se em desespero.
Não há escapatória para o Mussolini de Scurati — a conquista também é o passaporte de seu cadafalso. O autoengano surge disfarçado de estratégia política, de esperteza ideológica. Disposto a ser um César romano, será apenas um oportunista seminal e lúgubre da História.
Antes elogiado por Churchill, que o derrotou depois de ele se aliar ao ditador alemão, Mussolini encarna a tragédia política do século passado. Começa socialista, termina nazifascista. De um extremo a outro sem intervalo, onde a incoerência é aparato da amoralidade, quase seu sinônimo. É um jornalista de texto vibrante, polemista incansável. Ao ser execrado pelos companheiros de esquerda, funda seu movimento direitista. Com o ato, procura o reconhecimento intelectual e afetivo capaz de compensar seu constante sentimento de abandono e substitui a baixa estima pela virulenta arrogância e violência anticomunista. Não há ética, é apenas o gesto político de um animal ferido; o poder nada mais é que um bálsamo diante das frustrações.
Encontra nas amantes, mais jovens e mais ricas, o consolo afetivo paradoxalmente não preenchido por suas conquistas políticas, quando é incensado pelas massas a quem oferece um futuro espelhado no passado glorioso do Império Romano (Trump? Bolsonaro?). Morrerá ao lado de uma delas, Clara Petacci. Mas deve a Margherita Sarfatti seu verniz de sofisticação. Bronco, analfabeto cultural, sem modos ou lustro, receberá da rica judia veneziana as instruções para estar na sociedade. Por seu intermédio virá a convivência com a aristocracia, escritores e artistas. Sarfatti teoriza e organiza o Novecento Italiano, com o pintor Mario Simoni e o grande Umberto Boccioni, entre outros. Mussolini aproveita o brilho social e intelectual da amante. Ao contrário de seu futuro aliado, Adolf Hitler, admira a arte moderna e seus recursos como a fotomontagem. É uma paixão de resultados — Sarfatti o ensina a usar os talheres e os copos adequados à mesa.
Também é uma paixão trágica. E oportunista. Até então modelo político para Hitler, que o imita até na formação de milícias para espancar os adversários e, ao final, o inspira na grotesca coreografia de gestos, Mussolini passa a imitar o imitador. Torna-se antissemita e edita leis raciais, para desespero de muitos de seus apoiadores e amigos judeus. Entre eles, Sarfatti, obrigada a abandonar o leito do ditador e buscar refúgio na América do Sul. Não sem antes deixar sua filha Fiammetta como refém na Itália; era uma garantia de que sua mãe (judia) não escandiria a relação com o ditador (agora racista). Safartti só voltará do exílio no final da década de 1940, depois de Hitler meter uma bala na cabeça e Mussolini ser morto e pendurado de ponta-cabeça em praça pública ao lado de outros fascistas (Petacci inclusive).
O espanto deixado por Scurati em seus leitores é a proximidade das ideias e práticas de Mussolini com o universo político contemporâneo. Entre muitos exemplos, os argumentos das Leis Raciais, de 1938. À sombra do Ministério da Cultura Popular, a seu pedido, um grupo de intelectuais fascistas lança o documento “O fascismo e o problema da raça”. Estabelecem: “As raças humanas existem. A existência das raças humanas já não é uma abstração do nosso espírito, mas corresponde a uma realidade fenomênica, material, perceptível aos nossos sentidos”. E mais: “O conceito de raça é um conceito puramente biológico”. Chocante atualidade.
Scurati recorre a documentos, diários dos personagens e fonogramas na construção da narrativa. Depois de se unir ao nazismo, como fantoche e coadjuvante, com a vaidade ultrajada, sem munição para entrar na guerra, Mussolini busca influenciar o ditador alemão. E grafa mensagem: “O dia que tivermos demolido o bolchevismo (…) será então a vez das grandes democracias”. Desde então, o socialismo foi enterrado. Apostas? “O povo é uma puta e se deita com o macho que vence”, vaticinou o italiano antes de ser morto e apedrejado pela turba que o amou.
Não há escapatória para o Mussolini de Scurati — a conquista também é o passaporte de seu cadafalso. O autoengano surge disfarçado de estratégia política, de esperteza ideológica. Disposto a ser um César romano, será apenas um oportunista seminal e lúgubre da História.
Antes elogiado por Churchill, que o derrotou depois de ele se aliar ao ditador alemão, Mussolini encarna a tragédia política do século passado. Começa socialista, termina nazifascista. De um extremo a outro sem intervalo, onde a incoerência é aparato da amoralidade, quase seu sinônimo. É um jornalista de texto vibrante, polemista incansável. Ao ser execrado pelos companheiros de esquerda, funda seu movimento direitista. Com o ato, procura o reconhecimento intelectual e afetivo capaz de compensar seu constante sentimento de abandono e substitui a baixa estima pela virulenta arrogância e violência anticomunista. Não há ética, é apenas o gesto político de um animal ferido; o poder nada mais é que um bálsamo diante das frustrações.
Encontra nas amantes, mais jovens e mais ricas, o consolo afetivo paradoxalmente não preenchido por suas conquistas políticas, quando é incensado pelas massas a quem oferece um futuro espelhado no passado glorioso do Império Romano (Trump? Bolsonaro?). Morrerá ao lado de uma delas, Clara Petacci. Mas deve a Margherita Sarfatti seu verniz de sofisticação. Bronco, analfabeto cultural, sem modos ou lustro, receberá da rica judia veneziana as instruções para estar na sociedade. Por seu intermédio virá a convivência com a aristocracia, escritores e artistas. Sarfatti teoriza e organiza o Novecento Italiano, com o pintor Mario Simoni e o grande Umberto Boccioni, entre outros. Mussolini aproveita o brilho social e intelectual da amante. Ao contrário de seu futuro aliado, Adolf Hitler, admira a arte moderna e seus recursos como a fotomontagem. É uma paixão de resultados — Sarfatti o ensina a usar os talheres e os copos adequados à mesa.
Também é uma paixão trágica. E oportunista. Até então modelo político para Hitler, que o imita até na formação de milícias para espancar os adversários e, ao final, o inspira na grotesca coreografia de gestos, Mussolini passa a imitar o imitador. Torna-se antissemita e edita leis raciais, para desespero de muitos de seus apoiadores e amigos judeus. Entre eles, Sarfatti, obrigada a abandonar o leito do ditador e buscar refúgio na América do Sul. Não sem antes deixar sua filha Fiammetta como refém na Itália; era uma garantia de que sua mãe (judia) não escandiria a relação com o ditador (agora racista). Safartti só voltará do exílio no final da década de 1940, depois de Hitler meter uma bala na cabeça e Mussolini ser morto e pendurado de ponta-cabeça em praça pública ao lado de outros fascistas (Petacci inclusive).
O espanto deixado por Scurati em seus leitores é a proximidade das ideias e práticas de Mussolini com o universo político contemporâneo. Entre muitos exemplos, os argumentos das Leis Raciais, de 1938. À sombra do Ministério da Cultura Popular, a seu pedido, um grupo de intelectuais fascistas lança o documento “O fascismo e o problema da raça”. Estabelecem: “As raças humanas existem. A existência das raças humanas já não é uma abstração do nosso espírito, mas corresponde a uma realidade fenomênica, material, perceptível aos nossos sentidos”. E mais: “O conceito de raça é um conceito puramente biológico”. Chocante atualidade.
Scurati recorre a documentos, diários dos personagens e fonogramas na construção da narrativa. Depois de se unir ao nazismo, como fantoche e coadjuvante, com a vaidade ultrajada, sem munição para entrar na guerra, Mussolini busca influenciar o ditador alemão. E grafa mensagem: “O dia que tivermos demolido o bolchevismo (…) será então a vez das grandes democracias”. Desde então, o socialismo foi enterrado. Apostas? “O povo é uma puta e se deita com o macho que vence”, vaticinou o italiano antes de ser morto e apedrejado pela turba que o amou.
Uma anatomia de genocídio e silêncio global que trai a humanidade
Tudo se sabe, tudo se comprova. Amanhã, ninguém ousará dizer: "Eu não sabia". Desde outubro de 2023, Gaza está desaparecendo diante de nossos olhos, vítima de um crime que as mais altas autoridades morais, jurídicas e intelectuais ousaram nomear inequivocamente: genocídio.
Será que as nações ocidentais — principalmente os Estados Unidos — ainda terão a audácia de denunciar violações de direitos humanos em outros lugares, pontuando sua hipocrisia com os intermináveis chavões do Departamento de Estado? Seu descrédito está selado; sua palavra está desonrada.
E o que dizer dos regimes árabes cúmplices — Egito, Jordânia, Arábia Saudita, Emirados — especialmente o Egito e os Emirados, os verdadeiros arquitetos do estrangulamento de Gaza? O que dirão perante o tribunal da história? Esses regimes da vergonha carregarão para sempre a marca da infâmia. Pensaram em trocar sua honra pela proteção dos poderosos; em vez disso, ganharam apenas o desprezo de seus povos e as maldições de gerações ainda por nascer.
A terrível palavra genocídio não é pronunciada levianamente, nem movida pela emoção; ela foi cuidadosamente ponderada por aqueles cuja vocação é o rigor. Omer Bartov , eminente historiador do Holocausto e ex-soldado israelense, descreve Gaza como o teatro do extermínio deliberado. Raz Segal, especialista israelense em genocídios modernos, a identifica como um " caso clássico " de apagamento étnico em plena luz do dia. Amos Goldberg , professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, declara sem rodeios: "Isso é genocídio". Gregory Stanton, fundador do Genocide Watch, denuncia o "genocídio à vista de todos". Até mesmo instituições internacionais, tipicamente tão relutantes em nomear o irreparável, confirmaram esse diagnóstico condenatório.
Em 26 de janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça reconheceu solenemente a plausibilidade das acusações de genocídio contra Israel, exigindo medidas imediatas para impedir novos danos irreparáveis. O Tribunal Penal Internacional, ultrapassando um limiar histórico, emitiu mandados de prisão para os principais líderes israelenses por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A Anistia Internacional, a Human Rights Watch e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos — todos agora falam abertamente em extermínio, genocídio e destruição sistemática de um povo.
Israel impôs um bloqueio total a Gaza, cortando a alimentação, a eletricidade e a água potável, tornando impossível a sobrevivência física. A última usina de dessalinização cessou a operação, condenando a população à sede e à doença. Mais da metade do território está militarmente ocupada.
Dois terços dos habitantes de Gaza enfrentam ordens de deslocamento forçado, forçados a se deslocar em direção a uma fronteira fechada em um êxodo orquestrado. O Ministro da Defesa de Israel admite abertamente que Israel usará todas as formas de pressão, militar e civil, para impor esse deslocamento, em consonância com as ambições do plano de Trump.
O número de vítimas humanas é sem precedentes. Entre 7 e 31 de outubro de 2023, quase 1.900 crianças foram mortas, segundo a Airwars — o equivalente proporcional a trezentas vezes a taxa de mortalidade infantil observada na Ucrânia. No pior ano da Síria, foram necessários doze meses para atingir esse número. Em Gaza, três semanas foram suficientes. Trabalhadores humanitários assassinados, médicos alvejados, jornalistas executados, hospitais destruídos: Gaza se tornou o epicentro de uma tragédia sem precedentes na história contemporânea. Até mesmo a tonelagem de bombas lançadas supera a de Dresden em 1945.
A escala da destruição desafia qualquer justificativa militar; ela personifica o instinto genocida em sua forma mais pura. Até Moshe Ya'alon , ex-ministro da Defesa israelense, acusou abertamente Israel de cometer crimes de guerra e limpeza étnica em Gaza — uma acusação extraordinária vinda de dentro do establishment de segurança israelense em meio ao conflito em curso.
Essa avaliação terrível é amplamente compartilhada. O Projeto de Direitos Humanos Lowenstein da Faculdade de Direito de Yale afirma inequivocamente: "Israel cometeu atos genocidas, nomeadamente matando, ferindo gravemente e impondo condições de vida calculadas e destinadas a provocar a destruição física dos palestinos em Gaza."
O Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio acrescenta sem rodeios: "Israel está cometendo genocídio, e os EUA são cúmplices". Michael Fakhri, Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, denunciou as táticas de fome de Israel como genocidas. Tlaleng Mofokeng, Relator Especial da ONU para o Direito à Saúde, concorda, condenando a imposição deliberada de fome, desnutrição prolongada, desidratação e genocídio.
O método segue uma lógica glacial: aterrorizar, matar de fome, deslocar e, então, sem ter para onde fugir, tornar Gaza inabitável, aniquilando sua infraestrutura vital. Transformar esta terra em um deserto. O próprio Benjamin Netanyahu admitiu: o objetivo é " reduzir a população ".
Contra essa empreitada de apagamento, a memória universal se ergue. Imre Kertész nos lembrou que algumas tragédias excedem a linguagem comum; Gaza agora impõe tal provação ao discurso humano. Charlotte Delbo ensinou que a agonia dos vivos — fome, sede, extinguindo corpos e espíritos — pode ser mais cruel que a própria morte.
Primo Levi levantou uma questão devastadora: ainda é humano aquele privado de pão, água e dignidade? Em Gaza, não são apenas algumas almas, mas dois milhões de seres humanos que imploram diariamente pelo direito básico de existir. Simone Veil, sobrevivente do extermínio, sabia que o crime supremo é relegar os sobreviventes ao deserto da indiferença.
Hoje, Gaza corre o risco de morrer — não apenas sob bombas, mas também enterrada no esquecimento.
Depois de Auschwitz, escreveu Adorno, a poesia parecia bárbara. Depois de Gaza, até a fala vacila. Como podemos falar de direitos humanos sem profanar o que resta da dignidade humana? Como erguer tratados, pronunciamentos, quando as cinzas de um povo sufocam nossas vozes? Cada discurso oco, silêncio educado e indignação fingida se tornam, depois de Gaza, mais uma cumplicidade, mais uma abdicação assinada com sangue. Não basta mais lamentar: é preciso condenar. Não basta mais comemorar: é preciso se levantar.
Há crimes contra o corpo. Há crimes contra a alma. Há crimes contra a memória.
Permanecer em silêncio, virar as costas, recusar-se a nomear — é assassinar duas vezes.
Nosso dever não é lamentar, mas declarar; não desviar o olhar, mas nomear com clareza; não sobreviver na vergonha, mas testemunhar com dignidade. Se Gaza for apagada pela indiferença, então "Nunca Mais" se tornará apenas um epitáfio mentiroso na vala comum de nossas traições.
Enquanto isso, os propagandistas sionistas zombam, alheios ao seu próprio naufrágio moral. Encurralados pelos fatos, oprimidos por todos os lados, nada lhes resta nas redes sociais além de emojis risonhos — caretas pálidas de uma causa decadente. Desprovidos de linguagem e coragem, recrutam soldados rasos anônimos da Nigéria e da Índia, cuja mediocridade reflete a decadência de suas mentiras.
Eles riem, mas é o grotesco estertor dos derrotados, o último suspiro de uma fraude completamente exposta.
Será que as nações ocidentais — principalmente os Estados Unidos — ainda terão a audácia de denunciar violações de direitos humanos em outros lugares, pontuando sua hipocrisia com os intermináveis chavões do Departamento de Estado? Seu descrédito está selado; sua palavra está desonrada.
E o que dizer dos regimes árabes cúmplices — Egito, Jordânia, Arábia Saudita, Emirados — especialmente o Egito e os Emirados, os verdadeiros arquitetos do estrangulamento de Gaza? O que dirão perante o tribunal da história? Esses regimes da vergonha carregarão para sempre a marca da infâmia. Pensaram em trocar sua honra pela proteção dos poderosos; em vez disso, ganharam apenas o desprezo de seus povos e as maldições de gerações ainda por nascer.
A terrível palavra genocídio não é pronunciada levianamente, nem movida pela emoção; ela foi cuidadosamente ponderada por aqueles cuja vocação é o rigor. Omer Bartov , eminente historiador do Holocausto e ex-soldado israelense, descreve Gaza como o teatro do extermínio deliberado. Raz Segal, especialista israelense em genocídios modernos, a identifica como um " caso clássico " de apagamento étnico em plena luz do dia. Amos Goldberg , professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, declara sem rodeios: "Isso é genocídio". Gregory Stanton, fundador do Genocide Watch, denuncia o "genocídio à vista de todos". Até mesmo instituições internacionais, tipicamente tão relutantes em nomear o irreparável, confirmaram esse diagnóstico condenatório.
Em 26 de janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça reconheceu solenemente a plausibilidade das acusações de genocídio contra Israel, exigindo medidas imediatas para impedir novos danos irreparáveis. O Tribunal Penal Internacional, ultrapassando um limiar histórico, emitiu mandados de prisão para os principais líderes israelenses por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A Anistia Internacional, a Human Rights Watch e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos — todos agora falam abertamente em extermínio, genocídio e destruição sistemática de um povo.
Israel impôs um bloqueio total a Gaza, cortando a alimentação, a eletricidade e a água potável, tornando impossível a sobrevivência física. A última usina de dessalinização cessou a operação, condenando a população à sede e à doença. Mais da metade do território está militarmente ocupada.
Dois terços dos habitantes de Gaza enfrentam ordens de deslocamento forçado, forçados a se deslocar em direção a uma fronteira fechada em um êxodo orquestrado. O Ministro da Defesa de Israel admite abertamente que Israel usará todas as formas de pressão, militar e civil, para impor esse deslocamento, em consonância com as ambições do plano de Trump.
O número de vítimas humanas é sem precedentes. Entre 7 e 31 de outubro de 2023, quase 1.900 crianças foram mortas, segundo a Airwars — o equivalente proporcional a trezentas vezes a taxa de mortalidade infantil observada na Ucrânia. No pior ano da Síria, foram necessários doze meses para atingir esse número. Em Gaza, três semanas foram suficientes. Trabalhadores humanitários assassinados, médicos alvejados, jornalistas executados, hospitais destruídos: Gaza se tornou o epicentro de uma tragédia sem precedentes na história contemporânea. Até mesmo a tonelagem de bombas lançadas supera a de Dresden em 1945.
