quinta-feira, 4 de dezembro de 2025
País assolado por corrupção institucional, facções, crime empresarial e financeiro
Desde 1995, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) teve seis presidentes. Quatro foram presos, no comando da casa ou no comando de coisas ainda piores, como o ex-governador Sérgio Cabral Filho. Que tenham prendido mais um presidente da Alerj deveria causar surpresa? Ou tédio enojado?
Qualquer leitora de jornais dirá logo que essas perguntas estão erradas, pois não se trata de problema específico da Alerj ou do Rio de Janeiro, embora meus conterrâneos estejam de fato exagerando, por assim dizer. Há mais evidências de que a corrupção está mais disseminada, tolerada, perigosa e, agora, é motivo central de uma das maiores querelas institucionais do Brasil —parlamentares contra Supremo.
A corrupção é cada vez mais sistemática ou organizada em gangues políticas. O exemplo mais recente é o desse Rodrigo Bacellar (União Brasil), que presidia a Alerj. Foi preso nesta quarta pela Polícia Federal porque acusado de prestar serviços a um grupo criminoso, vazando informações a fim de ajudar um comparsa a fugir da polícia, no caso um deputado acusado de ser próximo do Comando Vermelho.
A corrupção é escandalosamente tolerada —basta lembrar o caso das rachadinhas daquela famosa família. Está mais e mais conectada ao dito "crime comum". A corrupção vai além do suspeito de sempre, o Legislativo —vide as investigações de vendas de sentenças e outras negociatas em Tribunais de Justiça e no Superior Tribunal de Justiça.
A corrupção tornou-se problema institucional maior e crônico, por vias indiretas, mas gritantes. Nesta quarta, o ministro Gilmar Mendes, do STF, decidiu que o pedido de impeachment de ministros do Supremo deve partir da Procuradoria-Geral da República —o caso ainda vai para o plenário do tribunal. Se a decisão tem fundamento constitucional é assunto para entendidos. O que importa aqui, agora, é que se trata de mais um capítulo do embate entre STF e Congresso. O Senado reagiu e diz que pode votar emenda constitucional que trate do assunto.
Parlamentares, em particular da direita e da extrema direita, querem cabeças do Supremo. A julgar por outras votações relevantes, a maioria quer aprovar leis que a ajude a fugir da polícia e da Justiça. Vide o caso da PEC da Blindagem. Sim, o Supremo está fora da casinha institucional e politizado de modo indevido faz mais de década. Mas o limite constitucional da atuação do Judiciário é assunto da minoria parlamentar que se ocupa de assuntos públicos sérios.
Faz mais de dois anos, deputados e senadores estão incomodados com as investigações de roubança de emendas parlamentares. A tentativa de "blindagem" piorou com a lambança das emendas e depois de o ministro Flavio Dino elaborar um plano para colocar alguma ordem na casa.
Operações contra o crime organizado e contra o crime empresarial ou financeiro organizado frequentemente passam perto do mundo político: pegam amigos, assessores, parentes, sócios. Já pegaram alguns bagrinhos. Há tubarões nervosos. De qualquer modo, seja qual for o motivo, "político" ou outro, parlamentares querem evitar que a gentalha seja processada ou presa. Deputados da extrema direita fogem do país para escapar da polícia, com a tolerância do Congresso.
É uma nova crise de corrupção institucional, que ocorre quando descobrimos o tamanho das facções e suas relações com empresas e finanças. Pior, pode bem haver laços entre todos esses bandos.
Qualquer leitora de jornais dirá logo que essas perguntas estão erradas, pois não se trata de problema específico da Alerj ou do Rio de Janeiro, embora meus conterrâneos estejam de fato exagerando, por assim dizer. Há mais evidências de que a corrupção está mais disseminada, tolerada, perigosa e, agora, é motivo central de uma das maiores querelas institucionais do Brasil —parlamentares contra Supremo.
A corrupção é cada vez mais sistemática ou organizada em gangues políticas. O exemplo mais recente é o desse Rodrigo Bacellar (União Brasil), que presidia a Alerj. Foi preso nesta quarta pela Polícia Federal porque acusado de prestar serviços a um grupo criminoso, vazando informações a fim de ajudar um comparsa a fugir da polícia, no caso um deputado acusado de ser próximo do Comando Vermelho.
A corrupção é escandalosamente tolerada —basta lembrar o caso das rachadinhas daquela famosa família. Está mais e mais conectada ao dito "crime comum". A corrupção vai além do suspeito de sempre, o Legislativo —vide as investigações de vendas de sentenças e outras negociatas em Tribunais de Justiça e no Superior Tribunal de Justiça.
A corrupção tornou-se problema institucional maior e crônico, por vias indiretas, mas gritantes. Nesta quarta, o ministro Gilmar Mendes, do STF, decidiu que o pedido de impeachment de ministros do Supremo deve partir da Procuradoria-Geral da República —o caso ainda vai para o plenário do tribunal. Se a decisão tem fundamento constitucional é assunto para entendidos. O que importa aqui, agora, é que se trata de mais um capítulo do embate entre STF e Congresso. O Senado reagiu e diz que pode votar emenda constitucional que trate do assunto.
Parlamentares, em particular da direita e da extrema direita, querem cabeças do Supremo. A julgar por outras votações relevantes, a maioria quer aprovar leis que a ajude a fugir da polícia e da Justiça. Vide o caso da PEC da Blindagem. Sim, o Supremo está fora da casinha institucional e politizado de modo indevido faz mais de década. Mas o limite constitucional da atuação do Judiciário é assunto da minoria parlamentar que se ocupa de assuntos públicos sérios.
Faz mais de dois anos, deputados e senadores estão incomodados com as investigações de roubança de emendas parlamentares. A tentativa de "blindagem" piorou com a lambança das emendas e depois de o ministro Flavio Dino elaborar um plano para colocar alguma ordem na casa.
Operações contra o crime organizado e contra o crime empresarial ou financeiro organizado frequentemente passam perto do mundo político: pegam amigos, assessores, parentes, sócios. Já pegaram alguns bagrinhos. Há tubarões nervosos. De qualquer modo, seja qual for o motivo, "político" ou outro, parlamentares querem evitar que a gentalha seja processada ou presa. Deputados da extrema direita fogem do país para escapar da polícia, com a tolerância do Congresso.
É uma nova crise de corrupção institucional, que ocorre quando descobrimos o tamanho das facções e suas relações com empresas e finanças. Pior, pode bem haver laços entre todos esses bandos.
Bolsonaro inesquecível
Há uma semana, escrevi de novo aqui sobre Bolsonaro. Leitores estranharam e me cobraram por ter dito que não falaria mais dele. Mas eu nunca disse bem isso. O que prometi foi que, quando Bolsonaro fosse preso, deixaria de poluir este espaço com seu nome. E só naquela quinta-feira, com o jornal já nas ruas, foi-lhe dada a ordem de cumprimento da pena e Bolsonaro começou a contar com quantos dias se fazem 27 anos e três meses de cadeia.