A escala da destruição desafia qualquer justificativa militar; ela personifica o instinto genocida em sua forma mais pura. Até Moshe Ya'alon , ex-ministro da Defesa israelense, acusou abertamente Israel de cometer crimes de guerra e limpeza étnica em Gaza — uma acusação extraordinária vinda de dentro do establishment de segurança israelense em meio ao conflito em curso.
Essa avaliação terrível é amplamente compartilhada. O Projeto de Direitos Humanos Lowenstein da Faculdade de Direito de Yale afirma inequivocamente: "Israel cometeu atos genocidas, nomeadamente matando, ferindo gravemente e impondo condições de vida calculadas e destinadas a provocar a destruição física dos palestinos em Gaza."
O Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio acrescenta sem rodeios: "Israel está cometendo genocídio, e os EUA são cúmplices". Michael Fakhri, Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, denunciou as táticas de fome de Israel como genocidas. Tlaleng Mofokeng, Relator Especial da ONU para o Direito à Saúde, concorda, condenando a imposição deliberada de fome, desnutrição prolongada, desidratação e genocídio.
O método segue uma lógica glacial: aterrorizar, matar de fome, deslocar e, então, sem ter para onde fugir, tornar Gaza inabitável, aniquilando sua infraestrutura vital. Transformar esta terra em um deserto. O próprio Benjamin Netanyahu admitiu: o objetivo é " reduzir a população ".
Contra essa empreitada de apagamento, a memória universal se ergue. Imre Kertész nos lembrou que algumas tragédias excedem a linguagem comum; Gaza agora impõe tal provação ao discurso humano. Charlotte Delbo ensinou que a agonia dos vivos — fome, sede, extinguindo corpos e espíritos — pode ser mais cruel que a própria morte.
Primo Levi levantou uma questão devastadora: ainda é humano aquele privado de pão, água e dignidade? Em Gaza, não são apenas algumas almas, mas dois milhões de seres humanos que imploram diariamente pelo direito básico de existir. Simone Veil, sobrevivente do extermínio, sabia que o crime supremo é relegar os sobreviventes ao deserto da indiferença.
Hoje, Gaza corre o risco de morrer — não apenas sob bombas, mas também enterrada no esquecimento.
Depois de Auschwitz, escreveu Adorno, a poesia parecia bárbara. Depois de Gaza, até a fala vacila. Como podemos falar de direitos humanos sem profanar o que resta da dignidade humana? Como erguer tratados, pronunciamentos, quando as cinzas de um povo sufocam nossas vozes? Cada discurso oco, silêncio educado e indignação fingida se tornam, depois de Gaza, mais uma cumplicidade, mais uma abdicação assinada com sangue. Não basta mais lamentar: é preciso condenar. Não basta mais comemorar: é preciso se levantar.
Há crimes contra o corpo. Há crimes contra a alma. Há crimes contra a memória.
Permanecer em silêncio, virar as costas, recusar-se a nomear — é assassinar duas vezes.
Nosso dever não é lamentar, mas declarar; não desviar o olhar, mas nomear com clareza; não sobreviver na vergonha, mas testemunhar com dignidade. Se Gaza for apagada pela indiferença, então "Nunca Mais" se tornará apenas um epitáfio mentiroso na vala comum de nossas traições.
Enquanto isso, os propagandistas sionistas zombam, alheios ao seu próprio naufrágio moral. Encurralados pelos fatos, oprimidos por todos os lados, nada lhes resta nas redes sociais além de emojis risonhos — caretas pálidas de uma causa decadente. Desprovidos de linguagem e coragem, recrutam soldados rasos anônimos da Nigéria e da Índia, cuja mediocridade reflete a decadência de suas mentiras.
Eles riem, mas é o grotesco estertor dos derrotados, o último suspiro de uma fraude completamente exposta.
Trump 2.0: ídolo ou espantalho?
Até recentemente, muitos analistas previam que a volta de Donald Trump ao poder facilitaria a ascensão de líderes semelhantes mundo afora – políticos que buscam se promover com base em discursos antissistema, “anti-globalistas” e com ataques às instituições democráticas. Não faltam precedentes: desde 2016, Trump influenciou líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria e Matteo Salvini na Itália. No entanto, a realidade do segundo mandato de Trump está mostrando nuances inesperadas – e até contraditórias.
Dois dos aliados históricos mais próximos dos EUA – Canadá e Austrália – responderam de forma a desafiar essa narrativa dominante. No Canadá, a postura hostil de Trump, com tarifas unilaterais e a insinuações de anexação, provocou uma reação nacionalista que enfraqueceu a oposição conservadora, vista como alinhada demais ao trumpismo. O resultado foi uma virada eleitoral histórica:
Mark Carney, um tecnocrata moderado e ex-presidente do Banco da Inglaterra, foi eleito primeiro-ministro com um mandato robusto em 28 de abril. Sua imagem de estabilidade e preparo contrastou com o radicalismo associado à direita pró-Trump, revertendo uma tendência que parecia consolidada meses antes da eleição.
A Austrália viveu um fenômeno semelhante. O primeiro-ministro Anthony Albanese, de centro-esquerda, surfou uma onda de sentimento antiTrump para triunfar nas eleições neste 3 de maio, poucos meses depois de as pesquisas indicarem que ele enfrentaria uma derrota humilhante. O líder conservador Peter Dutton, que apostava em uma retórica nacionalista e em ataques culturais semelhantes aos de Trump, sofreu o mesmo destino que o líder conservador canadense – uma consequência direta do efeito Trump.
O cenário britânico, porém, revela que a influência de Trump se manifesta de formas diferentes. Nigel Farage, veterano do Brexit e líder do Reform UK, está importando abertamente o estilo MAGA: ataques contra as elites e o “estado profundo”, discursos inflamados sobre imigração e promessas de “recuperar o país”. Seu partido avançou de forma contundente nas recentes eleições locais em 1º de maio. Tudo indica que não se trata apenas de protesto momentâneo: Farage está construindo, passo a passo, uma base nacional que desafia o duopólio partidário britânico.
Seu êxito revela que o trumpismo, longe de ser universalmente tóxico, encontra terreno fértil em sociedades que atravessam desafios econômicos, desilusão política e insegurança cultural. Se em alguns países Trump serve de espantalho, capaz de unir eleitores moderados contra o radicalismo; em outros, ele segue como referência para lideranças populistas.
A volta de Trump não significa, portanto, uma nova onda global de adesão automática ao trumpismo. Em muitos países, o republicano pode acelerar a rejeição a seu estilo de governar e até consolidar lideranças moderadas. Mas em outros ele continua sendo um símbolo poderoso para populistas “anti-globalistas” com tendências antidemocráticas que se apresentam como salvadores em tempos de incerteza.
Ainda é cedo para saber se o impacto de Trump no Brasil será semelhante ao observado no Canadá e na Austrália ou similar ao modelo britânico. No caso brasileiro, os sinais são ambíguos. Por um lado, Trump continua sendo uma figura de enorme visibilidade no debate público, e sua reemergência vem encorajando atores como Jair Bolsonaro e seus aliados. Desde 2018, o Brasil tem espelhado diversos aspectos da política norteamericana: da retórica antissistema à recusa em aceitar resultados eleitorais e à invasão de prédios públicos por apoiadores radicais. Eduardo Bolsonaro mudou-se para os EUA recentemente para reforçar vínculos com grupos trumpistas no país. Caso Trump ou figuras de alto perfil como Elon Musk tentem influenciar o processo eleitoral brasileiro no ano que vem, como o dono da Tesla fez recentemente na Alemanha, o impacto político pode ser profundo, seja fortalecendo, seja enfraquecendo seu candidato preferido.
A pergunta central para os próximos anos será: em quais países Trump funcionará como exemplo do que não se fazer e em quais continuará sendo visto como receita de sucesso político?
Dois dos aliados históricos mais próximos dos EUA – Canadá e Austrália – responderam de forma a desafiar essa narrativa dominante. No Canadá, a postura hostil de Trump, com tarifas unilaterais e a insinuações de anexação, provocou uma reação nacionalista que enfraqueceu a oposição conservadora, vista como alinhada demais ao trumpismo. O resultado foi uma virada eleitoral histórica:
Mark Carney, um tecnocrata moderado e ex-presidente do Banco da Inglaterra, foi eleito primeiro-ministro com um mandato robusto em 28 de abril. Sua imagem de estabilidade e preparo contrastou com o radicalismo associado à direita pró-Trump, revertendo uma tendência que parecia consolidada meses antes da eleição.
A Austrália viveu um fenômeno semelhante. O primeiro-ministro Anthony Albanese, de centro-esquerda, surfou uma onda de sentimento antiTrump para triunfar nas eleições neste 3 de maio, poucos meses depois de as pesquisas indicarem que ele enfrentaria uma derrota humilhante. O líder conservador Peter Dutton, que apostava em uma retórica nacionalista e em ataques culturais semelhantes aos de Trump, sofreu o mesmo destino que o líder conservador canadense – uma consequência direta do efeito Trump.
O cenário britânico, porém, revela que a influência de Trump se manifesta de formas diferentes. Nigel Farage, veterano do Brexit e líder do Reform UK, está importando abertamente o estilo MAGA: ataques contra as elites e o “estado profundo”, discursos inflamados sobre imigração e promessas de “recuperar o país”. Seu partido avançou de forma contundente nas recentes eleições locais em 1º de maio. Tudo indica que não se trata apenas de protesto momentâneo: Farage está construindo, passo a passo, uma base nacional que desafia o duopólio partidário britânico.
Seu êxito revela que o trumpismo, longe de ser universalmente tóxico, encontra terreno fértil em sociedades que atravessam desafios econômicos, desilusão política e insegurança cultural. Se em alguns países Trump serve de espantalho, capaz de unir eleitores moderados contra o radicalismo; em outros, ele segue como referência para lideranças populistas.
A volta de Trump não significa, portanto, uma nova onda global de adesão automática ao trumpismo. Em muitos países, o republicano pode acelerar a rejeição a seu estilo de governar e até consolidar lideranças moderadas. Mas em outros ele continua sendo um símbolo poderoso para populistas “anti-globalistas” com tendências antidemocráticas que se apresentam como salvadores em tempos de incerteza.
Ainda é cedo para saber se o impacto de Trump no Brasil será semelhante ao observado no Canadá e na Austrália ou similar ao modelo britânico. No caso brasileiro, os sinais são ambíguos. Por um lado, Trump continua sendo uma figura de enorme visibilidade no debate público, e sua reemergência vem encorajando atores como Jair Bolsonaro e seus aliados. Desde 2018, o Brasil tem espelhado diversos aspectos da política norteamericana: da retórica antissistema à recusa em aceitar resultados eleitorais e à invasão de prédios públicos por apoiadores radicais. Eduardo Bolsonaro mudou-se para os EUA recentemente para reforçar vínculos com grupos trumpistas no país. Caso Trump ou figuras de alto perfil como Elon Musk tentem influenciar o processo eleitoral brasileiro no ano que vem, como o dono da Tesla fez recentemente na Alemanha, o impacto político pode ser profundo, seja fortalecendo, seja enfraquecendo seu candidato preferido.
A pergunta central para os próximos anos será: em quais países Trump funcionará como exemplo do que não se fazer e em quais continuará sendo visto como receita de sucesso político?
Raça é uma construção social?
Quando os cientistas revelaram o primeiro rascunho do Projeto Genoma Humano, há 25 anos, ele parecia dar a palavra final em relação a alguns mitos ultrapassados sobre raça.
O projeto forneceu evidências definitivas de que os grupos raciais não têm base biológica. Na verdade, há mais variação genética dentro dos grupos raciais do que entre eles. A raça, como a iniciativa mostrou, é uma construção social.
Apesar desta descoberta fundamental, que só foi reforçada com o avanço da pesquisa sobre genomas humanos, a raça e a etnia ainda são usadas com frequência para categorizar as populações humanas como grupos biológicos distintos.
São visões que podem ser encontradas circulando na pseudociência das redes sociais, mas também ainda se infiltram na pesquisa científica e nos sistemas de saúde.
É ainda mais preocupante quando este pensamento chega aos corredores do poder.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seu governo não escondem sua rejeição a vários aspectos da visão científica do mundo.
Desde que retornou à Casa Branca, ele fez cortes drásticos no financiamento científico para pesquisas biomédicas e climáticas, mas em uma ordem executiva recente, Trump mirou no que a maioria dos cientistas agora considera como uma realidade biológica.
Intitulado "Restaurando a verdade e a sanidade na história americana", o decreto presidencial, assinado por Trump, teve como alvo uma exposição chamada A forma do poder: histórias de raça e escultura americana no Museu de Arte Americana do Instituto Smithsonian.
A ordem executiva faz parte de uma tentativa mais ampla de moldar a cultura americana, eliminando "ideologias impróprias, divisivas ou antiamericanas" dos museus do instituto.
Ela afirma: "Os museus da capital da nossa nação devem ser lugares onde as pessoas vão para aprender — não para serem submetidas a doutrinação ideológica ou narrativas divisivas que distorcem nossa história compartilhada."
A exposição em si é criticada no texto por promover a ideia de que "a raça não é uma realidade biológica, mas uma construção social, afirmando que 'a raça é uma invenção humana'".
A ordem executiva apresenta a exposição como um exemplo de uma mudança "prejudicial e opressiva" na narrativa que retrata os valores americanos.
Este é o ponto em que pessoas como eu, um geneticista especializado na história da ciência racial, ficam um pouco irritadas.
A questão aqui é que a frase citada pelo Instituto Smithsonian está 100% correta.
Isso não é controverso nem na ciência nem na história.
A variação humana é, obviamente, bastante real. As pessoas são diferentes, e podemos ver essas diferenças na pigmentação da pele, na cor e na textura do cabelo e em outras características físicas.
Essas diferenças se agrupam em locais ao redor do mundo: pessoas da mesma região, em média, são mais parecidas entre si do que com pessoas de outras áreas — até aí, tudo óbvio.
No século 18, estas características foram os principais fatores determinantes de uma nova forma de categorizar os seres humanos em termos supostamente científicos.
O botânico sueco Karl Linnaeus é considerado legitimamente como o pai da biologia moderna, uma vez nos forneceu o sistema de classificação que usamos até hoje: gênero e espécie.
Todo ser vivo é nomeado de acordo com este sistema — por exemplo, a bactéria Escherichia coli, o leão, Panthera leo, ou o Gorilla gorilla, que provavelmente dispensa apresentações. Nós somos Homo sapiens — pessoas sábias.
Mas em sua obra fundamental, intitulada Systemae Naturae, Linnaeus introduziu outro nível de classificação para nós, designado principalmente pela mais visível das características humanas: a pigmentação.
Linnaeus estabeleceu quatro tipos de seres humanos, agrupados por massas terrestres continentais: Asiaticus — pessoas com "pele amarela" e cabelo liso preto; Americanus — indígenas americanos, com "pele vermelha", e também cabelo liso preto; Africanus — pessoas de "pele preta" e cabelo crespo; e Europaeus — de "pele branca" com olhos azuis.
Estas designações são claramente absurdas — nenhuma das cores é precisa, mesmo se você adotasse a visão obviamente incorreta de que milhões de pessoas compartilham os mesmos tons de pele, inclusive dentro destas categorias.
Mas as raízes das designações raciais que usamos ainda hoje são visíveis nesses rótulos.
Alguns destes termos deixaram de ser aceitos socialmente, e são considerados racistas. Mas ainda usamos "negro" e "branco" para descrever milhões de pessoas, nenhuma das quais realmente tem pele negra ou branca.
Mesmo que esse esquema de cores fosse verdadeiro, as descrições originais de Linnaeus apenas começaram com características físicas.
O que ele incluiu em edições posteriores do Systemae Naturae, que se tornou a base do racismo científico, foram retratos de comportamentos.
Os Asiaticus foram descritos como "arrogantes, gananciosos e regidos por opiniões", enquanto os Americanus foram rotulados como "teimosos, fervorosos e regidos pelos costumes".
As mulheres Africanus foram descritas como "sem vergonha", enquanto ambos os sexos foram considerados "astutos, preguiçosos e regidos pelo capricho".
Ele descreveu os Europaeus como "gentis, perspicazes, inventivos e regidos por leis".
Por qualquer definição e em qualquer época, estas afirmações são racistas e totalmente incorretas.
É claro que, ao examinar a história, devemos ter cuidado ao julgar as pessoas do passado com base em nossos próprios padrões.
Mas, como texto fundamental da biologia moderna, a introdução de um sistema de classificação para os seres humanos que é absurdo, racista e, acima de tudo, hierárquico, deixaria uma marca indelével nos séculos seguintes.
Nos 200 anos seguintes, muitos homens buscaram refinar essas categorias com novas métricas, incluindo interpretações pseudocientíficas da craniometria, ou medidas do crânio.
Eles nunca chegaram a uma resposta definitiva sobre quantas raças existem — nenhuma das características que estavam sendo usadas é imutável nem exclusiva das pessoas para as quais elas eram supostamente essenciais.
Chamamos esta ideologia de "essencialismo racial". Mas todos os vários esquemas colocavam os europeus brancos como superiores a todos os outros.
Foi o biólogo Charles Darwin quem primeiro começou a desconstruir essas ideias, reconhecendo em seu livro de 1871, A Origem do Homem, que havia muito mais continuidade nas características entre pessoas que haviam sido designadas como raças distintas.
No início do século 20, a biologia molecular entrou em cena, e a era da genética desmantelou o conceito biológico de raça.
Quando começamos a analisar como os genes são compartilhados em famílias e populações, vimos que as semelhanças de fato se aglomeram em grupos, mas esses agrupamentos não se alinham com as tentativas de longa data de classificar as raças. A verdadeira métrica da diferença humana é a nível genético.
No século 20, quando começamos a desvendar nossos genomas, e a observar como as pessoas são semelhantes e diferentes em relação ao DNA, vimos que os termos em uso há vários séculos tinham pouca relação significativa com a genética subjacente.
Embora apenas uma pequena porcentagem do nosso DNA seja diferente entre os indivíduos, o genoma é tão grande e complexo que há uma grande diversidade.
Os geneticistas ainda estão trabalhando para desvendar como isso altera a saúde das pessoas, por exemplo.
Mas essas diferenças genéticas não se definem de acordo com o que chamamos de raça. Elas seguem linhagens ancestrais, podem diferir de acordo com a localização geográfica e podem ser rastreadas por meio de padrões históricos de migração.
O que sabemos agora é que há mais diversidade genética em pessoas de ascendência africana recente do que no resto do mundo junto.
Pegue duas pessoas, por exemplo, da Etiópia e da Namíbia, e elas serão mais diferentes entre si a nível genético do que uma delas é em relação a um europeu branco, ou até mesmo um japonês, um inuíte ou um indiano.
Isso inclui os genes que estão envolvidos na pigmentação.
No entanto, por razões históricas, continuamos a nos referir tanto aos etíopes quanto aos namíbios sob a definição de raça "negra".
Vejamos o exemplo dos afro-americanos, pessoas que descendem em grande parte de africanos escravizados levados para o Novo Mundo.
O sequenciamento dos genomas dos negros americanos revela ecos da história da escravidão transatlântica.
Eles não só misturaram a ascendência genética de alguns países da África Ocidental de onde seus ancestrais foram retirados, mas também quantidades significativas de DNA de europeus brancos.
Isso reflete o fato de que os proprietários de pessoas escravizadas mantinham relações sexuais — muitas das quais não eram consensuais — com escravizados.
Portanto, a simples categorização dos descendentes dos escravizados como "negros" também não faz sentido do ponto de vista biológico.
Eles são geneticamente diversos por si só, e diferentes dos ancestrais africanos dos quais descendem. Colocá-los juntos não faz sentido do ponto de vista científico.
Portanto, é por consenso, uso e história que continuamos a usar o termo "negro". Isso é o que queremos dizer com uma construção social.
O conceito de raça tem pouca utilidade como taxonomia biológica. Mas é extremamente importante do ponto de vista social e cultural.
As construções sociais são a forma como o mundo funciona: dinheiro e tempo também são construídos socialmente.
O valor de uma libra ou dólar é aplicado em relação a bens e serviços. O tempo passa de forma infalível, mas horas e minutos são unidades totalmente arbitrárias.
Portanto, embora a raça não seja biologicamente significativa, ela tem consequências biologicamente significativas.
O impacto da maioria das doenças está relacionado à pobreza. Como as pessoas com ascendência de minorias étnicas tendem a apresentar níveis mais baixos de status socioeconômico, as doenças tendem a afetá-las de forma mais grave.
Isso é verdade em todas os aspectos, mas ficou evidente logo no início da pandemia de covid-19. Negros, sul-asiáticos e, nos Estados Unidos, hispânicos foram desproporcionalmente infectados e morreram em decorrência da doença.
A imprensa imediatamente começou a procurar um motivo que materializasse a versão biológica da raça, às vezes com foco no metabolismo da vitamina D, que está ligado à produção de melanina e tem efeitos sobre infecções virais.
Alguns estudos mostraram que níveis mais baixos de vitamina D estavam de fato associados à suscetibilidade à infecção por covid-19 entre os negros. Mas isso é uma correlação, não uma causa.
Por trás de qualquer pequena diferença biológica, estão causas muito mais fortes: enquanto muitos de nós estávamos confinados em casa, os trabalhadores da linha de frente do NHS (sistema público de saúde britânico), as pessoas que limpam nosso lixo e dirigem nossos ônibus tinham maior probabilidade de pertencer a minorias étnicas.
Elas simplesmente tinham um risco maior de serem expostas e, portanto, infectadas pelo vírus. Combine isso com o fato de que os grupos minoritários têm maior probabilidade de viver em moradias urbanas densas e multigeracionais, e a suposta suscetibilidade biológica desaparece.
É por isso que a genética desempenha um papel tão importante no desmantelamento de uma justificativa científica da raça e na compreensão do próprio racismo.
E é por isso que a recente declaração da Casa Branca está preocupando muitos na comunidade científica.
Trump fala com frequência sobre aspectos da genética para defender argumentos políticos. Uma opinião que ele manifestou repetidamente é que algumas pessoas, e de forma previsível, ele próprio, são geneticamente superiores.
"Vocês têm bons genes, vocês sabem disso, certo?", ele disse em setembro de 2020 durante um comício em Minnesota, estado americano com mais de 80% de população branca.
"Vocês têm bons genes. Muito disso tem a ver com os genes, não é, vocês não acreditam? Vocês têm bons genes em Minnesota."
Da mesma forma, na bem-sucedida campanha de 2024, ele denunciou os imigrantes como tendo "genes ruins".
É difícil para alguém que estuda genes — e a estranha e, às vezes, perturbadora história da genética — entender até mesmo o que pode constituir um gene "bom" ou "ruim".
Nossa história pode ser perniciosa, mas a trajetória da genética tem sido uma que tende ao progresso e à equidade para todos, conforme consagrado na Declaração de Independência dos Estados Unidos.
O projeto forneceu evidências definitivas de que os grupos raciais não têm base biológica. Na verdade, há mais variação genética dentro dos grupos raciais do que entre eles. A raça, como a iniciativa mostrou, é uma construção social.
Apesar desta descoberta fundamental, que só foi reforçada com o avanço da pesquisa sobre genomas humanos, a raça e a etnia ainda são usadas com frequência para categorizar as populações humanas como grupos biológicos distintos.
São visões que podem ser encontradas circulando na pseudociência das redes sociais, mas também ainda se infiltram na pesquisa científica e nos sistemas de saúde.
É ainda mais preocupante quando este pensamento chega aos corredores do poder.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seu governo não escondem sua rejeição a vários aspectos da visão científica do mundo.
Desde que retornou à Casa Branca, ele fez cortes drásticos no financiamento científico para pesquisas biomédicas e climáticas, mas em uma ordem executiva recente, Trump mirou no que a maioria dos cientistas agora considera como uma realidade biológica.
Intitulado "Restaurando a verdade e a sanidade na história americana", o decreto presidencial, assinado por Trump, teve como alvo uma exposição chamada A forma do poder: histórias de raça e escultura americana no Museu de Arte Americana do Instituto Smithsonian.
A ordem executiva faz parte de uma tentativa mais ampla de moldar a cultura americana, eliminando "ideologias impróprias, divisivas ou antiamericanas" dos museus do instituto.
Ela afirma: "Os museus da capital da nossa nação devem ser lugares onde as pessoas vão para aprender — não para serem submetidas a doutrinação ideológica ou narrativas divisivas que distorcem nossa história compartilhada."
A exposição em si é criticada no texto por promover a ideia de que "a raça não é uma realidade biológica, mas uma construção social, afirmando que 'a raça é uma invenção humana'".
A ordem executiva apresenta a exposição como um exemplo de uma mudança "prejudicial e opressiva" na narrativa que retrata os valores americanos.
Este é o ponto em que pessoas como eu, um geneticista especializado na história da ciência racial, ficam um pouco irritadas.
A questão aqui é que a frase citada pelo Instituto Smithsonian está 100% correta.
Isso não é controverso nem na ciência nem na história.
A variação humana é, obviamente, bastante real. As pessoas são diferentes, e podemos ver essas diferenças na pigmentação da pele, na cor e na textura do cabelo e em outras características físicas.
Essas diferenças se agrupam em locais ao redor do mundo: pessoas da mesma região, em média, são mais parecidas entre si do que com pessoas de outras áreas — até aí, tudo óbvio.
No século 18, estas características foram os principais fatores determinantes de uma nova forma de categorizar os seres humanos em termos supostamente científicos.
O botânico sueco Karl Linnaeus é considerado legitimamente como o pai da biologia moderna, uma vez nos forneceu o sistema de classificação que usamos até hoje: gênero e espécie.
Todo ser vivo é nomeado de acordo com este sistema — por exemplo, a bactéria Escherichia coli, o leão, Panthera leo, ou o Gorilla gorilla, que provavelmente dispensa apresentações. Nós somos Homo sapiens — pessoas sábias.
Mas em sua obra fundamental, intitulada Systemae Naturae, Linnaeus introduziu outro nível de classificação para nós, designado principalmente pela mais visível das características humanas: a pigmentação.
Linnaeus estabeleceu quatro tipos de seres humanos, agrupados por massas terrestres continentais: Asiaticus — pessoas com "pele amarela" e cabelo liso preto; Americanus — indígenas americanos, com "pele vermelha", e também cabelo liso preto; Africanus — pessoas de "pele preta" e cabelo crespo; e Europaeus — de "pele branca" com olhos azuis.
Estas designações são claramente absurdas — nenhuma das cores é precisa, mesmo se você adotasse a visão obviamente incorreta de que milhões de pessoas compartilham os mesmos tons de pele, inclusive dentro destas categorias.
Mas as raízes das designações raciais que usamos ainda hoje são visíveis nesses rótulos.
Alguns destes termos deixaram de ser aceitos socialmente, e são considerados racistas. Mas ainda usamos "negro" e "branco" para descrever milhões de pessoas, nenhuma das quais realmente tem pele negra ou branca.
Mesmo que esse esquema de cores fosse verdadeiro, as descrições originais de Linnaeus apenas começaram com características físicas.
O que ele incluiu em edições posteriores do Systemae Naturae, que se tornou a base do racismo científico, foram retratos de comportamentos.
Os Asiaticus foram descritos como "arrogantes, gananciosos e regidos por opiniões", enquanto os Americanus foram rotulados como "teimosos, fervorosos e regidos pelos costumes".
As mulheres Africanus foram descritas como "sem vergonha", enquanto ambos os sexos foram considerados "astutos, preguiçosos e regidos pelo capricho".
Ele descreveu os Europaeus como "gentis, perspicazes, inventivos e regidos por leis".
Por qualquer definição e em qualquer época, estas afirmações são racistas e totalmente incorretas.
É claro que, ao examinar a história, devemos ter cuidado ao julgar as pessoas do passado com base em nossos próprios padrões.
Mas, como texto fundamental da biologia moderna, a introdução de um sistema de classificação para os seres humanos que é absurdo, racista e, acima de tudo, hierárquico, deixaria uma marca indelével nos séculos seguintes.
Nos 200 anos seguintes, muitos homens buscaram refinar essas categorias com novas métricas, incluindo interpretações pseudocientíficas da craniometria, ou medidas do crânio.
Eles nunca chegaram a uma resposta definitiva sobre quantas raças existem — nenhuma das características que estavam sendo usadas é imutável nem exclusiva das pessoas para as quais elas eram supostamente essenciais.
Chamamos esta ideologia de "essencialismo racial". Mas todos os vários esquemas colocavam os europeus brancos como superiores a todos os outros.
Foi o biólogo Charles Darwin quem primeiro começou a desconstruir essas ideias, reconhecendo em seu livro de 1871, A Origem do Homem, que havia muito mais continuidade nas características entre pessoas que haviam sido designadas como raças distintas.
No início do século 20, a biologia molecular entrou em cena, e a era da genética desmantelou o conceito biológico de raça.
Quando começamos a analisar como os genes são compartilhados em famílias e populações, vimos que as semelhanças de fato se aglomeram em grupos, mas esses agrupamentos não se alinham com as tentativas de longa data de classificar as raças. A verdadeira métrica da diferença humana é a nível genético.
No século 20, quando começamos a desvendar nossos genomas, e a observar como as pessoas são semelhantes e diferentes em relação ao DNA, vimos que os termos em uso há vários séculos tinham pouca relação significativa com a genética subjacente.
Embora apenas uma pequena porcentagem do nosso DNA seja diferente entre os indivíduos, o genoma é tão grande e complexo que há uma grande diversidade.
Os geneticistas ainda estão trabalhando para desvendar como isso altera a saúde das pessoas, por exemplo.
Mas essas diferenças genéticas não se definem de acordo com o que chamamos de raça. Elas seguem linhagens ancestrais, podem diferir de acordo com a localização geográfica e podem ser rastreadas por meio de padrões históricos de migração.
O que sabemos agora é que há mais diversidade genética em pessoas de ascendência africana recente do que no resto do mundo junto.
Pegue duas pessoas, por exemplo, da Etiópia e da Namíbia, e elas serão mais diferentes entre si a nível genético do que uma delas é em relação a um europeu branco, ou até mesmo um japonês, um inuíte ou um indiano.
Isso inclui os genes que estão envolvidos na pigmentação.
No entanto, por razões históricas, continuamos a nos referir tanto aos etíopes quanto aos namíbios sob a definição de raça "negra".
Vejamos o exemplo dos afro-americanos, pessoas que descendem em grande parte de africanos escravizados levados para o Novo Mundo.
O sequenciamento dos genomas dos negros americanos revela ecos da história da escravidão transatlântica.
Eles não só misturaram a ascendência genética de alguns países da África Ocidental de onde seus ancestrais foram retirados, mas também quantidades significativas de DNA de europeus brancos.
Isso reflete o fato de que os proprietários de pessoas escravizadas mantinham relações sexuais — muitas das quais não eram consensuais — com escravizados.
Portanto, a simples categorização dos descendentes dos escravizados como "negros" também não faz sentido do ponto de vista biológico.
Eles são geneticamente diversos por si só, e diferentes dos ancestrais africanos dos quais descendem. Colocá-los juntos não faz sentido do ponto de vista científico.
Portanto, é por consenso, uso e história que continuamos a usar o termo "negro". Isso é o que queremos dizer com uma construção social.
O conceito de raça tem pouca utilidade como taxonomia biológica. Mas é extremamente importante do ponto de vista social e cultural.
As construções sociais são a forma como o mundo funciona: dinheiro e tempo também são construídos socialmente.
O valor de uma libra ou dólar é aplicado em relação a bens e serviços. O tempo passa de forma infalível, mas horas e minutos são unidades totalmente arbitrárias.
Portanto, embora a raça não seja biologicamente significativa, ela tem consequências biologicamente significativas.
O impacto da maioria das doenças está relacionado à pobreza. Como as pessoas com ascendência de minorias étnicas tendem a apresentar níveis mais baixos de status socioeconômico, as doenças tendem a afetá-las de forma mais grave.
Isso é verdade em todas os aspectos, mas ficou evidente logo no início da pandemia de covid-19. Negros, sul-asiáticos e, nos Estados Unidos, hispânicos foram desproporcionalmente infectados e morreram em decorrência da doença.
A imprensa imediatamente começou a procurar um motivo que materializasse a versão biológica da raça, às vezes com foco no metabolismo da vitamina D, que está ligado à produção de melanina e tem efeitos sobre infecções virais.
Alguns estudos mostraram que níveis mais baixos de vitamina D estavam de fato associados à suscetibilidade à infecção por covid-19 entre os negros. Mas isso é uma correlação, não uma causa.
Por trás de qualquer pequena diferença biológica, estão causas muito mais fortes: enquanto muitos de nós estávamos confinados em casa, os trabalhadores da linha de frente do NHS (sistema público de saúde britânico), as pessoas que limpam nosso lixo e dirigem nossos ônibus tinham maior probabilidade de pertencer a minorias étnicas.
Elas simplesmente tinham um risco maior de serem expostas e, portanto, infectadas pelo vírus. Combine isso com o fato de que os grupos minoritários têm maior probabilidade de viver em moradias urbanas densas e multigeracionais, e a suposta suscetibilidade biológica desaparece.
É por isso que a genética desempenha um papel tão importante no desmantelamento de uma justificativa científica da raça e na compreensão do próprio racismo.
E é por isso que a recente declaração da Casa Branca está preocupando muitos na comunidade científica.
Trump fala com frequência sobre aspectos da genética para defender argumentos políticos. Uma opinião que ele manifestou repetidamente é que algumas pessoas, e de forma previsível, ele próprio, são geneticamente superiores.
"Vocês têm bons genes, vocês sabem disso, certo?", ele disse em setembro de 2020 durante um comício em Minnesota, estado americano com mais de 80% de população branca.
"Vocês têm bons genes. Muito disso tem a ver com os genes, não é, vocês não acreditam? Vocês têm bons genes em Minnesota."
Da mesma forma, na bem-sucedida campanha de 2024, ele denunciou os imigrantes como tendo "genes ruins".
É difícil para alguém que estuda genes — e a estranha e, às vezes, perturbadora história da genética — entender até mesmo o que pode constituir um gene "bom" ou "ruim".
Nossa história pode ser perniciosa, mas a trajetória da genética tem sido uma que tende ao progresso e à equidade para todos, conforme consagrado na Declaração de Independência dos Estados Unidos.
Impetuosidade dos cem primeiros dias de Trump começa a mostrar rachaduras
Final de julho de 1980, Aeroporto Internacional Sheremetyevo, em Moscou. O empresário Roberto Civita, editor das revistas da Editora Abril, estava entre os milhares de estrangeiros atraídos pela oportunidade de cruzar a Cortina de Ferro e assistir aos Jogos Olímpicos na União Soviética. Além de gostar de esportes, Civita queria observar como o colosso comunista lidaria com o evento. Desembarcou despreocupado com meia dúzia de exemplares da revista Veja na bagagem. Era uma edição sobre os Jogos, fresquinha da gráfica, que trazia a imagem do líder soviético Leonid Brejnev na capa. Estava orgulhoso e pretendia mostrá-la aos jornalistas que faziam a cobertura olímpica em Moscou.
Péssima ideia. As revistas estampavam a caricatura de Brejnev com feições de urso feroz, e o tempo fechou com os agentes da imigração. Não só confiscaram o material e mais alguns extras, como retiveram o viajante para explicações. Segunda ideia péssima de Civita: argumentou não ser mero leitor, mas representante do maior grupo editorial brasileiro que publicava aquelas revistas. Para ouvidos soviéticos, um capitalista incontrito. O não diálogo foi bastante tenso, contaria depois.
Nesta semana, o episódio de 45 anos atrás saltou do baú da memória. Isso porque, em julho de 2026, a nação americana celebrará os 250 anos da assinatura da Declaração de Independência, festança que pretende ter impacto comparável ao que foram os Jogos de Moscou para a URSS. A julgar pelo clima de suspeição e arbítrio já demonstrado neste início de governo, a recepção a visitantes de determinadas origens, posições políticas ou ideológicas, currículo ou profissões, pode não ser do gosto das autoridades trumpistas. Dias atrás o site da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil e sua página no X de Elon Musk fizeram a seguinte postagem bilíngue:
— TODOS devem estar de sobreaviso. Se você é um visitante em nosso país, comporte-se como tal. Nosso rigoroso programa de verificação em redes sociais para identificar riscos à segurança nacional e à segurança pública nunca para. O U.S. Citizenship and Immigration Services está atento para encontrar qualquer coisa on-line que represente uma ameaça à nossa nação e a nosso modo de vida. Green cards e vistos são um privilégio, e não um direito.