Outros leitores me atribuíram uma fixação em Bolsonaro. De fato, devo ter escrito umas cem vezes ou mais sobre ele nos últimos sete anos. Mas tinha razão para isso. Bolsonaro, político rasteiro quando deputado —pertencia ao baixo clero do baixo clero—, beneficiou-se de uma trágica convergência política para ganhar a Presidência e se tornar o homem mais perigoso da nossa história republicana. Se chegasse ao segundo mandato, já tinha tudo preparado para eternizar-se no poder, do qual "só sairia morto", como não se cansou de dizer. Em quatro anos no Planalto, dedicou cada hora do dia a esse plano.
Outros leitores comentaram que "está na hora de esquecer Bolsonaro" e que "continuar a falar dele é dar-lhe uma importância que ele não merece". Pois penso exatamente o contrário. Não podemos esquecê-lo nunca. Bolsonaro precisa ser lembrado para sempre a fim de que não surjam novos bolsonaros —assim como as Forças Armadas não podem se esquecer de Augusto Heleno, Braga Netto, Almir Garnier e outros que rebaixaram suas fardas a serviço de alguém que nunca honrara a dele.
A história é a espinha dorsal de um país, daí os regimes autoritários, de direita ou de esquerda, a reescreverem quando se instalam no poder. Todos aprenderam com George Orwell: quem controla o presente controla o passado; quem controla o passado controla o futuro.
Bolsonaro já devia começar a fazer parte do currículo do ensino básico. Os filhos de muitos mortos pela Covid, por exemplo, têm o direito de saber que seus pais morreram porque ele lhes negou a vacina.
Outros leitores me atribuíram uma fixação em Bolsonaro. De fato, devo ter escrito umas cem vezes ou mais sobre ele nos últimos sete anos. Mas tinha razão para isso. Bolsonaro, político rasteiro quando deputado —pertencia ao baixo clero do baixo clero—, beneficiou-se de uma trágica convergência política para ganhar a Presidência e se tornar o homem mais perigoso da nossa história republicana. Se chegasse ao segundo mandato, já tinha tudo preparado para eternizar-se no poder, do qual "só sairia morto", como não se cansou de dizer. Em quatro anos no Planalto, dedicou cada hora do dia a esse plano.
Outros leitores comentaram que "está na hora de esquecer Bolsonaro" e que "continuar a falar dele é dar-lhe uma importância que ele não merece". Pois penso exatamente o contrário. Não podemos esquecê-lo nunca. Bolsonaro precisa ser lembrado para sempre a fim de que não surjam novos bolsonaros —assim como as Forças Armadas não podem se esquecer de Augusto Heleno, Braga Netto, Almir Garnier e outros que rebaixaram suas fardas a serviço de alguém que nunca honrara a dele.
A história é a espinha dorsal de um país, daí os regimes autoritários, de direita ou de esquerda, a reescreverem quando se instalam no poder. Todos aprenderam com George Orwell: quem controla o presente controla o passado; quem controla o passado controla o futuro.
Bolsonaro já devia começar a fazer parte do currículo do ensino básico. Os filhos de muitos mortos pela Covid, por exemplo, têm o direito de saber que seus pais morreram porque ele lhes negou a vacina.
Fazer viver, deixar morrer: a farmacopolítica da existência
A recente decisão das empresas farmacêuticas Dr. Reddy’s e Hetero de disponibilizar o Lenacapavir como profilaxia pré-exposição (PrEP) ao HIV por US$ 40 anuais a partir de 2027 foi recebida com entusiasmo por organizações internacionais de saúde pública. Não sem razão, pois trata-se de um medicamento injetável de altíssima eficácia, aplicado apenas duas vezes por ano, capaz de contribuir na prevenção do HIV para populações que enfrentam estigma, violência, criminalização ou barreiras na adesão medicamentosa. Entretanto, apesar do potencial revolucionário desta tecnologia, o modelo de acesso que vem sendo estruturado tende a intensificar os padrões globais de exclusão que historicamente moldam a resposta à epidemia.
Médicos Sem Fronteiras (MSF), uma das vozes mais respeitadas no campo humanitário, celebrou o acordo, mas advertiu para um paradoxo evidente: os 120 países contemplados no licenciamento incluem muitos territórios de baixa renda, mas deixa de fora países de renda média onde ocorre um quarto das novas infecções globais por HIV. Vale lembrar que o licenciamento foi concedido pela empresa Gilead, que, em última instância, detém o poder de definir quais países que poderão ter acesso aos genéricos.
Também ficam excluídas populações que participaram de ensaios clínicos com o Lenacapavir na América Latina, como o Brasil, a Argentina, o México e o Peru, cenário que reforça uma lógica extrativista em que corpos do Sul global servem como base de pesquisa, mas não como destinatários prioritários dos benefícios produzidos.
Essa contradição evidencia que a disputa em torno do Lenacapavir não é apenas sanitária, mas também econômica e geopolítica. A tecnologia biomédica, quando submetida às lógicas de propriedade intelectual e de rentabilidade corporativa, deixa de ser instrumento de saúde pública e passa a operar como um ativo estratégico circulando em mercados globalmente desiguais. O caso do Lenacapavir, portanto, inscreve-se na longa história de tensões entre ciência e capital, característica dos regimes contemporâneos de inovação farmacêutica.
Segundo modelagem recente do UNAIDS, as metas globais propostas reduzirão apenas 50 mil novas infecções, num universo potencial de 3,8 milhões que poderiam ser evitadas com uma estratégia mais ousada de implementação. Isso ocorre porque os principais compromissos internacionais, como o acordo entre PEPFAR, Gilead e Fundo Global, são limitados em escopo territorial e populacional, e porque sua concepção política prioriza grupos como gestantes e lactantes, enquanto desprioriza populações-chave que já carregam o maior peso da epidemia.
A Gilead, detentora da patente, permanece no centro da crítica. Sua estratégia comercial prioriza o lucro e resguarda mercados de alto poder aquisitivo, enquanto restringe a entrada de genéricos e limita acordos de licenciamento voluntário. O resultado é uma cadeia de oferta que, mesmo ampliada com a participação de empresas indianas, permanece estreita, insuficiente e vulnerável às oscilações do mercado.
Não é apenas uma questão de preço, mas de controle político da tecnologia. O monopólio sobre moléculas inovadoras permite às corporações governar a velocidade, o alcance e as condições de difusão de medicamentos, invertendo a lógica: não é o interesse público que organiza a inovação, mas a inovação que subordina o interesse público às dinâmicas corporativas.
O anúncio do preço de US$ 40 é um avanço, mas insuficiente se considerado o que está em disputa: a possibilidade real de frear a epidemia em escala global. A ciência, aqui, não é o limite. O limite é a política. Deixar grandes populações de fora de um regime de acesso significa consolidar um sistema de saúde internacional seletivo, onde vidas são hierarquizadas por critérios econômicos e geopolíticos.
O caso das Filipinas, citado pela MSF, é emblemático: ofertar Lenacapavir a apenas 2% da população, mas justamente às populações mais expostas, reduziria quase metade das novas infecções. A matemática da saúde pública segue submetida à matemática do lucro.
O sistema classificatório global de renda, utilizado para determinar acesso a genéricos e a acordos de licenciamento, reduz realidades complexas em categorias binárias, perpetuando a colonialidade no campo da saúde global. Ao final, países considerados “ricos demais para receber ajuda”, mas “pobres demais para comprar inovação”, ficam aprisionados em um limbo sanitário e econômico.
É verdade que os países excluídos da licença voluntária da Gilead poderiam recorrer a licença compulsória – portanto, não estariam totalmente reféns do acordo. No entanto, essa seria uma outra batalha, que igualmente depende de vontade política.
Uma estratégia verdadeiramente transformadora exigiria ampliar acordos de licenciamento para toda a América Latina e demais países de renda média; estabelecer mecanismos de transparência nos preços e nos custos de produção; fortalecer pressões multilaterais para flexibilizar patentes em contextos de pandemias e epidemias; garantir participação das populações-chave na formulação das políticas de acesso; e fomentar produção pública e regional de tecnologias biomédicas.
A ciência já demonstrou que o Lenacapavir pode mudar a história da prevenção ao HIV. O que falta agora não é tecnologia, mas decisão política. A saúde global seguirá refém da lógica de mercado enquanto países e organizações não confrontarem a estrutura que transforma bens fundamentais à vida em mercadoria. O desafio, portanto, vai além da PrEP. Trata-se de redefinir o regime global de inovação biomédica e exigir que a vida, e não o lucro, seja o eixo organizador das políticas de saúde.
Médicos Sem Fronteiras (MSF), uma das vozes mais respeitadas no campo humanitário, celebrou o acordo, mas advertiu para um paradoxo evidente: os 120 países contemplados no licenciamento incluem muitos territórios de baixa renda, mas deixa de fora países de renda média onde ocorre um quarto das novas infecções globais por HIV. Vale lembrar que o licenciamento foi concedido pela empresa Gilead, que, em última instância, detém o poder de definir quais países que poderão ter acesso aos genéricos.
Também ficam excluídas populações que participaram de ensaios clínicos com o Lenacapavir na América Latina, como o Brasil, a Argentina, o México e o Peru, cenário que reforça uma lógica extrativista em que corpos do Sul global servem como base de pesquisa, mas não como destinatários prioritários dos benefícios produzidos.
Essa contradição evidencia que a disputa em torno do Lenacapavir não é apenas sanitária, mas também econômica e geopolítica. A tecnologia biomédica, quando submetida às lógicas de propriedade intelectual e de rentabilidade corporativa, deixa de ser instrumento de saúde pública e passa a operar como um ativo estratégico circulando em mercados globalmente desiguais. O caso do Lenacapavir, portanto, inscreve-se na longa história de tensões entre ciência e capital, característica dos regimes contemporâneos de inovação farmacêutica.
Segundo modelagem recente do UNAIDS, as metas globais propostas reduzirão apenas 50 mil novas infecções, num universo potencial de 3,8 milhões que poderiam ser evitadas com uma estratégia mais ousada de implementação. Isso ocorre porque os principais compromissos internacionais, como o acordo entre PEPFAR, Gilead e Fundo Global, são limitados em escopo territorial e populacional, e porque sua concepção política prioriza grupos como gestantes e lactantes, enquanto desprioriza populações-chave que já carregam o maior peso da epidemia.
A Gilead, detentora da patente, permanece no centro da crítica. Sua estratégia comercial prioriza o lucro e resguarda mercados de alto poder aquisitivo, enquanto restringe a entrada de genéricos e limita acordos de licenciamento voluntário. O resultado é uma cadeia de oferta que, mesmo ampliada com a participação de empresas indianas, permanece estreita, insuficiente e vulnerável às oscilações do mercado.
Não é apenas uma questão de preço, mas de controle político da tecnologia. O monopólio sobre moléculas inovadoras permite às corporações governar a velocidade, o alcance e as condições de difusão de medicamentos, invertendo a lógica: não é o interesse público que organiza a inovação, mas a inovação que subordina o interesse público às dinâmicas corporativas.
O caso das Filipinas, citado pela MSF, é emblemático: ofertar Lenacapavir a apenas 2% da população, mas justamente às populações mais expostas, reduziria quase metade das novas infecções. A matemática da saúde pública segue submetida à matemática do lucro.
O sistema classificatório global de renda, utilizado para determinar acesso a genéricos e a acordos de licenciamento, reduz realidades complexas em categorias binárias, perpetuando a colonialidade no campo da saúde global. Ao final, países considerados “ricos demais para receber ajuda”, mas “pobres demais para comprar inovação”, ficam aprisionados em um limbo sanitário e econômico.
É verdade que os países excluídos da licença voluntária da Gilead poderiam recorrer a licença compulsória – portanto, não estariam totalmente reféns do acordo. No entanto, essa seria uma outra batalha, que igualmente depende de vontade política.
Uma estratégia verdadeiramente transformadora exigiria ampliar acordos de licenciamento para toda a América Latina e demais países de renda média; estabelecer mecanismos de transparência nos preços e nos custos de produção; fortalecer pressões multilaterais para flexibilizar patentes em contextos de pandemias e epidemias; garantir participação das populações-chave na formulação das políticas de acesso; e fomentar produção pública e regional de tecnologias biomédicas.
A ciência já demonstrou que o Lenacapavir pode mudar a história da prevenção ao HIV. O que falta agora não é tecnologia, mas decisão política. A saúde global seguirá refém da lógica de mercado enquanto países e organizações não confrontarem a estrutura que transforma bens fundamentais à vida em mercadoria. O desafio, portanto, vai além da PrEP. Trata-se de redefinir o regime global de inovação biomédica e exigir que a vida, e não o lucro, seja o eixo organizador das políticas de saúde.
Estamos a viver ou apenas a sobreviver?
O ritmo da vida moderna tornou-se tão acelerado que muitos de nós já nem o questionamos. Vivemos numa espécie de corrida permanente, em que cada dia começa com urgências e termina com a sensação de que ficou algo por fazer. A produtividade transformou-se numa métrica de valor pessoal e a disponibilidade constante parece ter-se tornado um requisito de sobrevivência, porém, por trás desta normalidade forçada esconde-se um risco cada vez mais evidente, o burnout.
O burnout não é apenas sinónimo de cansaço extremo. É um esgotamento profundo, físico e emocional, que se instala quando ultrapassamos de forma continuada os nossos limites. Surge quando tratamos o descanso como um detalhe dispensável, quando ignoramos a necessidade de parar, quando acreditamos que resistir é sempre a solução. E, no entanto, é justamente esta ideia, a de que aguentar é virtude, que nos empurra para o abismo.