Logo nos primeiros dias como presidente, Trump já demonstrou sua capacidade e determinação em fazer desaparecer pessoas que cometeram ou não algum crime, sendo ou não cidadãos legalmente documentados. Convém, portanto, mesmo para viajantes desavisados, não desembarcar nos Estados Unidos com o celular recheado de opiniões mordazes sobre o reinado trumpista.
Uma segunda postagem no site da embaixada, do mesmo dia 30 de abril, surpreendeu pelo tema. Ela informa que uma equipe do Departamento de Estado no consulado americano em Porto Alegre (RS) realizou um exercício de treinamento sobre armas de destruição em massa contra “uma possível ameaça química, biológica, nuclear ou explosiva”. Caramba. Talvez seja melhor nem se interessar pelos festejos de 2026 e, assim, evitar sobressaltos.
Trump, convenhamos, é único. Em 2021, foi enxotado de Washington pelo voto, com dois impeachments no currículo, abandonado por aliados e banido de suas plataformas sociais preferidas. Um pária, em suma. Sua ressurreição política, alvo de exaustiva, invejável (e saborosa) reportagem da revista The Atlantic (“I run the country and the world”), explica por que ele, hoje, se sente invencível. A ponto de desmantelar, com voracidade e velocidade inauditas, quase todos os anteparos de proteção à integridade pública do governo federal. Dezenove agências reguladoras foram evisceradas, abrindo caminho para um caminhão de conflitos de interesses, reversão de políticas voltadas ao bem comum e negociatas sem escrutínio, privadas, da Organização Trump com seletos governos estrangeiros.
A noção de governo como bem público democratizante e instituição de responsabilidade social vem sendo metodicamente destruída, constata Henry Giroux, acadêmico distinto Paulo Freire em Pedagogia Crítica na Universidade McMaster, do Canadá. No Estado trumpista, o bem público passou a ser tratado como inimigo, sustenta.
Mas a impetuosidade dos cem primeiros dias já começa a mostrar as primeiras rachaduras. Segundo dados de 191 pesquisas sobre a popularidade de Trump desde a posse, 119 apontam crescimento de quase dois dígitos na desaprovação — a média de aprovação caiu para 44% segundo o levantamento, feito pelo laboratório de dados do New York Times.
Para Giroux, diante da apatia comatosa do Partido Democrata, seria imperativo uma ação da sociedade civil. “O fascismo se alimenta de desespero, cinismo e silêncio, mas a História ensina o contrário”, diz ele. É quando pessoas comuns se recusam a ficar em silêncio, quando ensinam, criam, marcham e falam com clareza feroz, que os alicerces do poder indevido começam a ruir.
Faltam 1.536 dias para o término do mandato regulamentar de Trump.
Péssima ideia. As revistas estampavam a caricatura de Brejnev com feições de urso feroz, e o tempo fechou com os agentes da imigração. Não só confiscaram o material e mais alguns extras, como retiveram o viajante para explicações. Segunda ideia péssima de Civita: argumentou não ser mero leitor, mas representante do maior grupo editorial brasileiro que publicava aquelas revistas. Para ouvidos soviéticos, um capitalista incontrito. O não diálogo foi bastante tenso, contaria depois.
Nesta semana, o episódio de 45 anos atrás saltou do baú da memória. Isso porque, em julho de 2026, a nação americana celebrará os 250 anos da assinatura da Declaração de Independência, festança que pretende ter impacto comparável ao que foram os Jogos de Moscou para a URSS. A julgar pelo clima de suspeição e arbítrio já demonstrado neste início de governo, a recepção a visitantes de determinadas origens, posições políticas ou ideológicas, currículo ou profissões, pode não ser do gosto das autoridades trumpistas. Dias atrás o site da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil e sua página no X de Elon Musk fizeram a seguinte postagem bilíngue:
— TODOS devem estar de sobreaviso. Se você é um visitante em nosso país, comporte-se como tal. Nosso rigoroso programa de verificação em redes sociais para identificar riscos à segurança nacional e à segurança pública nunca para. O U.S. Citizenship and Immigration Services está atento para encontrar qualquer coisa on-line que represente uma ameaça à nossa nação e a nosso modo de vida. Green cards e vistos são um privilégio, e não um direito.
Logo nos primeiros dias como presidente, Trump já demonstrou sua capacidade e determinação em fazer desaparecer pessoas que cometeram ou não algum crime, sendo ou não cidadãos legalmente documentados. Convém, portanto, mesmo para viajantes desavisados, não desembarcar nos Estados Unidos com o celular recheado de opiniões mordazes sobre o reinado trumpista.
Uma segunda postagem no site da embaixada, do mesmo dia 30 de abril, surpreendeu pelo tema. Ela informa que uma equipe do Departamento de Estado no consulado americano em Porto Alegre (RS) realizou um exercício de treinamento sobre armas de destruição em massa contra “uma possível ameaça química, biológica, nuclear ou explosiva”. Caramba. Talvez seja melhor nem se interessar pelos festejos de 2026 e, assim, evitar sobressaltos.
Trump, convenhamos, é único. Em 2021, foi enxotado de Washington pelo voto, com dois impeachments no currículo, abandonado por aliados e banido de suas plataformas sociais preferidas. Um pária, em suma. Sua ressurreição política, alvo de exaustiva, invejável (e saborosa) reportagem da revista The Atlantic (“I run the country and the world”), explica por que ele, hoje, se sente invencível. A ponto de desmantelar, com voracidade e velocidade inauditas, quase todos os anteparos de proteção à integridade pública do governo federal. Dezenove agências reguladoras foram evisceradas, abrindo caminho para um caminhão de conflitos de interesses, reversão de políticas voltadas ao bem comum e negociatas sem escrutínio, privadas, da Organização Trump com seletos governos estrangeiros.
A noção de governo como bem público democratizante e instituição de responsabilidade social vem sendo metodicamente destruída, constata Henry Giroux, acadêmico distinto Paulo Freire em Pedagogia Crítica na Universidade McMaster, do Canadá. No Estado trumpista, o bem público passou a ser tratado como inimigo, sustenta.
Mas a impetuosidade dos cem primeiros dias já começa a mostrar as primeiras rachaduras. Segundo dados de 191 pesquisas sobre a popularidade de Trump desde a posse, 119 apontam crescimento de quase dois dígitos na desaprovação — a média de aprovação caiu para 44% segundo o levantamento, feito pelo laboratório de dados do New York Times.
Para Giroux, diante da apatia comatosa do Partido Democrata, seria imperativo uma ação da sociedade civil. “O fascismo se alimenta de desespero, cinismo e silêncio, mas a História ensina o contrário”, diz ele. É quando pessoas comuns se recusam a ficar em silêncio, quando ensinam, criam, marcham e falam com clareza feroz, que os alicerces do poder indevido começam a ruir.
Faltam 1.536 dias para o término do mandato regulamentar de Trump.
domingo, 4 de maio de 2025
Só deixo o meu Cariri no último pau-de-arara
Quando estive em Shang Hai em 1987, os chineses perguntaram ‘你從哪裡來吗’, de onde você é? Respondi que era do Brasil. Aí eles disseram que eu não tinha cara de brasileiro. Expliquei que meus pais eram poloneses; e eles perguntaram se eu havia nascido no Brasil ou na Polônia, ao que respondi que nascera na Palestina. Já meio confusos, os chineses perguntaram onde afinal de contas eu morava, no Brasil, na Polônia ou na Palestina; e eu, já meio sem graça, respondi que estava morando nos Estados Unidos.
Talvez você nunca tenha ouvido falar na Yiddishland, só na Deutschland, Disneyland, England, Finland, Greekland, Greenland, Iceland, Ireland, Nederland, Russland, Scotland e Switzerland. Mas não se preocupe, a Yiddishland não existe mais, foi extinta na Segunda Guerra Mundial.
A Yiddishland era o milenar lar dos judeus ashkenazim no Leste Europeu, que já no século XVI constituíam a maior comunidade e o centro da cultura judaica no mundo. Esse povo sem estado e sem generais, que falava yiddish, armado de canetas, desenvolveu uma cultura humanista, internacionalista e pacifista, que pode ser conferida em sua vasta e profícua literatura, tanto religiosa quanto laica. Decerto havia judeus não alinhados com a cultura humanista dominante, mas esses eram marginais.
A maior parte dos judeus que habitava a Yiddishland foi exterminada no Holocausto e os sobreviventes foram enxotados, exilados de sua terra natal. Nove a cada dez dos meus parentes foram exterminados, caminharam para o abate tal qual ovelhas para o matadouro. Os nazistas consideravam que os judeus eram vermes, subumanos, passivos, fracos, não tinham honra, não lutavam, não se defendiam, aceitavam ser agredidos sem esboçar a menor resistência, em suma, eram uns covardes. Sartre, no entanto, escreveu que a brandura dos judeus frente às injustiças e à violência era a verdadeira marca de sua grandeza. Mesmo assim, os nazistas conseguiram produzir judeus partisans, terroristas que participaram ativamente da resistência, inclusive do suicida Levante do Gueto de Varsóvia.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos judeus era contra os partisans, achavam que a resistência estimularia a escalada da violência, e os alemães nazistas de fato investiam contra a comunidade em represália às ações praticadas pelos terroristas, o que era chamado de responsabilidade coletiva. Os movimentos de resistência nos Guetos, em geral, irromperam somente durante as últimas deportações… Na liquidação do Gueto de Vilna, em setembro de 1943, a Organização Partisan Unida (FPO), da qual faziam parte os poetas Avrom Sutzkever e Shmerke Kaczerginski, que sobreviveram ao Holocausto, julgou apropriado abandonar o Gueto para se juntar aos partisans da floresta, porque considerou que, no caso de um confronto armado com os alemães nazistas, a população judia do Gueto iria lutar contra a FPO.
Meu pai sobreviveu aos campos de concentração nazistas e minha mãe foi deportada para a Sibéria. Munidos por uma força descomunal, não reagiram e se submeteram aos desmandos, à violência, à humilhação e, apesar do aviltamento sofrido, ainda se transformaram em verdadeiros militantes da vida. Eu nasci no exílio, na Palestina, depois fomos para a Alemanha, onde fomos presos como imigrantes ilegais e, finalmente, o destino nos ancorou no Porto de Santos, sem nunca termos ouvido falar que existisse um país com o nome de Brasil. Um exilado nunca mais volta à sua terra natal, porque não são mais os mesmos, nem o exilado, nem a sua terra natal. No meu caso, literalmente, ainda que quisesse, nunca poderia voltar, sou um exilado para a eternidade, porque a Yiddishland foi extinta, não existe mais.
Do Cariri nos perdemos pelo mundo, com a esperança à frente, carregando nossos mortos, para que ninguém fique para trás.
Samuel Kilsztajn
Talvez você nunca tenha ouvido falar na Yiddishland, só na Deutschland, Disneyland, England, Finland, Greekland, Greenland, Iceland, Ireland, Nederland, Russland, Scotland e Switzerland. Mas não se preocupe, a Yiddishland não existe mais, foi extinta na Segunda Guerra Mundial.
A Yiddishland era o milenar lar dos judeus ashkenazim no Leste Europeu, que já no século XVI constituíam a maior comunidade e o centro da cultura judaica no mundo. Esse povo sem estado e sem generais, que falava yiddish, armado de canetas, desenvolveu uma cultura humanista, internacionalista e pacifista, que pode ser conferida em sua vasta e profícua literatura, tanto religiosa quanto laica. Decerto havia judeus não alinhados com a cultura humanista dominante, mas esses eram marginais.
A maior parte dos judeus que habitava a Yiddishland foi exterminada no Holocausto e os sobreviventes foram enxotados, exilados de sua terra natal. Nove a cada dez dos meus parentes foram exterminados, caminharam para o abate tal qual ovelhas para o matadouro. Os nazistas consideravam que os judeus eram vermes, subumanos, passivos, fracos, não tinham honra, não lutavam, não se defendiam, aceitavam ser agredidos sem esboçar a menor resistência, em suma, eram uns covardes. Sartre, no entanto, escreveu que a brandura dos judeus frente às injustiças e à violência era a verdadeira marca de sua grandeza. Mesmo assim, os nazistas conseguiram produzir judeus partisans, terroristas que participaram ativamente da resistência, inclusive do suicida Levante do Gueto de Varsóvia.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos judeus era contra os partisans, achavam que a resistência estimularia a escalada da violência, e os alemães nazistas de fato investiam contra a comunidade em represália às ações praticadas pelos terroristas, o que era chamado de responsabilidade coletiva. Os movimentos de resistência nos Guetos, em geral, irromperam somente durante as últimas deportações… Na liquidação do Gueto de Vilna, em setembro de 1943, a Organização Partisan Unida (FPO), da qual faziam parte os poetas Avrom Sutzkever e Shmerke Kaczerginski, que sobreviveram ao Holocausto, julgou apropriado abandonar o Gueto para se juntar aos partisans da floresta, porque considerou que, no caso de um confronto armado com os alemães nazistas, a população judia do Gueto iria lutar contra a FPO.
Meu pai sobreviveu aos campos de concentração nazistas e minha mãe foi deportada para a Sibéria. Munidos por uma força descomunal, não reagiram e se submeteram aos desmandos, à violência, à humilhação e, apesar do aviltamento sofrido, ainda se transformaram em verdadeiros militantes da vida. Eu nasci no exílio, na Palestina, depois fomos para a Alemanha, onde fomos presos como imigrantes ilegais e, finalmente, o destino nos ancorou no Porto de Santos, sem nunca termos ouvido falar que existisse um país com o nome de Brasil. Um exilado nunca mais volta à sua terra natal, porque não são mais os mesmos, nem o exilado, nem a sua terra natal. No meu caso, literalmente, ainda que quisesse, nunca poderia voltar, sou um exilado para a eternidade, porque a Yiddishland foi extinta, não existe mais.
Ficamos deslumbrados com o Brasil. Para quem vem do Velho Mundo, a alegria dos brasileiros é contagiante. Todo mundo é bom, comunicativo e afável. O povo nos recebeu de braços abertos, apesar das restrições impostas pela Circular Secreta 1127 de 1937 à entrada de judeus no país, que vigorou praticamente até 1953. Em consonância com a ideologia racial, que dominou o mundo inteiro na primeira metade do século XX, as elites brasileiras, em sua política de imigração, tinham como princípio o branqueamento do país, de modo a “melhorar a raça”, sem manifestar pudor algum em relação à população de origem africana, que havia imigrado compulsoriamente do século XVI até meados do século XIX. De acordo com a ideologia racial, branco era sinônimo de ariano e, portanto, os judeus, por mais pálidos que fossem, nunca poderiam ser considerados brancos, além de que, todo mundo sabia, os judeus eram um bando de socialistas.
Sim, fui preso político durante a Ditadura e, embora absolvido pela Justiça Militar, meu pedido de naturalização foi indeferido. Permaneci apátrida por bons anos, mesmo depois da anistia de 1979, porque a naturalização é uma concessão do governo, e não um direito do estrangeiro.
A Ditadura Militar perseguiu, prendeu e exterminou todos aqueles que se opuseram a seus desmandos. ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’, ame os militares que tomaram o poder constituído em um golpe de estado ou desocupe o país. Uma geração de crianças brasileiras foi banida de sua terra natal. A Carta Editora reuniu as memórias de 46 crianças brasileiras no exílio.
Desterrado da Yiddishland e nascido no exílio, me identifico com todos os expatriados, extraterrestres, cidadãos do mundo. Sempre senti forte empatia com os povos originários dessa terra que acolheu a minha família e com a população de origem africana que até hoje permanece segregada. Em minha militância pelas quotas raciais nas universidades, dizia que meu pai fora escravo e, só depois do olhar incrédulo dos companheiros, é que acrescentava que fora escravo do Terceiro Reich.
Com a internacionalização do capital produtivo que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, os juruás, os invasores, que até então haviam ocupado apenas o litoral do país, resolveram transferir a sua capital à beira-mar para o Planalto Central, de modo a tomar posse do Centro-Oeste e da Bacia Amazônica. O genocídio dos povos nativos, iniciado no século XVI, ganhou então novo ímpeto com a ocupação de terras até então não cobiçadas. O que para os juruás era ocupar um espaço vazio com um museu futurista a céu aberto, para os indígenas foi o grande assalto às suas terras na segunda metade do século XX, que abriu caminho para a Transamazônica da Ditadura Militar e para o pesadelo que atualmente sangra vivo em meio à cobiça que ameaça a Amazônia.
O povo palestino foi desalojado de suas casas, aldeias e cidades, expulso de suas terras, para dar lugar aos sobreviventes judeus do Holocausto, afiançados pelos países membros das Nações Unidas, que se recusaram a absorvê-los e acharam por bem alojá-los nas terras do Levante, apesar do protesto da população nativa que vivia há séculos entre o Jordão e o Mediterrâneo.
Jaffa, a minha cidade natal, até de acordo com o despótico Plano de Partição da Palestina, havia sido designada como um enclave árabe em meio ao Estado Judeu. Mas, para evitar a formação do enclave, mesmo antes da criação de Israel em 14 de maio de 1948, as organizações terroristas Irgum e Haganah se apressaram em jogar 45 mil árabes de Jaffa no mar, que ancoraram no Líbano.
O cineasta palestino Mahdi Fleifel, que dirigiu o premiado documentário Um mundo que não é nosso, retrata a miséria a que a população nativa da Palestina foi reduzida pela violência dos sionistas. Fleifel acompanhou o refugiado Abu Eyad desde os seus 10 anos de idade, no campo Ain el-Helweh, no Líbano. Em 2012, produziu o curta-metragem Xenos, com imagem de Abu na Grécia. Em 2020, Fleifel produziu 3 saídas lógicas, em que Abu Eyad diz que os desterrados palestinos podem escolher se envolver no mundo das drogas, juntar-se às milícias armadas ou buscar o exílio.
Qual a relação entre a cultura dominante dos judeus da Yiddishland e a cultura racista, xenofóbica e militarista do Estado de Israel, que ocupou e continua expulsando os palestinos de sua terra natal, e conta com o apoio da maior parte dos judeus da diáspora? Mesmo os militantes do movimento Shalom Arshav (Paz Agora), que denunciam os assentamentos, choram as vítimas enquanto seguem matando os palestinos. Itamar Mann e Lihi Yona estão empenhados em resguardar o judaísmo humanista das garras do sionismo.
Minha língua materna é o agonizante yiddish, mas, como disse Isaac Bashevis Singer ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, “uma mãe nunca está realmente morta”. Fiel à minha herança cultural, já abandonei categoricamente o judaísmo, apesar de meus amigos, tanto judeus como não judeus, me advertirem que, maldito, não serei poupado pelos antissemitas, nem aceito entre os palestinos – mas esse não é meu problema, esse problema é o deles.
Sim, fui preso político durante a Ditadura e, embora absolvido pela Justiça Militar, meu pedido de naturalização foi indeferido. Permaneci apátrida por bons anos, mesmo depois da anistia de 1979, porque a naturalização é uma concessão do governo, e não um direito do estrangeiro.
A Ditadura Militar perseguiu, prendeu e exterminou todos aqueles que se opuseram a seus desmandos. ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’, ame os militares que tomaram o poder constituído em um golpe de estado ou desocupe o país. Uma geração de crianças brasileiras foi banida de sua terra natal. A Carta Editora reuniu as memórias de 46 crianças brasileiras no exílio.
Desterrado da Yiddishland e nascido no exílio, me identifico com todos os expatriados, extraterrestres, cidadãos do mundo. Sempre senti forte empatia com os povos originários dessa terra que acolheu a minha família e com a população de origem africana que até hoje permanece segregada. Em minha militância pelas quotas raciais nas universidades, dizia que meu pai fora escravo e, só depois do olhar incrédulo dos companheiros, é que acrescentava que fora escravo do Terceiro Reich.
Com a internacionalização do capital produtivo que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, os juruás, os invasores, que até então haviam ocupado apenas o litoral do país, resolveram transferir a sua capital à beira-mar para o Planalto Central, de modo a tomar posse do Centro-Oeste e da Bacia Amazônica. O genocídio dos povos nativos, iniciado no século XVI, ganhou então novo ímpeto com a ocupação de terras até então não cobiçadas. O que para os juruás era ocupar um espaço vazio com um museu futurista a céu aberto, para os indígenas foi o grande assalto às suas terras na segunda metade do século XX, que abriu caminho para a Transamazônica da Ditadura Militar e para o pesadelo que atualmente sangra vivo em meio à cobiça que ameaça a Amazônia.
O povo palestino foi desalojado de suas casas, aldeias e cidades, expulso de suas terras, para dar lugar aos sobreviventes judeus do Holocausto, afiançados pelos países membros das Nações Unidas, que se recusaram a absorvê-los e acharam por bem alojá-los nas terras do Levante, apesar do protesto da população nativa que vivia há séculos entre o Jordão e o Mediterrâneo.
Jaffa, a minha cidade natal, até de acordo com o despótico Plano de Partição da Palestina, havia sido designada como um enclave árabe em meio ao Estado Judeu. Mas, para evitar a formação do enclave, mesmo antes da criação de Israel em 14 de maio de 1948, as organizações terroristas Irgum e Haganah se apressaram em jogar 45 mil árabes de Jaffa no mar, que ancoraram no Líbano.
O cineasta palestino Mahdi Fleifel, que dirigiu o premiado documentário Um mundo que não é nosso, retrata a miséria a que a população nativa da Palestina foi reduzida pela violência dos sionistas. Fleifel acompanhou o refugiado Abu Eyad desde os seus 10 anos de idade, no campo Ain el-Helweh, no Líbano. Em 2012, produziu o curta-metragem Xenos, com imagem de Abu na Grécia. Em 2020, Fleifel produziu 3 saídas lógicas, em que Abu Eyad diz que os desterrados palestinos podem escolher se envolver no mundo das drogas, juntar-se às milícias armadas ou buscar o exílio.
Qual a relação entre a cultura dominante dos judeus da Yiddishland e a cultura racista, xenofóbica e militarista do Estado de Israel, que ocupou e continua expulsando os palestinos de sua terra natal, e conta com o apoio da maior parte dos judeus da diáspora? Mesmo os militantes do movimento Shalom Arshav (Paz Agora), que denunciam os assentamentos, choram as vítimas enquanto seguem matando os palestinos. Itamar Mann e Lihi Yona estão empenhados em resguardar o judaísmo humanista das garras do sionismo.
Minha língua materna é o agonizante yiddish, mas, como disse Isaac Bashevis Singer ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, “uma mãe nunca está realmente morta”. Fiel à minha herança cultural, já abandonei categoricamente o judaísmo, apesar de meus amigos, tanto judeus como não judeus, me advertirem que, maldito, não serei poupado pelos antissemitas, nem aceito entre os palestinos – mas esse não é meu problema, esse problema é o deles.
Só é meu o país que se encontra em minha alma, em que entro sem passaporte, dizia Marc Chagall.
Do Cariri nos perdemos pelo mundo, com a esperança à frente, carregando nossos mortos, para que ninguém fique para trás.
Samuel Kilsztajn
O crime no fundo das redes
Em intervenção exemplar, a polícia carioca antecipou-se a um crime, prendendo três jovens maiores de idade que planejavam matar um morador de rua no domingo de Páscoa. A execução seria transmitida online a um público pagante, expectadores habituais de suas exibições de maus tratos a animais e pregações contra mulheres, negros e homossexuais. Apurou-se que é largo o espectro de adolescentes atraídos por essa iniciação à barbárie.
O alvo crítico de Sartre era o "fait-divers", isto é, os relatos jornalísticos sobre a irrupção do insólito, identificado sempre com alguma violação das normais culturais ou naturais, como o acidente, o crime, a catástrofe. Só que isso não estava necessariamente ligado à direita política, e sim à imprensa sensacionalista, que explorava o fascínio sadomasoquista dos leitores pelo mórbido ou pelo horror. O que aí conta de fato são os sentimentos mais arcaicos do indivíduo, em geral apreendidos pelas lentes da psicanálise e da psiquiatria.
Mas a recente notícia, pela imprensa francesa, da morte de uma jovem estudante em Nantes, assassinada com 57 facadas, oferece outra perspectiva. Segundo o relato, o assassino, também adolescente, num manifesto delirante, "sintetiza todas as loucuras ideológicas que gangrenam hoje as nossas sociedades". Em treze páginas, fascinado por Hitler, ele denuncia o "neurocapitalismo", supostamente responsável pela transformação dos cérebros em instrumentos de dominação econômica e tecnológica, que promoveriam um "ecocídio globalizado". É a sua justificativa para "vingar a humanidade", assassinando uma desconhecida.
A cobertura jornalística não configura um "fait-divers". Embora confinado a um hospital psiquiátrico, esse jovem não é mero doente, protagonista isolado de um fato. Ao olhar crítico, ele seria "talvez uma prévia da assustadora racionalidade dos loucos de amanhã". Mais do que uma prévia, porém, um padrão ideológico já em curso na realidade paralela e transnacional das redes sociais, onde se multiplicam grupos organizados com motivações fascistas.
Os três jovens apreendidos pela polícia carioca (o mais velho, de 24 anos, é militar) demonstravam racionalidade operativa, comprovada no planejamento de suas lives de horror. As redes constituem uma espécie de terceira natureza (a segunda é o hábito), que conduz consciências vulneráveis por veredas sinistras. Não se trata de moldar cabeças, velha hipótese sobre a influência da mídia, mas de caminhar na escuridão moral aberta pelo espaço virtual. Se o motor do percurso é o prazer transgressivo inerente à adolescência, o ponto de chegada é o crime real no fundo das redes.
É coisa antiga a atração pública pelo crime. Richard Speck, conhecido como "o monstro de Chicago" por ter assassinado em uma noite de verão (1966) oito enfermeiras, recebia, na prisão, cartas de amor anônimas, algumas com dinheiro, outras com sua foto marcada de batom. As paixões inflamadas por anomalias alimentam o espetáculo do crime. Isso que Jean-Paul Sartre atribuía, na França, à "imprensa de direita da bunda e do sangue" e o levou a participar da fundação do Libération como um diário que contribuísse para o desenvolvimento real da democracia política por meio de uma "escrita-falada", próxima ao mundo do trabalho.
O alvo crítico de Sartre era o "fait-divers", isto é, os relatos jornalísticos sobre a irrupção do insólito, identificado sempre com alguma violação das normais culturais ou naturais, como o acidente, o crime, a catástrofe. Só que isso não estava necessariamente ligado à direita política, e sim à imprensa sensacionalista, que explorava o fascínio sadomasoquista dos leitores pelo mórbido ou pelo horror. O que aí conta de fato são os sentimentos mais arcaicos do indivíduo, em geral apreendidos pelas lentes da psicanálise e da psiquiatria.
Mas a recente notícia, pela imprensa francesa, da morte de uma jovem estudante em Nantes, assassinada com 57 facadas, oferece outra perspectiva. Segundo o relato, o assassino, também adolescente, num manifesto delirante, "sintetiza todas as loucuras ideológicas que gangrenam hoje as nossas sociedades". Em treze páginas, fascinado por Hitler, ele denuncia o "neurocapitalismo", supostamente responsável pela transformação dos cérebros em instrumentos de dominação econômica e tecnológica, que promoveriam um "ecocídio globalizado". É a sua justificativa para "vingar a humanidade", assassinando uma desconhecida.
A cobertura jornalística não configura um "fait-divers". Embora confinado a um hospital psiquiátrico, esse jovem não é mero doente, protagonista isolado de um fato. Ao olhar crítico, ele seria "talvez uma prévia da assustadora racionalidade dos loucos de amanhã". Mais do que uma prévia, porém, um padrão ideológico já em curso na realidade paralela e transnacional das redes sociais, onde se multiplicam grupos organizados com motivações fascistas.
Os três jovens apreendidos pela polícia carioca (o mais velho, de 24 anos, é militar) demonstravam racionalidade operativa, comprovada no planejamento de suas lives de horror. As redes constituem uma espécie de terceira natureza (a segunda é o hábito), que conduz consciências vulneráveis por veredas sinistras. Não se trata de moldar cabeças, velha hipótese sobre a influência da mídia, mas de caminhar na escuridão moral aberta pelo espaço virtual. Se o motor do percurso é o prazer transgressivo inerente à adolescência, o ponto de chegada é o crime real no fundo das redes.
Anistia
Anistia é um gesto bonito, político e de longo alcance. É, usualmente, ato mastigado e maturado, negociado entre várias partes ao longo do tempo até que resulte em perdão. É decisão cristã, bonita, que liberta o perdoado e o que perdoou. Os dois se livram do peso da acusação, das lembranças e de eventuais remorsos. O perdão limpa tudo e promove a remissão da pena, da ofensa ou da dívida. Em alguns países, como nos Estados Unidos, o crime não prescreve. Não há perdão. Mas sempre depende da decisão do governante, do Rei, do Imperador ou da principal autoridade.
A história do Brasil é cheia de momentos em que revoltosos, por qualquer razão, fazem seu movimento, são derrotados e, logo sem seguida, são anistiados. É uma prática política destinada a evitar radicalização de blocos irreconciliáveis. No entanto, ainda no tempo da colônia, houve grave articulação para que Minas Gerais se tornasse independente do Império português. A conspiração, que permaneceu no nível das articulações sigilosas, foi descoberta em 1789 por consequência da delação de Joaquim Silvério dos Reis, que ganhou em troca a quitação de suas dívidas com o Tesouro Real.
Os réus foram acusados do crime de lesa-majestade como previsto pelas Ordenações Filipinas, Livro V, título 6, materializado em inconfidência ou falta de fidelidade ao rei. “Lesa-majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rei, ou seu Real Estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos Sabedores tanto estranharam, que o comparavam à lepra; porque assim como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar”.
Doze dos condenados foram sentenciados à morte. A condenação foi comutada por ordem de D. Maria I para penas diversas, a maioria de degredo na África. Exceto Tiradentes. Ele foi enforcado e depois esquartejado. Seus despojos foram expostos ao longo do Caminho Real, que ligava Vila Real ao porto. É um exemplo da justiça dos portugueses, da atual os brasileiros herdaram alguns conceitos. Ninguém ousou falar em anistia.
No Brasil, ocorreram diversas resoluções, ou tentativas de golpe político, para depor governos ou mudar o regime. Os monarquistas perderam todas. Na Ilha do Desterro, Santa Catarina, em abril de 1894, os revoltosos tentaram derrubar o governo Floriano Peixoto. Foram fuzilados e a ilha, como vingança, recebeu o nome de Florianópolis. Em Canudos, no sertão baiano, Antônio Conselheiro criou vilarejo que ganhou fama de monarquista. Após quatro tentativas, o Exército acabou com a iniciativa ao custo de 15 mil mortos. O coronel Moreira Cesar, comandante geral, foi morto na terceira expedição. Canudos hoje está debaixo de água na represa do rio Vaza-Barris. Ninguém falou em anistia. A Princesa Isabel chegou a conversar na Europa sobre a chamada Restauração. Não deu certo. D. Pedro II faleceu em dezembro de 1891 em Paris, no discreto hotel Bedford, vítima de diabetes.
A república é uma sucessão de crises, a maioria delas surgida no meio militar a partir de julho de 1922, no episódio dos 18 do Forte, ocorrido no Rio de Janeiro. Depois, na mesma data em 1924, os rebeldes tomaram São Paulo. O governo central cercou e bombardeou a cidade. Eles se retiraram para a fronteira com o Paraguai e dali se originou a coluna Prestes, que cruzou o Brasil no sentido diagonal até o Rio Grande do Norte. Ao final desta monumental guerrilha, eles foram escorraçados pelos fazendeiros do interior da Bahia e fugiram para a Bolívia. Uns se tornaram comunistas, como Prestes, outros voltaram a política nacional depois de uma anistia. Alguns integraram o governo Vargas, que esteve no poder entre 1930 e 1945.
Sem qualquer dúvida a anistia mais importante da República ocorreu em 1979. Marcou o início do fim dos governos militares no Brasil. Foi a tentativa de reconciliação entre torturadores e torturados. Entre atacantes e atacados. Entre usurpadores e usurpados. Entre mortos e seus carrascos. Não foi a melhor solução, foi a pacificação possível encontrada pelo saudoso ministro da Justiça, Petrônio Portella. Reverbera até hoje. Militares produziram um livro, que não foi publicado, contando sua versão. (O título é curioso: Orvil) Os civis também produziram suas histórias.
A tentativa de anistia do pessoal do 8 de janeiro de 2023 ainda é muito recente. Há inocentes úteis. Mas, profissionais trabalharam no assalto aos três poderes. E gente graúda, sem dúvida, conspirou exatamente como fez a turma de Vila Rica. Os mineiros, contudo, tinham objetivos mais nobres. Lutavam pela liberdade, não queriam restabelecer uma ditadura. Trabalharam dentro do manual clássico de fazer revolução. Se der certo, a revolução é vitoriosa Senão, clama pelo perdão. Anistia é ato político promovido por quem está no poder. Ou seja, o vencedor da batalha política. Ao perdedor resta a possibilidade de espernear em praça pública.
A história do Brasil é cheia de momentos em que revoltosos, por qualquer razão, fazem seu movimento, são derrotados e, logo sem seguida, são anistiados. É uma prática política destinada a evitar radicalização de blocos irreconciliáveis. No entanto, ainda no tempo da colônia, houve grave articulação para que Minas Gerais se tornasse independente do Império português. A conspiração, que permaneceu no nível das articulações sigilosas, foi descoberta em 1789 por consequência da delação de Joaquim Silvério dos Reis, que ganhou em troca a quitação de suas dívidas com o Tesouro Real.
Os réus foram acusados do crime de lesa-majestade como previsto pelas Ordenações Filipinas, Livro V, título 6, materializado em inconfidência ou falta de fidelidade ao rei. “Lesa-majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rei, ou seu Real Estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos Sabedores tanto estranharam, que o comparavam à lepra; porque assim como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar”.
Doze dos condenados foram sentenciados à morte. A condenação foi comutada por ordem de D. Maria I para penas diversas, a maioria de degredo na África. Exceto Tiradentes. Ele foi enforcado e depois esquartejado. Seus despojos foram expostos ao longo do Caminho Real, que ligava Vila Real ao porto. É um exemplo da justiça dos portugueses, da atual os brasileiros herdaram alguns conceitos. Ninguém ousou falar em anistia.
No Brasil, ocorreram diversas resoluções, ou tentativas de golpe político, para depor governos ou mudar o regime. Os monarquistas perderam todas. Na Ilha do Desterro, Santa Catarina, em abril de 1894, os revoltosos tentaram derrubar o governo Floriano Peixoto. Foram fuzilados e a ilha, como vingança, recebeu o nome de Florianópolis. Em Canudos, no sertão baiano, Antônio Conselheiro criou vilarejo que ganhou fama de monarquista. Após quatro tentativas, o Exército acabou com a iniciativa ao custo de 15 mil mortos. O coronel Moreira Cesar, comandante geral, foi morto na terceira expedição. Canudos hoje está debaixo de água na represa do rio Vaza-Barris. Ninguém falou em anistia. A Princesa Isabel chegou a conversar na Europa sobre a chamada Restauração. Não deu certo. D. Pedro II faleceu em dezembro de 1891 em Paris, no discreto hotel Bedford, vítima de diabetes.
A república é uma sucessão de crises, a maioria delas surgida no meio militar a partir de julho de 1922, no episódio dos 18 do Forte, ocorrido no Rio de Janeiro. Depois, na mesma data em 1924, os rebeldes tomaram São Paulo. O governo central cercou e bombardeou a cidade. Eles se retiraram para a fronteira com o Paraguai e dali se originou a coluna Prestes, que cruzou o Brasil no sentido diagonal até o Rio Grande do Norte. Ao final desta monumental guerrilha, eles foram escorraçados pelos fazendeiros do interior da Bahia e fugiram para a Bolívia. Uns se tornaram comunistas, como Prestes, outros voltaram a política nacional depois de uma anistia. Alguns integraram o governo Vargas, que esteve no poder entre 1930 e 1945.