Hoje, qualquer pessoa está vulnerável, a linha que separa dedicação de exaustão tornou-se tão ténue que basta um prolongado período de exigência para a ultrapassarmos sem perceber. A tecnologia ampliou essa fragilidade, estamos sempre alcançáveis, sempre ligados, sempre expostos a estímulos que exigem resposta, a fronteira entre trabalho e vida pessoal dissolveu-se, e com ela dissolveu-se também o espaço para simplesmente existir.
Mais preocupante ainda é que a sociedade continua a glorificar este modo de vida, premia quem nunca falha, quem acumula tarefas, quem está sempre “on”. Raramente valorizamos quem escolhe descansar, quem define limites, quem decide preservar a saúde mental antes de tudo, mas a verdade é que nenhuma carreira, nenhum objetivo e nenhum reconhecimento compensam o desgaste silencioso que se vai acumulando até rebentar.
É, por isso, urgente que repensemos o modo como vivemos, precisamos de recuperar o direito ao ritmo humano, um ritmo que permita pausa, reflexão e cuidado. Precisamos de aceitar que não somos máquinas e de compreender que produtividade sem bem-estar não é progresso, é autodestruição. A ideia de que parar é desperdício deve dar lugar à consciência de que o descanso é parte essencial da vida e não um luxo ocasional.
Viver não pode ser apenas cumprir tarefas, responder a e-mails ou sobreviver ao calendário, viver implica sentir, relacionar-se, estar presente e cuidar de si. Implica reconhecer que o corpo tem limites, que a mente precisa de silêncio e que a felicidade não nasce de uma agenda cheia, mas de uma vida equilibrada. E cuidar de nós não é egoísmo, é responsabilidade. É o gesto que garante que permaneceremos inteiros, saudáveis e capazes de dar o melhor de nós às pessoas e causas que nos importam.
O burnout não é inevitável, mas evitá-lo exige coragem, a coragem de abrandar quando tudo nos empurra para correr, de dizer “basta” quando os limites já foram ultrapassados, de escolher a vida antes que ela se reduza a uma sucessão de obrigações. Talvez o maior desafio do nosso tempo seja justamente este, aprender a viver de forma consciente, recusando a lógica do sacrifício permanente.
Porque, no fim, não se trata de fazer mais, trata-se de viver melhor. E essa escolha, embora difícil, é a única capaz de nos devolver aquilo que a pressa nos tem roubado, a capacidade de sermos verdadeiramente humanos.
O burnout não é apenas sinónimo de cansaço extremo. É um esgotamento profundo, físico e emocional, que se instala quando ultrapassamos de forma continuada os nossos limites. Surge quando tratamos o descanso como um detalhe dispensável, quando ignoramos a necessidade de parar, quando acreditamos que resistir é sempre a solução. E, no entanto, é justamente esta ideia, a de que aguentar é virtude, que nos empurra para o abismo.
Hoje, qualquer pessoa está vulnerável, a linha que separa dedicação de exaustão tornou-se tão ténue que basta um prolongado período de exigência para a ultrapassarmos sem perceber. A tecnologia ampliou essa fragilidade, estamos sempre alcançáveis, sempre ligados, sempre expostos a estímulos que exigem resposta, a fronteira entre trabalho e vida pessoal dissolveu-se, e com ela dissolveu-se também o espaço para simplesmente existir.
Mais preocupante ainda é que a sociedade continua a glorificar este modo de vida, premia quem nunca falha, quem acumula tarefas, quem está sempre “on”. Raramente valorizamos quem escolhe descansar, quem define limites, quem decide preservar a saúde mental antes de tudo, mas a verdade é que nenhuma carreira, nenhum objetivo e nenhum reconhecimento compensam o desgaste silencioso que se vai acumulando até rebentar.
É, por isso, urgente que repensemos o modo como vivemos, precisamos de recuperar o direito ao ritmo humano, um ritmo que permita pausa, reflexão e cuidado. Precisamos de aceitar que não somos máquinas e de compreender que produtividade sem bem-estar não é progresso, é autodestruição. A ideia de que parar é desperdício deve dar lugar à consciência de que o descanso é parte essencial da vida e não um luxo ocasional.
Viver não pode ser apenas cumprir tarefas, responder a e-mails ou sobreviver ao calendário, viver implica sentir, relacionar-se, estar presente e cuidar de si. Implica reconhecer que o corpo tem limites, que a mente precisa de silêncio e que a felicidade não nasce de uma agenda cheia, mas de uma vida equilibrada. E cuidar de nós não é egoísmo, é responsabilidade. É o gesto que garante que permaneceremos inteiros, saudáveis e capazes de dar o melhor de nós às pessoas e causas que nos importam.
O burnout não é inevitável, mas evitá-lo exige coragem, a coragem de abrandar quando tudo nos empurra para correr, de dizer “basta” quando os limites já foram ultrapassados, de escolher a vida antes que ela se reduza a uma sucessão de obrigações. Talvez o maior desafio do nosso tempo seja justamente este, aprender a viver de forma consciente, recusando a lógica do sacrifício permanente.
Porque, no fim, não se trata de fazer mais, trata-se de viver melhor. E essa escolha, embora difícil, é a única capaz de nos devolver aquilo que a pressa nos tem roubado, a capacidade de sermos verdadeiramente humanos.
terça-feira, 2 de dezembro de 2025
Mito?
A imagem do ex-presidente Bolsonaro, em vídeo gravado sobre a violação da tornozeleira eletrônica, é devastadora, fazendo desmoronar sua figura pública. No exercício da Presidência, transmitia a mensagem da masculinidade em motociatas que atravessavam o País, apresentando-se, em casaco de couro, como um mito imbatível, capaz de superar toda e qualquer adversidade. Começou a fraquejar quando a tentativa de golpe se mostrou inviável, dada a intervenção do Alto Comando do Exército, recluindo-se cada vez mais. Após ter se tornado réu, recolheu-se à prisão domiciliar, culminando nessa cena patética de um homem que confessa, abatido, candidamente, para uma agente penitenciária, que violou a tornozeleira eletrônica com um ferro de solda. Ela, inclusive, se dirige a ele como “seu Jair”, sem nenhuma consideração para com sua prerrogativa presidencial.
Mostra essa cena um homem alquebrado, que em nada corresponde à imagem que antanho transmitia. Enseja, isso sim, compaixão. Do ponto de vista estritamente legal, o ministro Alexandre de Moraes tem razão em decretar a sua prisão preventiva, porém poderia ter levado em conta circunstâncias atenuantes, como um eventual surto produzido pela mistura indevida de suas medicações. Seu comportamento não mostra alguém que estivesse arquitetando uma fuga graças a uma vigília preparada por seu filho, 19 horas depois! Não faz sentido. Se há crítica à vigília religiosa, tanto maior deveria ter sido a precaução com o presidente Lula, que teve diariamente vigílias ideológicas, sem nenhuma proibição. O bom senso recomendaria que Bolsonaro permanecesse por suas condições psicológicas e de saúde em prisão domiciliar.
No entanto, desde uma perspectiva política, a questão é outra. Tendo ruído a sua imagem e considerando as condições de sua prisão, incomunicável, não está nem estará em posição de exercer nenhuma liderança. Diria mesmo que não tem nem perfil para isso. Ele se comporta como uma pessoa normal, não como um líder político propriamente dito. Façamos uma comparação histórica, desprovida de juízo moral.
Hitler cresceu na prisão e soube enfrentá-la. Mussolini, em sua ascensão ao poder, superou adversidades. Perto de nós, Lula fez face à prisão com dignidade, com apoio de seus seguidores, cresceu nas dependências da Polícia Federal e virou novamente presidente da República. Bolsonaro, por sua vez, contrasta com essas figuras. Tem uma aversão, aliás justificada, pela prisão, apesar de eventuais ganhos políticos de que poderia usufruir.
O problema que se coloca, então, é o de como o bolsonarismo pode sobreviver sem um líder. O deputado Eduardo Bolsonaro, de seu autoexílio, também patético, declarou, a propósito da escolha de seu irmão Carlos Bolsonaro como candidato a senador por
Santa Catarina, que o bolsonarismo é um “movimento político”. O caso em pauta significa uma intervenção direta nesse Estado, contrariando o governador e lançando impregnações contra duas deputadas, uma federal, Carol de Toni, e outra estadual, Ana Campagnolo. Duas bolsonaristas de estrita observância, que ousaram dizer não a uma tal imposição. Ainda segundo o deputado, deveriam simplesmente obedecer ao “movimento”, dirigido doravante pelo clã familiar, embora não se saiba ao certo quem dirige o clã na atual situação.
Por que, porém, o uso da palavra “movimento”? Significa uma estrutura hierárquica que não admite contestações, sendo que ordens devem ser simplesmente cumpridas. A relação é vertical. No caso de um partido político, diferentemente, há sempre níveis de horizontalidade, com discussões internas, diferentes interesses políticos, líderes divergindo entre si, sem que haja uma estrutura monolítica. Não é o caso de “movimentos”, a exemplo do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, que não admitiam nenhum tipo de crítica interna. Tal tipo de estrutura encontra-se da mesma forma em organizações mafiosas, nas quais a ordem do “padrinho” é incondicionalmente seguida, sob risco de violência física. Basta rever a trilogia Poderoso Chefão.
Acontece, contudo, que a pretensão do deputado Eduardo Bolsonaro é nada mais do que uma pretensão com o intuito de enquadrar o bolsonarismo órfão. Seu outro irmão, o senador Flávio Bolsonaro, dias depois, referendou a sua fala ao declarar que, doravante, seria ele o porta-voz do pai, encarregado de transmitir suas orientações aos diferentes setores estaduais do “movimento”, que deveriam evidentemente ser obedecidas. Ora, imediatamente depois, seu irmão o contestou dizendo que ele não seria o porta-voz exclusivo, visto que ele assumiria igualmente essa função. O clã expõe a disputa interna, rompendo com a ideia mesma de “movimento”, a supor que seus membros estejam dispostos a segui-los, conforme ordens desprovidas de liderança. Isso para não dizer de aliados que nenhum compromisso têm com esse projeto político.
Qual pode bem ser o futuro do bolsonarismo sem líder, submisso às incertezas de um clã que exige apenas obediência incondicional?
Mostra essa cena um homem alquebrado, que em nada corresponde à imagem que antanho transmitia. Enseja, isso sim, compaixão. Do ponto de vista estritamente legal, o ministro Alexandre de Moraes tem razão em decretar a sua prisão preventiva, porém poderia ter levado em conta circunstâncias atenuantes, como um eventual surto produzido pela mistura indevida de suas medicações. Seu comportamento não mostra alguém que estivesse arquitetando uma fuga graças a uma vigília preparada por seu filho, 19 horas depois! Não faz sentido. Se há crítica à vigília religiosa, tanto maior deveria ter sido a precaução com o presidente Lula, que teve diariamente vigílias ideológicas, sem nenhuma proibição. O bom senso recomendaria que Bolsonaro permanecesse por suas condições psicológicas e de saúde em prisão domiciliar.
No entanto, desde uma perspectiva política, a questão é outra. Tendo ruído a sua imagem e considerando as condições de sua prisão, incomunicável, não está nem estará em posição de exercer nenhuma liderança. Diria mesmo que não tem nem perfil para isso. Ele se comporta como uma pessoa normal, não como um líder político propriamente dito. Façamos uma comparação histórica, desprovida de juízo moral.
Hitler cresceu na prisão e soube enfrentá-la. Mussolini, em sua ascensão ao poder, superou adversidades. Perto de nós, Lula fez face à prisão com dignidade, com apoio de seus seguidores, cresceu nas dependências da Polícia Federal e virou novamente presidente da República. Bolsonaro, por sua vez, contrasta com essas figuras. Tem uma aversão, aliás justificada, pela prisão, apesar de eventuais ganhos políticos de que poderia usufruir.
O problema que se coloca, então, é o de como o bolsonarismo pode sobreviver sem um líder. O deputado Eduardo Bolsonaro, de seu autoexílio, também patético, declarou, a propósito da escolha de seu irmão Carlos Bolsonaro como candidato a senador por
Santa Catarina, que o bolsonarismo é um “movimento político”. O caso em pauta significa uma intervenção direta nesse Estado, contrariando o governador e lançando impregnações contra duas deputadas, uma federal, Carol de Toni, e outra estadual, Ana Campagnolo. Duas bolsonaristas de estrita observância, que ousaram dizer não a uma tal imposição. Ainda segundo o deputado, deveriam simplesmente obedecer ao “movimento”, dirigido doravante pelo clã familiar, embora não se saiba ao certo quem dirige o clã na atual situação.
Por que, porém, o uso da palavra “movimento”? Significa uma estrutura hierárquica que não admite contestações, sendo que ordens devem ser simplesmente cumpridas. A relação é vertical. No caso de um partido político, diferentemente, há sempre níveis de horizontalidade, com discussões internas, diferentes interesses políticos, líderes divergindo entre si, sem que haja uma estrutura monolítica. Não é o caso de “movimentos”, a exemplo do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, que não admitiam nenhum tipo de crítica interna. Tal tipo de estrutura encontra-se da mesma forma em organizações mafiosas, nas quais a ordem do “padrinho” é incondicionalmente seguida, sob risco de violência física. Basta rever a trilogia Poderoso Chefão.