Sem qualquer dúvida a anistia mais importante da República ocorreu em 1979. Marcou o início do fim dos governos militares no Brasil. Foi a tentativa de reconciliação entre torturadores e torturados. Entre atacantes e atacados. Entre usurpadores e usurpados. Entre mortos e seus carrascos. Não foi a melhor solução, foi a pacificação possível encontrada pelo saudoso ministro da Justiça, Petrônio Portella. Reverbera até hoje. Militares produziram um livro, que não foi publicado, contando sua versão. (O título é curioso: Orvil) Os civis também produziram suas histórias.
A tentativa de anistia do pessoal do 8 de janeiro de 2023 ainda é muito recente. Há inocentes úteis. Mas, profissionais trabalharam no assalto aos três poderes. E gente graúda, sem dúvida, conspirou exatamente como fez a turma de Vila Rica. Os mineiros, contudo, tinham objetivos mais nobres. Lutavam pela liberdade, não queriam restabelecer uma ditadura. Trabalharam dentro do manual clássico de fazer revolução. Se der certo, a revolução é vitoriosa Senão, clama pelo perdão. Anistia é ato político promovido por quem está no poder. Ou seja, o vencedor da batalha política. Ao perdedor resta a possibilidade de espernear em praça pública.
Trump estimula a destruição da Amazônia e do Cerrado
Em 2021, os preços da soja subiram para 15 dólares por bushel – o nível mais alto em oito anos. Ao mesmo tempo, o desmatamento na região amazônica aumentou para mais de 13 mil quilômetros quadrados. Essa foi a maior área de floresta tropical a virar fumaça em 15 anos. O gatilho para o aumento dos preços da soja e dos incêndios florestais foram as tarifas punitivas de Donald Trump contra a China, que levaram a um aumento nas exportações agrícolas brasileiras para a Ásia.
O que começou com as tarifas punitivas de Trump contra a China desencadeou uma sequência de acontecimentos três anos atrás que acabou dizimando o Cerrado e a Amazônia no Brasil. Essa cadeia causal agora começa a girar novamente.
Uma retrospectiva: quando Donald Trump impôs tarifas punitivas sobre produtos chineses em 2018, a China respondeu com uma proibição de importação de soja dos EUA. A República Popular procurou novos fornecedores. Os agricultores brasileiros aproveitaram e lucraram com a brecha deixada pelas tarifas dos EUA.
À medida que a nova demanda da China supria uma oferta inicialmente rígida de soja, os preços da soja aumentaram: de cerca de 9 dólares por bushel em 2018 para até 15 dólares em 2021. Os altos preços da soja foram um incentivo para muitos agricultores expandiram suas lavouras para novas áreas.
As exportações para a China foram um grande sucesso para a indústria exportadora agrícola brasileira. Desde o primeiro mandato de Trump, as exportações de soja para a China dobraram, as exportações de carne bovina quintuplicaram e as vendas de algodão aumentaram dez vezes. Isso mostra o dinamismo da agricultura brasileira. Por um lado.
Por outro lado, esse boom agrícola indiretamente causou danos severos aos biomas brasileiros. Não é Trump o responsável por isso, mas o próprio Brasil.
Porque mais ou menos na mesma época, Jair Bolsonaro assumiu o cargo, em 2019. Para ele, a proteção ambiental era um incômodo, um obstáculo para os agricultores. Seu governo enfraqueceu as autoridades ambientais, suspendeu os controles e deu o sinal: a terra pode ser queimada, ninguém será punido. Para dar espaço a plantações de soja e pastagens para gado.
As consequências foram mensuráveis. Na Amazônia, o desmatamento anual aumentou de 7,9 mil quilômetros quadrados antes do governo Bolsonaro para mais de 13,2 mil quilômetros quadrados. O desmatamento também aumentou significativamente no Cerrado, a área mais importante de cultivo de soja: de 6,5 mil para quase 11 mil quilômetros quadrados, o maior desde 2015.
Os agricultores agradeceram a Bolsonaro por permitir que eles expandissem suas terras agrícolas de forma barata – não apenas na área agrícola do Cerrado, mas também na distante Floresta Amazônica.
A maioria dos agricultores no Brasil não tem nada a ver com o desmatamento da Amazônia. Muitas plantações – por exemplo, de café, açúcar, laranja ou cacau – estão localizadas longe da Amazônia ou do Cerrado. No entanto, toda a indústria se beneficia da expansão ilegal de terras agrícolas.
Os preços dos terrenos sofrem menor pressão. Criadores de gado ou produtores de soja ilegais podem colocar seus produtos no circuito oficial, e as empresas "sérias" também se beneficiam disso. Não é de se admirar que o lobby agrícola no Congresso continue sendo um dos mais importantes apoiadores de Bolsonaro.
Desde 2023, as taxas de desmatamento vêm caindo novamente no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele conseguiu fortalecer as autoridades de controle. Mas a janela de oportunidade pode se fechar novamente em breve. Porque Trump impôs mais uma vez tarifas punitivas à China – e desta vez Pequim reagiu e também aumentou as tarifas sobre as importações dos EUA.
O Cerrado e a Amazônia agora estão ameaçados por uma nova onda de destruição. Isto é confirmado pelo último estudo realizado pelo Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), segundo o qual entre agosto de 2024 e fevereiro de 2025, a destruição florestal na região amazônica quintuplicou.
Este é de longe o maior valor em 15 anos. Áreas degradadas são trechos da Floresta Amazônica que, em parte, foram queimados, dos quais troncos de árvores foram removidos ou onde garimpeiros se espalharam. Elas já estão danificadas ou parcialmente desenvolvidas e, por isso, prontas para a agricultura ou pecuária.
Veio a calhar que a União Europeia (UE) tenha adiado por um ano sua lei antidesmatamento. A regra prevê que as empresas garantam que certas matérias-primas e produtos – incluindo carne bovina, soja, óleo de palma, café, cacau, madeira e borracha – não são originados de áreas desmatadas ou degradadas após 31 de dezembro de 2020.
O adiamento faz sentido, pois muitos detalhes ainda não estavam claros. Para alguns agricultores no Brasil, no entanto, ele pode ser interpretado como uma anistia para mais desmatamento.
O governo Lula também está politicamente enfraquecido. Haverá eleições no ano que vem. O governo tradicionalmente reduz os controles contra a destruição florestal para não melindrar aliados políticos.
A próxima onda de destruição da Amazônia e do Cerrado não está chegando. Ela já chegou.
O que começou com as tarifas punitivas de Trump contra a China desencadeou uma sequência de acontecimentos três anos atrás que acabou dizimando o Cerrado e a Amazônia no Brasil. Essa cadeia causal agora começa a girar novamente.
Uma retrospectiva: quando Donald Trump impôs tarifas punitivas sobre produtos chineses em 2018, a China respondeu com uma proibição de importação de soja dos EUA. A República Popular procurou novos fornecedores. Os agricultores brasileiros aproveitaram e lucraram com a brecha deixada pelas tarifas dos EUA.
À medida que a nova demanda da China supria uma oferta inicialmente rígida de soja, os preços da soja aumentaram: de cerca de 9 dólares por bushel em 2018 para até 15 dólares em 2021. Os altos preços da soja foram um incentivo para muitos agricultores expandiram suas lavouras para novas áreas.
As exportações para a China foram um grande sucesso para a indústria exportadora agrícola brasileira. Desde o primeiro mandato de Trump, as exportações de soja para a China dobraram, as exportações de carne bovina quintuplicaram e as vendas de algodão aumentaram dez vezes. Isso mostra o dinamismo da agricultura brasileira. Por um lado.
Por outro lado, esse boom agrícola indiretamente causou danos severos aos biomas brasileiros. Não é Trump o responsável por isso, mas o próprio Brasil.
Porque mais ou menos na mesma época, Jair Bolsonaro assumiu o cargo, em 2019. Para ele, a proteção ambiental era um incômodo, um obstáculo para os agricultores. Seu governo enfraqueceu as autoridades ambientais, suspendeu os controles e deu o sinal: a terra pode ser queimada, ninguém será punido. Para dar espaço a plantações de soja e pastagens para gado.
As consequências foram mensuráveis. Na Amazônia, o desmatamento anual aumentou de 7,9 mil quilômetros quadrados antes do governo Bolsonaro para mais de 13,2 mil quilômetros quadrados. O desmatamento também aumentou significativamente no Cerrado, a área mais importante de cultivo de soja: de 6,5 mil para quase 11 mil quilômetros quadrados, o maior desde 2015.
Os agricultores agradeceram a Bolsonaro por permitir que eles expandissem suas terras agrícolas de forma barata – não apenas na área agrícola do Cerrado, mas também na distante Floresta Amazônica.
A maioria dos agricultores no Brasil não tem nada a ver com o desmatamento da Amazônia. Muitas plantações – por exemplo, de café, açúcar, laranja ou cacau – estão localizadas longe da Amazônia ou do Cerrado. No entanto, toda a indústria se beneficia da expansão ilegal de terras agrícolas.
Os preços dos terrenos sofrem menor pressão. Criadores de gado ou produtores de soja ilegais podem colocar seus produtos no circuito oficial, e as empresas "sérias" também se beneficiam disso. Não é de se admirar que o lobby agrícola no Congresso continue sendo um dos mais importantes apoiadores de Bolsonaro.
Desde 2023, as taxas de desmatamento vêm caindo novamente no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele conseguiu fortalecer as autoridades de controle. Mas a janela de oportunidade pode se fechar novamente em breve. Porque Trump impôs mais uma vez tarifas punitivas à China – e desta vez Pequim reagiu e também aumentou as tarifas sobre as importações dos EUA.
O Cerrado e a Amazônia agora estão ameaçados por uma nova onda de destruição. Isto é confirmado pelo último estudo realizado pelo Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), segundo o qual entre agosto de 2024 e fevereiro de 2025, a destruição florestal na região amazônica quintuplicou.
Este é de longe o maior valor em 15 anos. Áreas degradadas são trechos da Floresta Amazônica que, em parte, foram queimados, dos quais troncos de árvores foram removidos ou onde garimpeiros se espalharam. Elas já estão danificadas ou parcialmente desenvolvidas e, por isso, prontas para a agricultura ou pecuária.
Veio a calhar que a União Europeia (UE) tenha adiado por um ano sua lei antidesmatamento. A regra prevê que as empresas garantam que certas matérias-primas e produtos – incluindo carne bovina, soja, óleo de palma, café, cacau, madeira e borracha – não são originados de áreas desmatadas ou degradadas após 31 de dezembro de 2020.
O adiamento faz sentido, pois muitos detalhes ainda não estavam claros. Para alguns agricultores no Brasil, no entanto, ele pode ser interpretado como uma anistia para mais desmatamento.
O governo Lula também está politicamente enfraquecido. Haverá eleições no ano que vem. O governo tradicionalmente reduz os controles contra a destruição florestal para não melindrar aliados políticos.
A próxima onda de destruição da Amazônia e do Cerrado não está chegando. Ela já chegou.
O desaparecimento da narrativa ou por que as vacas voam
Na semana passada, tive uma conversa com minha fisioterapeuta que ainda me assombra. Ela me disse que um de seus pacientes era romancista. “Qual o nome dele?” – perguntei, incapaz de suprimir minha curiosidade. “Não sei o sobrenome”, ela respondeu, e então me contou que seu marido tinha ganhado um daqueles livros que vendem muito. Ela também não conseguia se lembrar do nome do autor: “Esqueço coisas que não são importantes”.
Havia algo na maneira como ela se referia a essas coisas “sem importância” — que mais tarde percebi que incluíam teatro, música ou qualquer coisa além de pagamentos de hipoteca ou registros médicos — que me intrigava. E não, esta não é a velha disputa entre ciência e literatura. Esse desrespeito ao material narrativo, ou melhor, essa falha em perceber a relevância das histórias, pode ter consequências fatais.
O corpo é menos capaz de funcionar sem história do que sem proteína. Por que eu acordo de manhã, por que eu faço isso, compro aquilo, me associo a essas pessoas, voto naquelas pessoas? Sem um mínimo de orientação para estruturar nossa vida diária, estamos perdidos. Sabemos disso pelo menos desde Paul Ricoeur: nossa psique é narrativa. Narrar, narrar a nós mesmos, é essencial para orientar nossas ações e nos situar no tempo. Tão essencial que, assim como acontece com o vazio nutricional, se não tivermos uma boa história em mãos — uma que seja nutritiva e benéfica para nós — nos preencheremos com o que estiver disponível.
Um exemplo revelador desse fenômeno pode ser encontrado em The Best of Impossible Worlds, de Gabriel Ventura, que detalha um movimento conhecido como mudança de realidade. Os Shifters, como eles próprios se autodenominam, praticam uma estratégia que virou moda durante a pandemia e consiste em um tipo de meditação em que o sujeito mergulha por horas em mundos fictícios e depois conta sobre isso, claro, no TikTok ou em um site similar .
O desejo de escapar quando o ambiente é insuportável não é novidade, mas o fato de essa fuga ocorrer em cenários construídos pela cultura de massa, da HBO à Amazon Prime, passando pelo PlayStation e pela Nintendo, é, no mínimo, inquietante. Como pode ser que estejamos tão vazios que nem em nossos sonhos somos capazes de inventar nosso próprio mundo?
De acordo com o narratologista e analista social francês Christian Salmon, nossa capacidade de contar histórias vem diminuindo há mais de um século. Nosso vazio narrativo teria começado com a Primeira Guerra Mundial, teria se aprofundado na Segunda e estaria terminando em nossos dias. A propaganda de guerra e a dissolução da dimensão temporal dos acontecimentos teriam sido as chaves para essa destruição, que atinge seu ápice com o storytelling, o uso de histórias para fins comerciais. Essa técnica, que consiste em construir “pequenas histórias exemplares”, tem sido usada em tudo, desde publicidade e política até grandes produtores de histórias como Disney e Netflix. Seu objetivo, argumenta Salmon, é abordar as emoções para nos fazer conformar a certos comportamentos, em vez de propor mitos interpretáveis que alimentam a imaginação, como fariam as “grandes histórias”, começando com Homero.
A psicanalista e escritora Lola López Mondéjar aprofunda a análise desse problema em seu magnífico ensaio Sem História. Para a autora, o triunfo do mundo digital produz um indivíduo incapaz de se explicar. Nós somos, ou melhor, nos tornamos, “indivíduos vazios”. Mondéjar ilustra essa ideia com o caso de uma de suas pacientes, uma jovem médica que padecia de sofrimento emocional e que despertou seu interesse porque, se por um lado conseguia falar sobre tudo o que fazia (academia, cursos, viagens), por outro parecia incapaz de relacionar os acontecimentos com suas emoções. Suas histórias não tinham um porquê e um para quê; não havia nelas enredo nem argumento, ou seja, não narravam, não informavam. Parece, acrescenta o psicanalista, que a jovem estava esperando que alguém desse sentido à sua história.
Mondéjar propõe que esse vazio acaba atrofiando não apenas nossa capacidade de nos compreendermos, mas também nossa faculdade de pensamento: ao não conseguirmos transformar o que acontece em uma experiência subjetiva e comunicável, seríamos acríticos. Salmon propôs algo semelhante: “As histórias se tornaram tão convincentes que ameaçam substituir fatos e argumentos racionais”.
O alcance da imaginação, essa “conversão da consciência em um menu da Netflix”, nas palavras de Ventura, acabaria nos tornando incapazes de algo tão “sem importância” quanto o raciocínio, ou de exigir, por exemplo, evidências confiáveis antes de aderir a qualquer teoria. Se essa tendência continuar, não se surpreenda se amanhã, ou esta tarde, um homem vier e nos disser que as vacas podem voar e acabarmos acreditando nele.
Pilar Fraile
Havia algo na maneira como ela se referia a essas coisas “sem importância” — que mais tarde percebi que incluíam teatro, música ou qualquer coisa além de pagamentos de hipoteca ou registros médicos — que me intrigava. E não, esta não é a velha disputa entre ciência e literatura. Esse desrespeito ao material narrativo, ou melhor, essa falha em perceber a relevância das histórias, pode ter consequências fatais.
O corpo é menos capaz de funcionar sem história do que sem proteína. Por que eu acordo de manhã, por que eu faço isso, compro aquilo, me associo a essas pessoas, voto naquelas pessoas? Sem um mínimo de orientação para estruturar nossa vida diária, estamos perdidos. Sabemos disso pelo menos desde Paul Ricoeur: nossa psique é narrativa. Narrar, narrar a nós mesmos, é essencial para orientar nossas ações e nos situar no tempo. Tão essencial que, assim como acontece com o vazio nutricional, se não tivermos uma boa história em mãos — uma que seja nutritiva e benéfica para nós — nos preencheremos com o que estiver disponível.
Um exemplo revelador desse fenômeno pode ser encontrado em The Best of Impossible Worlds, de Gabriel Ventura, que detalha um movimento conhecido como mudança de realidade. Os Shifters, como eles próprios se autodenominam, praticam uma estratégia que virou moda durante a pandemia e consiste em um tipo de meditação em que o sujeito mergulha por horas em mundos fictícios e depois conta sobre isso, claro, no TikTok ou em um site similar .
O desejo de escapar quando o ambiente é insuportável não é novidade, mas o fato de essa fuga ocorrer em cenários construídos pela cultura de massa, da HBO à Amazon Prime, passando pelo PlayStation e pela Nintendo, é, no mínimo, inquietante. Como pode ser que estejamos tão vazios que nem em nossos sonhos somos capazes de inventar nosso próprio mundo?