Acontece, contudo, que a pretensão do deputado Eduardo Bolsonaro é nada mais do que uma pretensão com o intuito de enquadrar o bolsonarismo órfão. Seu outro irmão, o senador Flávio Bolsonaro, dias depois, referendou a sua fala ao declarar que, doravante, seria ele o porta-voz do pai, encarregado de transmitir suas orientações aos diferentes setores estaduais do “movimento”, que deveriam evidentemente ser obedecidas. Ora, imediatamente depois, seu irmão o contestou dizendo que ele não seria o porta-voz exclusivo, visto que ele assumiria igualmente essa função. O clã expõe a disputa interna, rompendo com a ideia mesma de “movimento”, a supor que seus membros estejam dispostos a segui-los, conforme ordens desprovidas de liderança. Isso para não dizer de aliados que nenhum compromisso têm com esse projeto político.
Qual pode bem ser o futuro do bolsonarismo sem líder, submisso às incertezas de um clã que exige apenas obediência incondicional?
Tornozeleira fala
Quando escrevi aqui que Bolsonaro parecia ouvir vozes, leitores me condenaram. Não direi felizmente, mas agora ele mesmo confessou o fato ao tentar romper a tornozeleira. Acreditou que o aparelho emitisse mensagens — talvez alienígenas. Dá para entender, enfim, a lógica por trás de seus seguidores e de hábitos tão estranhos quanto ajoelhar-se e rezar para um pneu.
Nesse cenário existem dois atores — o ex-presidente e seus simpatizantes radicais. A mão e a luva. O político não existiria sem eles. Suas parvoíces, insultos e preconceitos encontram eco — e voto — numa parcela da população.
O capitão deu rosto ao “tiozão do zap”, o personagem doméstico que repassa fake news e tem opinião até sobre embargos infringentes. O tiozão pode ser o tio, o cunhado ou aquele parente que nunca se interessou por política. Claro que é um comportamento importante, porque traz ao debate público personagens ausentes. Mobiliza.
Desde a vizinhança do golpe de 1964, não se via a movimentação de massas da direita. Passeatas como a Marcha da Família com Deus deixaram de ocorrer até o bolsonarismo. Apenas o campo progressista conseguia reunir multidões — principalmente por ser oposição aos militares. O delírio do líder, que parecia fraqueza, mostrou-se a força motriz para reativar toda uma tradição política adormecida. O “tiozão do zap” ouviu o chamado e foi para a rua.
Com a tentativa do golpe de 2022 desmascarada e condenada, fica um duplo legado. De um lado, o eleitor escolheu mal seu representante. De outro, a democracia mostrou vivacidade. Não foi a primeira vez — em ambos os casos. Nestes 40 anos de vida democrática, passamos por dois impeachments, quatro presidentes presos, sob diferentes acusações, e agora há dois deputados federais foragidos da Justiça. Além de um terceiro boquirroto já à beira de ganhar sua pena. O saldo poderia ser negativo caso o golpe tivesse ocorrido e não houvesse a apuração dos crimes. Nada disso aconteceu. As instituições mostraram-se em atilado estado de prontidão.
Entre os simpatizantes bolsonaristas, a reação foi tímida — por certo envergonhados pelo ato humilhante de meter ferro na tornozeleira. O ex-presidente não criou o preconceito ou a paranoia, mas deu a eles licença para sair do armário e um idioma comum. Ele é menos um líder e mais um sintoma que se tornou catalisador. Muitos ouvem vozes. São sintomas da democracia. Até escolher mal faz parte. E o Brasil escolheu mal repetidas vezes — não só com Bolsonaro.
Se existe uma força institucional que barrou o golpe de direita, há também uma inércia ideológica à esquerda que impede mudanças profundas. Ambos os extremos revelam fanatismos distintos: um reza para pneus, outro para estatais.
Já na redemocratização a população colocou na Presidência a direita, a extrema direita, a centro-esquerda e a esquerda. São sinais de um arcabouço maduro. Houve prevalência do petismo em razão de um líder carismático. E da infelicidade de parte do eleitorado se identificar com ideias como o estatismo e o patrimonialismo lulista. Num país onde se reza para pneus, talvez não seja surpresa que se reze também por estatais deficitárias.
Lula e seus simpatizantes são antiquados e ainda ajoelham pela cartilha econômica do velho partidão de guerra. O empreendedorismo digital não contaminou a maioria da sociedade, principalmente a intelectualidade. O choque de capitalismo defendido por Mário Covas em 1990 (!) encontrou eco apenas no governo FH. Mesmo assim, o campo petista bombardeou as privatizações. Telefonia, bancos estaduais — tudo foi atacado. Agora, olhamos para a lambança do BRB de Ibaneis e de novo lembramos como a política faz mal ao sistema financeiro.
Embora as instituições mostrem vigor — mesmo acossado, o BC liquidou o Master —, o aparelho eleitoral parece cada vez mais corrompido e distorcido. Culpa da classe política, interessada na manutenção de um mecanismo incapaz de representar a população brasileira. É um modelo pensado para afastar a sociedade do bom debate público.
E assim seguimos, um país que consegue prender seus presidentes, mas é incapaz de se livrar de seus piores vícios. As mesmas instituições que silenciam as “vozes” da tornozeleira parecem impotentes para calar a algazarra de um sistema político que grita por uma reforma sempre sufocada. O desafio não é mais salvar a democracia de um colapso — ela já provou sua força. É salvá-la de seu próprio cansaço.
Nesse cenário existem dois atores — o ex-presidente e seus simpatizantes radicais. A mão e a luva. O político não existiria sem eles. Suas parvoíces, insultos e preconceitos encontram eco — e voto — numa parcela da população.
O capitão deu rosto ao “tiozão do zap”, o personagem doméstico que repassa fake news e tem opinião até sobre embargos infringentes. O tiozão pode ser o tio, o cunhado ou aquele parente que nunca se interessou por política. Claro que é um comportamento importante, porque traz ao debate público personagens ausentes. Mobiliza.
Desde a vizinhança do golpe de 1964, não se via a movimentação de massas da direita. Passeatas como a Marcha da Família com Deus deixaram de ocorrer até o bolsonarismo. Apenas o campo progressista conseguia reunir multidões — principalmente por ser oposição aos militares. O delírio do líder, que parecia fraqueza, mostrou-se a força motriz para reativar toda uma tradição política adormecida. O “tiozão do zap” ouviu o chamado e foi para a rua.
Com a tentativa do golpe de 2022 desmascarada e condenada, fica um duplo legado. De um lado, o eleitor escolheu mal seu representante. De outro, a democracia mostrou vivacidade. Não foi a primeira vez — em ambos os casos. Nestes 40 anos de vida democrática, passamos por dois impeachments, quatro presidentes presos, sob diferentes acusações, e agora há dois deputados federais foragidos da Justiça. Além de um terceiro boquirroto já à beira de ganhar sua pena. O saldo poderia ser negativo caso o golpe tivesse ocorrido e não houvesse a apuração dos crimes. Nada disso aconteceu. As instituições mostraram-se em atilado estado de prontidão.