De acordo com o narratologista e analista social francês Christian Salmon, nossa capacidade de contar histórias vem diminuindo há mais de um século. Nosso vazio narrativo teria começado com a Primeira Guerra Mundial, teria se aprofundado na Segunda e estaria terminando em nossos dias. A propaganda de guerra e a dissolução da dimensão temporal dos acontecimentos teriam sido as chaves para essa destruição, que atinge seu ápice com o storytelling, o uso de histórias para fins comerciais. Essa técnica, que consiste em construir “pequenas histórias exemplares”, tem sido usada em tudo, desde publicidade e política até grandes produtores de histórias como Disney e Netflix. Seu objetivo, argumenta Salmon, é abordar as emoções para nos fazer conformar a certos comportamentos, em vez de propor mitos interpretáveis que alimentam a imaginação, como fariam as “grandes histórias”, começando com Homero.
A psicanalista e escritora Lola López Mondéjar aprofunda a análise desse problema em seu magnífico ensaio Sem História. Para a autora, o triunfo do mundo digital produz um indivíduo incapaz de se explicar. Nós somos, ou melhor, nos tornamos, “indivíduos vazios”. Mondéjar ilustra essa ideia com o caso de uma de suas pacientes, uma jovem médica que padecia de sofrimento emocional e que despertou seu interesse porque, se por um lado conseguia falar sobre tudo o que fazia (academia, cursos, viagens), por outro parecia incapaz de relacionar os acontecimentos com suas emoções. Suas histórias não tinham um porquê e um para quê; não havia nelas enredo nem argumento, ou seja, não narravam, não informavam. Parece, acrescenta o psicanalista, que a jovem estava esperando que alguém desse sentido à sua história.
Mondéjar propõe que esse vazio acaba atrofiando não apenas nossa capacidade de nos compreendermos, mas também nossa faculdade de pensamento: ao não conseguirmos transformar o que acontece em uma experiência subjetiva e comunicável, seríamos acríticos. Salmon propôs algo semelhante: “As histórias se tornaram tão convincentes que ameaçam substituir fatos e argumentos racionais”.
O alcance da imaginação, essa “conversão da consciência em um menu da Netflix”, nas palavras de Ventura, acabaria nos tornando incapazes de algo tão “sem importância” quanto o raciocínio, ou de exigir, por exemplo, evidências confiáveis antes de aderir a qualquer teoria. Se essa tendência continuar, não se surpreenda se amanhã, ou esta tarde, um homem vier e nos disser que as vacas podem voar e acabarmos acreditando nele.
Pilar Fraile
sábado, 3 de maio de 2025
Vai apostar?
Se Fernando Collor, por problemas de saúde, vai cumprir a pena em casa, o mesmo acontecerá com Jair Bolsonaro quando ele for condenado pelo Supremo Tribunal Federal. Quem aposta?
Um enigma facilmente desvendável
Distraída, a maioria eleitoral norte-americana não percebeu a simplicidade do enigma que lhes foi apresentado na eleição presidencial passada, e tampouco a perceberam os milhões de turistas que por lá andaram.
O enigma é como aquela gente conseguiu condensar todos os defeitos do país num só indivíduo – Donald Trump – e, em seguida, elevar o resultado à enésima potência. Para ser bem compreendido, tal enigma requer algumas indagações complementares. A que defeitos estamos nos referindo? Por que não os percebemos com a devida antecedência? No que toca aos americanos, muitas respostas podem ser cogitadas. Desde o aparecimento, em 1885, do livro Congressional Government, de Woodrow Wilson, os americanos continuaram a louvar as qualidades de seus dois grandes partidos – o Democrata e o Republicano – não se dando conta de que a quase totalidade dos livros sobre o governo federal publicados no último meio século carrega títulos como Presidential Power (R. Neustadt, 1960), The Imperial Presidency (Arthur Schlesinger, 1973), The Personal President – Power Invested, Promise Unfullfilled (Theodore Lowi, 1985), Presidency by Plebiscite (Craig A. Rimerman, 1993).
O caso dos visitantes estrangeiros é mais facilmente compreensível. Turistas raramente viajam a países pobres ou perigosos. Visitam países ricos, nos quais possam se esbaldar fazendo compras, seguros ou bem cuidados, que lhes propiciem amplas possibilidades de lazer. Sabendo que são países pobres e violentos, pouquíssimos vão à Bolívia ou vêm ao Brasil, e mesmo os que viajam aos Estados Unidos evitam bairros sabidamente marcados por conflitos raciais ou riots (ataques violentos em larga escala), como o de Watts (Los Angeles) de 1965 ou o de Detroit de 1967.
Na mais que notória simbiose entre racismo e violência, não há como esquecer o assassinato de um homem negro, George Floyd, por um policial branco, Derek Chauvin, que sufocou Floyd sob sua bota durante quase 10 minutos.
Este exemplo decorre de uma longa história de racismo e fanatismo. Remonta aos tempos da Ku Klux Klan, aquele bando de encapuzados ridículos que não se cansava de assassinar negros e de incendiar igrejas, principalmente as batistas, que se empenhavam em lhes dar proteção. No Michigan, na localidade chamada Wayne County, a extrema direita não encarnava apenas o racismo, mas também o antintelectualismo, atacando justamente um ponto do qual todo americano deveria se orgulhar: o melhor sistema de ensino universitário do mundo. Pelo menos 15 das melhores universidades do Primeiro Mundo têm sede nos Estados Unidos. Cabe indagar se foi de caso pensado que o atual inquilino da Casa Branca escolheu como alvo de suas agressões a icônica Universidade Harvard.
O duplo viés (doméstico e estrangeiro) a que me referi explica uma parte da vasta ignorância a respeito da sociedade americana, do padrão raivoso de conflito que nela periodicamente se manifesta e, em particular, de sua receptividade a um gênero de populismo especialmente virulento. Um bom exemplo é a própria Guerra Civil de 1861-1865. O número de presidentes assassinados (quatro) também impress i ona: Abraham Li ncol n (1865); James Garfield (1881); William McKinley (1901); e John F. Kennedy (1963), sem esquecer o número de líderes da melhor estirpe, como Martin Luther King Jr. (1968), atingido por um tiro na sacada de um hotel em Memphis, Tennessee, e Robert Kennedy (1968), este tendo antes exercido a Procuradoria-Geral dos Estados Unidos.
Claro, assim como há pontos baixos, também os há altos. O ponto forte do sistema é, sem dúvida, o Judiciário (o que, paradoxalmente, explica por que o país contabiliza, em números absolutos, a maior população carcerária do mundo). Pelo lado positivo, basta lembrar que ele mandou prender (no dia 14/5/2011), sob acusação de assédio sexual no hotel de Nova York onde se hospedara, o francês Dominique Strauss-Kahn, ex-presidente do Fundo Monetário Internacional, mandando retirá-lo do avião em que já embarcara.
Mas nem tudo é tão admirável. Este ano, a Justiça admitiu a eleição e a consequente posse do sr. Trump na presidência mesmo após ele ser condenado por falsificar registros financeiros para ocultar pagamento feito à ex-atriz pornô Stormy Daniels, e tendo, no mínimo, meia dúzia de indiciamentos por outras condutas. Anteriormente, em 2016, o processo eleitoral fora regido pelo inacreditável arcaísmo do Colégio Eleitoral, graças ao qual Trump chegou à presidência, embora sua adversária, Hillary Clinton, tenha granjeado a maioria dos votos populares.
Em se tratando de Donald Trump, tudo o que até aqui foi dito ainda é pouco. E continua a ser pouco mesmo com o acréscimo de sua macabra parceria com Vladimir Putin, cujo currículo tem como principal destaque seus anos de aprendizado na KGB. Isso porque o risco de o sr. Putin detonar uma de suas 6 mil bombas atômicas é relativamente pequeno. Nem ele deve estar próximo de tamanha alucinação. O risco de o sr. Trump detonar a organização econômica mundial não é pequeno. Basta ver que ele se dispõe a começar por seu próprio país.
O enigma é como aquela gente conseguiu condensar todos os defeitos do país num só indivíduo – Donald Trump – e, em seguida, elevar o resultado à enésima potência. Para ser bem compreendido, tal enigma requer algumas indagações complementares. A que defeitos estamos nos referindo? Por que não os percebemos com a devida antecedência? No que toca aos americanos, muitas respostas podem ser cogitadas. Desde o aparecimento, em 1885, do livro Congressional Government, de Woodrow Wilson, os americanos continuaram a louvar as qualidades de seus dois grandes partidos – o Democrata e o Republicano – não se dando conta de que a quase totalidade dos livros sobre o governo federal publicados no último meio século carrega títulos como Presidential Power (R. Neustadt, 1960), The Imperial Presidency (Arthur Schlesinger, 1973), The Personal President – Power Invested, Promise Unfullfilled (Theodore Lowi, 1985), Presidency by Plebiscite (Craig A. Rimerman, 1993).
O caso dos visitantes estrangeiros é mais facilmente compreensível. Turistas raramente viajam a países pobres ou perigosos. Visitam países ricos, nos quais possam se esbaldar fazendo compras, seguros ou bem cuidados, que lhes propiciem amplas possibilidades de lazer. Sabendo que são países pobres e violentos, pouquíssimos vão à Bolívia ou vêm ao Brasil, e mesmo os que viajam aos Estados Unidos evitam bairros sabidamente marcados por conflitos raciais ou riots (ataques violentos em larga escala), como o de Watts (Los Angeles) de 1965 ou o de Detroit de 1967.
Na mais que notória simbiose entre racismo e violência, não há como esquecer o assassinato de um homem negro, George Floyd, por um policial branco, Derek Chauvin, que sufocou Floyd sob sua bota durante quase 10 minutos.
Este exemplo decorre de uma longa história de racismo e fanatismo. Remonta aos tempos da Ku Klux Klan, aquele bando de encapuzados ridículos que não se cansava de assassinar negros e de incendiar igrejas, principalmente as batistas, que se empenhavam em lhes dar proteção. No Michigan, na localidade chamada Wayne County, a extrema direita não encarnava apenas o racismo, mas também o antintelectualismo, atacando justamente um ponto do qual todo americano deveria se orgulhar: o melhor sistema de ensino universitário do mundo. Pelo menos 15 das melhores universidades do Primeiro Mundo têm sede nos Estados Unidos. Cabe indagar se foi de caso pensado que o atual inquilino da Casa Branca escolheu como alvo de suas agressões a icônica Universidade Harvard.
O duplo viés (doméstico e estrangeiro) a que me referi explica uma parte da vasta ignorância a respeito da sociedade americana, do padrão raivoso de conflito que nela periodicamente se manifesta e, em particular, de sua receptividade a um gênero de populismo especialmente virulento. Um bom exemplo é a própria Guerra Civil de 1861-1865. O número de presidentes assassinados (quatro) também impress i ona: Abraham Li ncol n (1865); James Garfield (1881); William McKinley (1901); e John F. Kennedy (1963), sem esquecer o número de líderes da melhor estirpe, como Martin Luther King Jr. (1968), atingido por um tiro na sacada de um hotel em Memphis, Tennessee, e Robert Kennedy (1968), este tendo antes exercido a Procuradoria-Geral dos Estados Unidos.
Claro, assim como há pontos baixos, também os há altos. O ponto forte do sistema é, sem dúvida, o Judiciário (o que, paradoxalmente, explica por que o país contabiliza, em números absolutos, a maior população carcerária do mundo). Pelo lado positivo, basta lembrar que ele mandou prender (no dia 14/5/2011), sob acusação de assédio sexual no hotel de Nova York onde se hospedara, o francês Dominique Strauss-Kahn, ex-presidente do Fundo Monetário Internacional, mandando retirá-lo do avião em que já embarcara.
Mas nem tudo é tão admirável. Este ano, a Justiça admitiu a eleição e a consequente posse do sr. Trump na presidência mesmo após ele ser condenado por falsificar registros financeiros para ocultar pagamento feito à ex-atriz pornô Stormy Daniels, e tendo, no mínimo, meia dúzia de indiciamentos por outras condutas. Anteriormente, em 2016, o processo eleitoral fora regido pelo inacreditável arcaísmo do Colégio Eleitoral, graças ao qual Trump chegou à presidência, embora sua adversária, Hillary Clinton, tenha granjeado a maioria dos votos populares.
Em se tratando de Donald Trump, tudo o que até aqui foi dito ainda é pouco. E continua a ser pouco mesmo com o acréscimo de sua macabra parceria com Vladimir Putin, cujo currículo tem como principal destaque seus anos de aprendizado na KGB. Isso porque o risco de o sr. Putin detonar uma de suas 6 mil bombas atômicas é relativamente pequeno. Nem ele deve estar próximo de tamanha alucinação. O risco de o sr. Trump detonar a organização econômica mundial não é pequeno. Basta ver que ele se dispõe a começar por seu próprio país.
Estamos na sociedade da informação
Estamos na sociedade da informação. Somos autênticos informívoros, necessitamos de informação para sobreviver, como necessitamos de alimento, calor ou contato social. Nas ciências da comunicação, considera-se que informação é tudo aquilo que reduz a incerteza de um sistema. Nesse sentido, todos nós nos alimentamos de informação que nos permite não apenas prever como também controlar os acontecimentos de nosso meio.
Previsão e controle são duas das funções fundamentais da aprendizagem, inclusive nos organismos mais simples.
Na vida social, a informação é ainda mais essencial porque os fenômenos que nos rodeiam são complexos e cambiantes e, portanto, ainda mais incertos do que os que afetam os outros seres vivos. A incerteza é ainda maior na sociedade atual, como consequência da descentração do conhecimento e dos vertiginosos ritmos de mudança em todos os setores da vida.
Um traço característico de nossa cultura da aprendizagem é que, em vez de ter de buscar ativamente a informação com que alimentar nossa ânsia de previsão e controle, estamos sendo abarrotados, superalimentados de informação, na maioria das vezes em formato fast food. Sofremos uma certa obesidade informativa, consequência de uma dieta pouco equilibrada.
Juan Ignácio Pozo
Previsão e controle são duas das funções fundamentais da aprendizagem, inclusive nos organismos mais simples.
Na vida social, a informação é ainda mais essencial porque os fenômenos que nos rodeiam são complexos e cambiantes e, portanto, ainda mais incertos do que os que afetam os outros seres vivos. A incerteza é ainda maior na sociedade atual, como consequência da descentração do conhecimento e dos vertiginosos ritmos de mudança em todos os setores da vida.
Um traço característico de nossa cultura da aprendizagem é que, em vez de ter de buscar ativamente a informação com que alimentar nossa ânsia de previsão e controle, estamos sendo abarrotados, superalimentados de informação, na maioria das vezes em formato fast food. Sofremos uma certa obesidade informativa, consequência de uma dieta pouco equilibrada.
Juan Ignácio Pozo
Como ultradireita está dividindo a Alemanha
Especialistas alertam: para onde se olha, as trincheiras estão aumentando. Nos Estados Unidos, Donald Trump divide um país e seus aliados democráticos mundo afora; na Alemanha, quem faz isso é o partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD). E se a Europa está dividida sobre como lidar com a migração, o mundo inteiro não chega a um acordo sobre o que fazer a respeito das mudanças climáticas.
Vivemos tempos polarizados, e os abismos entre diferentes grupos sociais – e até entre países inteiros – estão se aprofundando. Ao mesmo tempo, a lista de desafios que exigem ação conjunta só cresce. Guerras, conflitos, migração, comércio, clima, questões sociais e problemas relacionados ao progresso tecnológico afetam o mundo todo, independente de onde você estiver e qual lado assumir.
Por muito tempo, as sociedades democráticas tiveram a reputação de serem mais eficazes na resolução de problemas. Partia-se do pressuposto de que, ao enfrentar desafios sociais de maneira aberta e conjunta, a probabilidade de encontrar boas soluções apoiadas por uma ampla maioria seria maior.
Mas em um mundo cada vez mais polarizado, essa reputação foi abalada. A disposição para o compromisso e o consenso diminuiu, e o clima político é marcado por uma intransigência crescente.
O sociólogo Nils Teichler, do Instituto de Pesquisa para a Coesão Social (FGZ) da Universidade de Bremen, na Alemanha, alerta sobre as consequências da polarização. Se grupos sociais se bloqueiam mutuamente, os compromissos políticos se tornam impossíveis, afirma.
"Quanto mais pré-estabelecidas são as ideias em relação a um grupo, e quanto mais as diferenças na simpatia por diferentes grupos se baseiam em características isoladas, maior é o risco para a coesão social", explica.
O que a popularidade da AfD tem a ver com preconceitos na sociedade
Em um estudo recente sobre divisão social, o FGZ descobriu algo interessante: em regiões onde a direita radical é forte, até mesmo pessoas que não votam na AfD tendem a ter mais "pré-conceitos" a respeito de minorias.
Os pesquisadores analisaram a relação entre o sucesso regional da AfD e as simpatias por determinados grupos sociais. "Encontramos indícios de que, em regiões onde a AfD foi particularmente bem-sucedida politicamente, as pessoas têm menos simpatia por grupos desfavorecidos e minorias sociais", afirma Teichler.
As atitudes mais negativas eram, sobretudo, direcionadas a migrantes, muçulmanos, pessoas LGBT+ ou indivíduos com baixo nível educacional. "Ou seja, encontramos sinais de divisão em regiões onde a AfD é mais forte", diz o pesquisador.
Mas o que veio primeiro: a divisão ou a ultradireita?
De acordo com Teichler, os dois fenômenos caminham juntos.
Instrumentalização da imigração
A ultradireita também alerta sobre a divisão social. No entanto, atribui isso a apenas um fator: a migração, a ser resolvida com o fechamento das fronteiras. O presidente dos EUA, Donald Trump, constantemente retrata imigrantes como criminosos e perigosos. A líder da AfD, Alice Weidel, já chamou homens muçulmanos de "homens com facas" e mulheres muçulmanas de "meninas de véu".
Mas não é só a AfD que adota uma linguagem populista. Até mesmo o futuro chanceler da Alemanha, o conservador Friedrich Merz, já se referiu a crianças de famílias de imigrantes como "pequenos paxás", termo que no país tem conotação pejorativa, aludindo a homens orientais que tratam mulheres como suas subordinadas – clara referência a muçulmanos.
"A guinada à direita que estamos vendo no momento afetou quase todos os partidos na Alemanha", analisa Cihan Sinanoglu, chefe do Monitor Nacional de Discriminação e Racismo do Centro Alemão de Pesquisa sobre Integração e Migração (DeZIM).