Entre os simpatizantes bolsonaristas, a reação foi tímida — por certo envergonhados pelo ato humilhante de meter ferro na tornozeleira. O ex-presidente não criou o preconceito ou a paranoia, mas deu a eles licença para sair do armário e um idioma comum. Ele é menos um líder e mais um sintoma que se tornou catalisador. Muitos ouvem vozes. São sintomas da democracia. Até escolher mal faz parte. E o Brasil escolheu mal repetidas vezes — não só com Bolsonaro.
Se existe uma força institucional que barrou o golpe de direita, há também uma inércia ideológica à esquerda que impede mudanças profundas. Ambos os extremos revelam fanatismos distintos: um reza para pneus, outro para estatais.
Já na redemocratização a população colocou na Presidência a direita, a extrema direita, a centro-esquerda e a esquerda. São sinais de um arcabouço maduro. Houve prevalência do petismo em razão de um líder carismático. E da infelicidade de parte do eleitorado se identificar com ideias como o estatismo e o patrimonialismo lulista. Num país onde se reza para pneus, talvez não seja surpresa que se reze também por estatais deficitárias.
Lula e seus simpatizantes são antiquados e ainda ajoelham pela cartilha econômica do velho partidão de guerra. O empreendedorismo digital não contaminou a maioria da sociedade, principalmente a intelectualidade. O choque de capitalismo defendido por Mário Covas em 1990 (!) encontrou eco apenas no governo FH. Mesmo assim, o campo petista bombardeou as privatizações. Telefonia, bancos estaduais — tudo foi atacado. Agora, olhamos para a lambança do BRB de Ibaneis e de novo lembramos como a política faz mal ao sistema financeiro.
Embora as instituições mostrem vigor — mesmo acossado, o BC liquidou o Master —, o aparelho eleitoral parece cada vez mais corrompido e distorcido. Culpa da classe política, interessada na manutenção de um mecanismo incapaz de representar a população brasileira. É um modelo pensado para afastar a sociedade do bom debate público.
E assim seguimos, um país que consegue prender seus presidentes, mas é incapaz de se livrar de seus piores vícios. As mesmas instituições que silenciam as “vozes” da tornozeleira parecem impotentes para calar a algazarra de um sistema político que grita por uma reforma sempre sufocada. O desafio não é mais salvar a democracia de um colapso — ela já provou sua força. É salvá-la de seu próprio cansaço.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil
“Se todos quisermos, poderemos fazer deste país uma grande nação. Vamos fazê-la”
Joaquim José da Silva Xavier
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil uma vez que apresentamos quase quarenta e cinco mil assassinatos por ano.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando os dados apontam que existem cerca de trinta e cinco mil acidentes fatais de trânsito anualmente.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, entre as 20 cidades mais perigosas do mundo, duas são brasileiras, a saber, Rio de Janeiro e São Paulo.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando duplicamos, em 15 anos, se tanto, o número de pessoas morando em favelas, hoje em torno de 16 milhões de brasileiros.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando as autoridades que deveriam zelar pela Educação das nossas crianças e dos nossos jovens consideram que seja possível passar de ano nas escolas públicas em determinados estados da Federação tendo o aluno levado bomba em até seis matérias.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando a mídia, com frequência cada vez mais assustadora, enaltece artistas e criadores - se aceitamos esses termos - de qualidade um tanto quanto duvidosa, reduzindo a atividade cultural a uma mera questão de celebridade.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando a redemocratização política, que suscitou tantas esperanças em 1985, acabou resultando em quatro presidentes da República presos, em dois deles sacados do poder por impeachment e em outro que golpeou a Constituição Cidadã de 1988 para se reeleger aos quarenta e quatro minutos do segundo tempo.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando o sistema financeiro produz um escândalo de bilhões e bilhões de reais quase que mensalmente.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando o sistema de saúde revela que cerca de meio milhão de cidadãos são afastados, anualmente, das atividades de trabalho, por motivos de ordem mental.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando cinco milhões de pessoas deixam o país, legalmente, em busca de outra vida no exterior.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil para registrar, em apenas uma década, quase sete milhões de acidentes de trabalho.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, em apenas seis anos (isto é, entre 2019 e 2024) desmatamos uma área de quase dois milhões de hectares. Para efeito de comparação, o Nordeste inteiro possui cerca de um milhão e meio de hectares.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, entre as dez cidades mais barulhentas do mundo, uma delas é brasileira, São Paulo, a sétima no ranking.
Por tudo isso eu pergunto, já que não adianta tapar o sol com a peneira: o que está acontecendo com o Brasil? Eu gostaria de saber.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil uma vez que apresentamos quase quarenta e cinco mil assassinatos por ano.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando os dados apontam que existem cerca de trinta e cinco mil acidentes fatais de trânsito anualmente.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, entre as 20 cidades mais perigosas do mundo, duas são brasileiras, a saber, Rio de Janeiro e São Paulo.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando duplicamos, em 15 anos, se tanto, o número de pessoas morando em favelas, hoje em torno de 16 milhões de brasileiros.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando as autoridades que deveriam zelar pela Educação das nossas crianças e dos nossos jovens consideram que seja possível passar de ano nas escolas públicas em determinados estados da Federação tendo o aluno levado bomba em até seis matérias.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando a mídia, com frequência cada vez mais assustadora, enaltece artistas e criadores - se aceitamos esses termos - de qualidade um tanto quanto duvidosa, reduzindo a atividade cultural a uma mera questão de celebridade.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando a redemocratização política, que suscitou tantas esperanças em 1985, acabou resultando em quatro presidentes da República presos, em dois deles sacados do poder por impeachment e em outro que golpeou a Constituição Cidadã de 1988 para se reeleger aos quarenta e quatro minutos do segundo tempo.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando o sistema financeiro produz um escândalo de bilhões e bilhões de reais quase que mensalmente.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando o sistema de saúde revela que cerca de meio milhão de cidadãos são afastados, anualmente, das atividades de trabalho, por motivos de ordem mental.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando cinco milhões de pessoas deixam o país, legalmente, em busca de outra vida no exterior.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil para registrar, em apenas uma década, quase sete milhões de acidentes de trabalho.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, em apenas seis anos (isto é, entre 2019 e 2024) desmatamos uma área de quase dois milhões de hectares. Para efeito de comparação, o Nordeste inteiro possui cerca de um milhão e meio de hectares.
Eu gostaria de saber o que está acontecendo com o Brasil quando, entre as dez cidades mais barulhentas do mundo, uma delas é brasileira, São Paulo, a sétima no ranking.
Por tudo isso eu pergunto, já que não adianta tapar o sol com a peneira: o que está acontecendo com o Brasil? Eu gostaria de saber.
A geração Z vive pior do que os pais?
Postagens que ironizam o comportamento dos jovens da geração Z têm se acumulado nas redes sociais, conforme essa faixa, formada por quem nasceu entre 1997 e 2010, tem chegado à idade adulta e ingressado no mercado de trabalho. Não é incomum que a convivência com indivíduos de outras faixas etárias leve a um choque geracional.