Sinanoglu afirma ainda que algumas das leis mais restritivas sobre asilo e imigração foram aprovadas com ajuda dos social-democratas, verdes e liberais.
Ele diz que os demais partidos erram ao pensar que conseguirão reconquistar o eleitorado da ultradireita adotando essas políticas restritivas. Fazer isso, critica, não ajuda a combater as políticas racistas da AfD.
"É o que mostra o exemplo do leste alemão, onde há muito menos refugiados e pessoas de origem migratória do que no oeste do país. Ao mesmo tempo, no entanto, é lá que estão os redutos da AfD", pontua o sociólogo.
Sinanoglu defende um debate aberto sobre migração e sobre os limites da sociedade para lidar com isso. No entanto, ele considera um erro político reduzir as divisões na sociedade apenas à questão migratória.
E esse erro cobra um preço alto, sobretudo da comunidade migrante, alerta ele. "Por exemplo, se agora falamos o tempo todo sobre migração irregular, os imigrantes sabem muito bem de quem se está falando nesses debates."
Quase 30% das pessoas que vivem na Alemanha têm o que se chama de "origem migratória", ou seja: vieram do exterior ou são filhos de imigrantes por parte paterna ou materna. Metade dessas pessoas têm cidadania alemã; muitos nasceram no país.
Sinanoglu diz que a sociedade alemã se apega a normas que continuam excluindo os migrantes, mesmo aqueles que já estão na Alemanha há décadas. E o que está acontecendo agora, prossegue ele, é que os migrantes estão sendo simbolicamente despojados de sua cidadania – com amplas consequências sociais. "As pessoas estão se retraindo, vivendo com medo, pensando em emigrar. Isso afeta nossos relacionamentos amorosos, nossas amizades."
Para ele, não há dúvidas de que a ultradireita está impulsionando essa divisão – e as sociedades ocidentais têm sua parcela de culpa nisso, já que os políticos no poder, seja na Alemanha, no Reino Unido, na França ou nos EUA, não estariam enfrentando a verdadeira causa da divisão em suas sociedades: as questões sociais.
Por isso, Sinanoglu defende que é preciso focar em questões concretas, como moradia a preços acessíveis, salários justos e oportunidades reais de ascensão social. "Devemos focar nessas questões sociais em vez de levantar ideais e valores abstratos que jamais serão aplicáveis a muitas partes dessa sociedade", argumenta.
Para ele, é um erro falar sobre coesão social e segurança apenas da ótica da migração. "Estamos falando da segurança de quem? As pessoas que estão falando neste momento sobre segurança e ordem em relação à migração são as mesmas que flexibilizaram o mercado de trabalho, que precarizaram os empregos e que trouxeram a insegurança às vidas das pessoas."
Vivemos tempos polarizados, e os abismos entre diferentes grupos sociais – e até entre países inteiros – estão se aprofundando. Ao mesmo tempo, a lista de desafios que exigem ação conjunta só cresce. Guerras, conflitos, migração, comércio, clima, questões sociais e problemas relacionados ao progresso tecnológico afetam o mundo todo, independente de onde você estiver e qual lado assumir.
Por muito tempo, as sociedades democráticas tiveram a reputação de serem mais eficazes na resolução de problemas. Partia-se do pressuposto de que, ao enfrentar desafios sociais de maneira aberta e conjunta, a probabilidade de encontrar boas soluções apoiadas por uma ampla maioria seria maior.
Mas em um mundo cada vez mais polarizado, essa reputação foi abalada. A disposição para o compromisso e o consenso diminuiu, e o clima político é marcado por uma intransigência crescente.
O sociólogo Nils Teichler, do Instituto de Pesquisa para a Coesão Social (FGZ) da Universidade de Bremen, na Alemanha, alerta sobre as consequências da polarização. Se grupos sociais se bloqueiam mutuamente, os compromissos políticos se tornam impossíveis, afirma.
"Quanto mais pré-estabelecidas são as ideias em relação a um grupo, e quanto mais as diferenças na simpatia por diferentes grupos se baseiam em características isoladas, maior é o risco para a coesão social", explica.
O que a popularidade da AfD tem a ver com preconceitos na sociedade
Em um estudo recente sobre divisão social, o FGZ descobriu algo interessante: em regiões onde a direita radical é forte, até mesmo pessoas que não votam na AfD tendem a ter mais "pré-conceitos" a respeito de minorias.
Os pesquisadores analisaram a relação entre o sucesso regional da AfD e as simpatias por determinados grupos sociais. "Encontramos indícios de que, em regiões onde a AfD foi particularmente bem-sucedida politicamente, as pessoas têm menos simpatia por grupos desfavorecidos e minorias sociais", afirma Teichler.
As atitudes mais negativas eram, sobretudo, direcionadas a migrantes, muçulmanos, pessoas LGBT+ ou indivíduos com baixo nível educacional. "Ou seja, encontramos sinais de divisão em regiões onde a AfD é mais forte", diz o pesquisador.
Mas o que veio primeiro: a divisão ou a ultradireita?
De acordo com Teichler, os dois fenômenos caminham juntos.
Instrumentalização da imigração
A ultradireita também alerta sobre a divisão social. No entanto, atribui isso a apenas um fator: a migração, a ser resolvida com o fechamento das fronteiras. O presidente dos EUA, Donald Trump, constantemente retrata imigrantes como criminosos e perigosos. A líder da AfD, Alice Weidel, já chamou homens muçulmanos de "homens com facas" e mulheres muçulmanas de "meninas de véu".
Mas não é só a AfD que adota uma linguagem populista. Até mesmo o futuro chanceler da Alemanha, o conservador Friedrich Merz, já se referiu a crianças de famílias de imigrantes como "pequenos paxás", termo que no país tem conotação pejorativa, aludindo a homens orientais que tratam mulheres como suas subordinadas – clara referência a muçulmanos.
"A guinada à direita que estamos vendo no momento afetou quase todos os partidos na Alemanha", analisa Cihan Sinanoglu, chefe do Monitor Nacional de Discriminação e Racismo do Centro Alemão de Pesquisa sobre Integração e Migração (DeZIM).
Sinanoglu afirma ainda que algumas das leis mais restritivas sobre asilo e imigração foram aprovadas com ajuda dos social-democratas, verdes e liberais.
Ele diz que os demais partidos erram ao pensar que conseguirão reconquistar o eleitorado da ultradireita adotando essas políticas restritivas. Fazer isso, critica, não ajuda a combater as políticas racistas da AfD.
"É o que mostra o exemplo do leste alemão, onde há muito menos refugiados e pessoas de origem migratória do que no oeste do país. Ao mesmo tempo, no entanto, é lá que estão os redutos da AfD", pontua o sociólogo.
Sinanoglu defende um debate aberto sobre migração e sobre os limites da sociedade para lidar com isso. No entanto, ele considera um erro político reduzir as divisões na sociedade apenas à questão migratória.
E esse erro cobra um preço alto, sobretudo da comunidade migrante, alerta ele. "Por exemplo, se agora falamos o tempo todo sobre migração irregular, os imigrantes sabem muito bem de quem se está falando nesses debates."
Quase 30% das pessoas que vivem na Alemanha têm o que se chama de "origem migratória", ou seja: vieram do exterior ou são filhos de imigrantes por parte paterna ou materna. Metade dessas pessoas têm cidadania alemã; muitos nasceram no país.
Sinanoglu diz que a sociedade alemã se apega a normas que continuam excluindo os migrantes, mesmo aqueles que já estão na Alemanha há décadas. E o que está acontecendo agora, prossegue ele, é que os migrantes estão sendo simbolicamente despojados de sua cidadania – com amplas consequências sociais. "As pessoas estão se retraindo, vivendo com medo, pensando em emigrar. Isso afeta nossos relacionamentos amorosos, nossas amizades."
Para ele, não há dúvidas de que a ultradireita está impulsionando essa divisão – e as sociedades ocidentais têm sua parcela de culpa nisso, já que os políticos no poder, seja na Alemanha, no Reino Unido, na França ou nos EUA, não estariam enfrentando a verdadeira causa da divisão em suas sociedades: as questões sociais.
Por isso, Sinanoglu defende que é preciso focar em questões concretas, como moradia a preços acessíveis, salários justos e oportunidades reais de ascensão social. "Devemos focar nessas questões sociais em vez de levantar ideais e valores abstratos que jamais serão aplicáveis a muitas partes dessa sociedade", argumenta.
Para ele, é um erro falar sobre coesão social e segurança apenas da ótica da migração. "Estamos falando da segurança de quem? As pessoas que estão falando neste momento sobre segurança e ordem em relação à migração são as mesmas que flexibilizaram o mercado de trabalho, que precarizaram os empregos e que trouxeram a insegurança às vidas das pessoas."
O que não está na Internet
O maior erro do nosso tempo é a ideia que tudo está na Internet.
Outro é que quase tudo está na Internet.
O erro não seria grave se não prejudicasse tanto quem acredita nele. Mas prejudica.
Imagine-se que se dizia que, procurando bem, quase tudo o que Portugal tem existe em Lisboa.
Pode não haver tudo o que se colhe e cozinha em Trás-os-Montes, mas, conhecendo bem as vielas de Lisboa, já dá para ficar com uma boa ideia do que é a cozinha transmontana.
Ora, o conteúdo da Internet está para todos os livros e todas as publicações do mundo como Lisboa está para Portugal.
Só não está como Freixo de Espada à Cinta está para Portugal porque há muitos, muitos livros e publicações na Internet que só uma pequeníssima minoria, académica ou endinheirada, pode ler.
Nós apenas podemos saber que existem: a única coisa que podemos consultar é o catálogo, para sabermos o que estamos a perder.
Como a Internet é pequena e rodeada por lixo, as pessoas que tomam a Internet por um todo estão condenadas a consultar as mesmas fontezinhas.
Em Portugal, por exemplo, nota-se perfeitamente que toda a gente vive dos mesmos dois dicionários online e da Wikipedia.
É como se toda a gente tivesse em casa os mesmos dois dicionários, ambos muito abreviados e aleatórios, e a mesma enciclopédia anglo-americana.
É nisto que dão a preguiça e a pressa: na pequenez, na monotonia, na previsibilidade, na falta de estímulo, no conhecimento feito numa cantina do Ikea, em que todos empurram as mesmas almôndegas de alce nos mesmos tabuleiros manchados de mostarda.
Nunca foi tão fácil fugir da manada. Nunca foi tão fácil ser jovem. Basta abrir um livro. Basta entrar numa biblioteca. Basta habituarmo-nos à emoção e ao prazer de procurar e de encontrar.
Por enquanto, a Internet é apenas um meio de transporte. Confiar nela é como confiar no que trazem os correios. Trazem muita coisa gira, mas são um acrescento. Não são um substituto.
Continua a ser preciso ir aos livros.
Outro é que quase tudo está na Internet.
O erro não seria grave se não prejudicasse tanto quem acredita nele. Mas prejudica.
Imagine-se que se dizia que, procurando bem, quase tudo o que Portugal tem existe em Lisboa.
Pode não haver tudo o que se colhe e cozinha em Trás-os-Montes, mas, conhecendo bem as vielas de Lisboa, já dá para ficar com uma boa ideia do que é a cozinha transmontana.
Ora, o conteúdo da Internet está para todos os livros e todas as publicações do mundo como Lisboa está para Portugal.
Só não está como Freixo de Espada à Cinta está para Portugal porque há muitos, muitos livros e publicações na Internet que só uma pequeníssima minoria, académica ou endinheirada, pode ler.
Nós apenas podemos saber que existem: a única coisa que podemos consultar é o catálogo, para sabermos o que estamos a perder.
Como a Internet é pequena e rodeada por lixo, as pessoas que tomam a Internet por um todo estão condenadas a consultar as mesmas fontezinhas.
Em Portugal, por exemplo, nota-se perfeitamente que toda a gente vive dos mesmos dois dicionários online e da Wikipedia.
É como se toda a gente tivesse em casa os mesmos dois dicionários, ambos muito abreviados e aleatórios, e a mesma enciclopédia anglo-americana.
É nisto que dão a preguiça e a pressa: na pequenez, na monotonia, na previsibilidade, na falta de estímulo, no conhecimento feito numa cantina do Ikea, em que todos empurram as mesmas almôndegas de alce nos mesmos tabuleiros manchados de mostarda.
Nunca foi tão fácil fugir da manada. Nunca foi tão fácil ser jovem. Basta abrir um livro. Basta entrar numa biblioteca. Basta habituarmo-nos à emoção e ao prazer de procurar e de encontrar.
Por enquanto, a Internet é apenas um meio de transporte. Confiar nela é como confiar no que trazem os correios. Trazem muita coisa gira, mas são um acrescento. Não são um substituto.
Continua a ser preciso ir aos livros.
Poder, República e corrupção
República: forma de governo em que o Estado prioriza o interesse do povo, sendo a própria população responsável pela eleição de um chefe de Estado que governará por um período limitado. O termo deriva do latim “res publica”, que significa “assunto público”. São definições clássicas. Alguns países avançados, como Reino Unido, Espanha, Suécia e Japão, ainda organizam suas democracias através de monarquias constitucionais. O Rei encarna o Estado e o parlamento traduz o governo nascido da vontade popular. Independente da configuração do sistema, volta e meia, a democracia é confrontada por líderes de viés autoritário ou por ditadores abertos.
A democracia necessita de legitimação permanente pelo voto, pela participação social e pelo desempenho eficaz na economia e na entrega de serviços públicos de qualidade. Quando a população percebe que a dinâmica democrática não está produzindo resultados, as instituições democráticas se enfraquecem.
Um dos principais vetores da crise da democracia contemporânea é a corrupção entranhada nas instituições. Ouçamos o austero ex-presidente do Uruguai José Mujica, pessoa carismática, nutrida por rara sabedoria e que cultivou sempre hábitos simples: “Se misturamos a vontade de ter dinheiro com a política estamos fritos. Quem gosta muito de dinheiro tem que ser tirado da política. É preciso castigar essa pessoa porque ela gosta de dinheiro? Não. Ela tem que ir para o comércio, para a indústria, para onde se multiplica a riqueza”.
Quando saí do movimento estudantil para entrar na vida pública, nos idos de 1982, alguns conceitos eram muito caros: liturgia nos cargos, austeridade pessoal, honestidade, espírito público e sentimento republicano, independente de correntes políticas. Os líderes da redemocratização, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, eram símbolos desses valores. Não há uma mancha em suas trajetórias.
No Império, a democracia brasileira abraçava apenas as elites. A Velha República é identificada com um Estado essencialmente patrimonialista. Na República Nova, as denúncias de corrupção foram permanentes. Durante o regime militar, apesar da ausência de liberdades, houve permanentes denúncias de corrupção.
A Nova República despertou, há 40 anos, esperanças de que a República encontraria a afirmação de sua essência. No entanto, enfrentamos escândalos recorrentes.
Agora, na era pós Lava a Jato, que teve parte de suas decisões anuladas pelo STF por erros processuais e não por julgamento de mérito, várias denúncias e suspeitas abalam a confiança da população nas instituições republicanas. E aí se envolvem todos os poderes e matizes ideológicos.
O presidente Collor, afastado por corrupção, mas inocentado pelo Judiciário, é preso, décadas depois, por reincidência na corrupção. O INSS é mergulhado num mar de corrupção. Denúncias são apuradas por más práticas de alguns parlamentares com suas emendas. Relações incestuosas entre interesses privados e públicos vêm à tona em relação a membros do Judiciário. A população olha tudo isso “bestializada” e com grande desconfiança e pessimismo.
O humorista brasileiro Stanislaw Ponte Preta cunhou uma frase irônica certa vez: “Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”. Não é certamente o caso. A democracia brasileira exige o reestabelecimento radical da ética republicana.
A democracia necessita de legitimação permanente pelo voto, pela participação social e pelo desempenho eficaz na economia e na entrega de serviços públicos de qualidade. Quando a população percebe que a dinâmica democrática não está produzindo resultados, as instituições democráticas se enfraquecem.
Um dos principais vetores da crise da democracia contemporânea é a corrupção entranhada nas instituições. Ouçamos o austero ex-presidente do Uruguai José Mujica, pessoa carismática, nutrida por rara sabedoria e que cultivou sempre hábitos simples: “Se misturamos a vontade de ter dinheiro com a política estamos fritos. Quem gosta muito de dinheiro tem que ser tirado da política. É preciso castigar essa pessoa porque ela gosta de dinheiro? Não. Ela tem que ir para o comércio, para a indústria, para onde se multiplica a riqueza”.
Quando saí do movimento estudantil para entrar na vida pública, nos idos de 1982, alguns conceitos eram muito caros: liturgia nos cargos, austeridade pessoal, honestidade, espírito público e sentimento republicano, independente de correntes políticas. Os líderes da redemocratização, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, eram símbolos desses valores. Não há uma mancha em suas trajetórias.
No Império, a democracia brasileira abraçava apenas as elites. A Velha República é identificada com um Estado essencialmente patrimonialista. Na República Nova, as denúncias de corrupção foram permanentes. Durante o regime militar, apesar da ausência de liberdades, houve permanentes denúncias de corrupção.
A Nova República despertou, há 40 anos, esperanças de que a República encontraria a afirmação de sua essência. No entanto, enfrentamos escândalos recorrentes.
Agora, na era pós Lava a Jato, que teve parte de suas decisões anuladas pelo STF por erros processuais e não por julgamento de mérito, várias denúncias e suspeitas abalam a confiança da população nas instituições republicanas. E aí se envolvem todos os poderes e matizes ideológicos.
O presidente Collor, afastado por corrupção, mas inocentado pelo Judiciário, é preso, décadas depois, por reincidência na corrupção. O INSS é mergulhado num mar de corrupção. Denúncias são apuradas por más práticas de alguns parlamentares com suas emendas. Relações incestuosas entre interesses privados e públicos vêm à tona em relação a membros do Judiciário. A população olha tudo isso “bestializada” e com grande desconfiança e pessimismo.
O humorista brasileiro Stanislaw Ponte Preta cunhou uma frase irônica certa vez: “Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”. Não é certamente o caso. A democracia brasileira exige o reestabelecimento radical da ética republicana.
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