Mas a geração Z, que no Brasil soma 48,8 milhões de pessoas (23,2% da população), também cresceu em meio a instabilidades políticas, econômicas e sociais. Em 2008, o Brasil enfrentou uma recessão, em 2013 os protestos de junho alteraram as forças políticas no poder, culminando com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Depois, veio a pandemia de covid-19, somada à inflação.
Para a pesquisadora da FGV Social, Janaína Feijó, "essa geração tem sim uma dificuldade adicional na hora de adquirir bens e serviços, que são uma medida da qualidade de vida do indivíduo". Ela explica que nas últimas décadas o reajuste nos salários não acompanhou a alta no custo de vida.
Essas condições desfavoráveis contribuíram para moldar o comportamento dessa geração que é menos idealista e mais cautelosa em relação ao consumo. A consultoria McKinsey avaliou o comportamento da geração Z e aponta que esse grupo associa compra a uma expressão da própria autenticidade e valores pessoais. Esse grupo valoriza a fluidez, inclusive de gênero e crença, ao contrário das gerações anteriores.
Assim, compromissos de longo prazo, como a compra de imóvel ou a formação de uma família, são adiados tanto por conta das preferências pessoais quanto por causa de condições econômicas. "A geração Z busca por mais experiências, não necessariamente por manter ativos e eventualmente patrimônio, tal qual uma geração de 30, 40 anos atrás, que almejava conseguir a casa própria e um emprego com estabilidade", afirma o sócio da consultoria Delloite, Marcos Olliver.
O levantamento anual da Deloitte demonstrou as principais preocupações da geração Z no Brasil: custo de vida (34%), desemprego (25%), mudança climática (24%), saúde mental (22%) e segurança e criminalidade (18%).
Quando estavam na juventude, os integrantes das gerações X (1965 a 1980) e Y (1981 a 1996) também enfrentaram dificuldades: hiperinflação , confisco de poupança, mudança do regime da ditadura militar para a democracia, além de guerras e conflitos. No entanto, os jovens de hoje idealizam esse passado quando comparam com sua própria realidade.
No entanto, essa impressão ignora avanços dos quais os jovens atualmente usufruem: o nível de desemprego é o menor da série histórica (5,6%, segundo o IBGE) e a qualificação se tornou mais acessível (um terço dos alunos que terminam o ensino médio vão para a graduação). Houve ainda o aumento na proporção de mulheres e pessoas negras nas universidades e nas carreiras.
"Mas tudo isso fez com que a concorrência também aumentasse, e o jovem sentiu a pressão por se destacar", pondera Feijó. "Os jovens precisam ter habilidade socioemocionais exigidas pelos empregadores, mas por não ter experiência, não conseguem ter todos esses atributos e não conseguem entrar no mercado de trabalho de forma efetiva."
O estilo de vida também contribui para a sensação de piora nas condições gerais. Nos últimos 10 anos, o consumo de ultraprocessados aumentou 5,5% entre a população brasileira, segundo a Universidade de São Paulo (USP), 84% dos jovens são sedentários (IBGE) e 66% dos brasileiros têm dificuldade para dormir, de acordo com pesquisa publicada na revista Sleep Epidemiology. Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que até 21% dos jovens de 13 a 29 anos se sentem solitários com frequência.
"Perdeu-se o convívio em espaços reais e as práticas coletivas, tínhamos vizinhanças mais ativas que ofereciam de diferentes formas uma rede de apoio mais sólida e com contornos mais delimitados", ressalta a psicóloga e professora da USP, Ana Barros. Ela diz que a soma desses fatores leva à deterioração da saúde mental.
Cerca de 40% das mulheres e 29% dos homens da geração Z afirmaram sofrer de depressão em 2024, entre os integrantes da geração X essa proporção foi de 32% e 25%, respectivamente, e na Y, de 38% e 31%. Os dados sobre brasileiros são da pesquisa World Mental Health Day, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O comprometimento do senso de comunidade também está relacionado ao uso das redes sociais. Enquanto nativa digital, a geração Z cresceu seguindo o ritmo dessas plataformas, que favorecem as conexões virtuais e o isolamento, e comprometem o desenvolvimento de habilidades sociais dos jovens enquanto amadurecem.
"A tecnologia mudou completamente as relações sociais, a forma como experimentamos e construímos nossa subjetividade e o contato com o outro. Hoje a subjetivação é feita na lógica da visibilidade e espelhamento imediatos", afirma a psicóloga Ana Barros. "Isso gera uma necessidade de validação externa muito instantânea, com uma pressão constante por corresponder a padrões e expectativas que levam a sentimentos de muita angústia e sensação de inadequação."
Apesar da piora de indicadores, o consultor Marcos Olliver aponta que a saúde mental se tornou uma prioridade, o que avalia como positivo. "Para as outras gerações, não havia tanto a preocupação com a questão de qualidade de vida ou de bem-estar". Cerca de 13% dos brasileiros fazem terapia e 15% tomam remédios para tratar questões psiquiátricas, aponta pesquisa da Vida LinkedIn. Para 41,6%, saúde mental é uma das prioridades.
Barros afirma que esse movimento é um ponto de virada importante. "Isso indica que apesar das pressões inéditas que os jovens enfrentam, eles também desenvolvem estratégias próprias da sua época, como o próprio uso das redes sociais para formar comunidades virtuais e compartilhar o que sentem."
Em nome desse bem-estar, eles priorizam a vida privada em relação ao trabalho, e estão menos dispostos a se submeter a condições exaustivas: 56,2% dos jovens almejam vagas com possibilidade de trabalho remoto e horários flexíveis, de acordo com levantamento da Infojobs. Outros 71,6% disseram que deixariam os cargos se o ambiente fosse tóxico ou o trabalho estiver desalinhado com seus valores.
A classificação em gerações não é um consenso científico. Uma vez que foca nas diferenças e não nas convergências entre gerações, essas categorias fomentam a ideia de que há um choque entre elas, e servem de material para memes, além de refletir o pensamento de uma classe média alta, e não do grupo como um todo.
Feijó assinala que pessoas com níveis de renda e educação diferentes, têm comportamentos distintos, mesmo dentro da mesma geração.
"Geralmente, a população preta e parda tem esses sonhos materiais muito mais latentes do que a classe mais de renda mais elevada, composta majoritariamente por brancos ou amarelos. Por isso, o sonho da casa própria ainda é comum entre os mais pobres, enquanto os mais ricos já conseguem vislumbrar outras oportunidades, como ter um negócio e investir. Então, os sonhos são diferentes, mas os desafios permanecem."
Mas a geração Z, que no Brasil soma 48,8 milhões de pessoas (23,2% da população), também cresceu em meio a instabilidades políticas, econômicas e sociais. Em 2008, o Brasil enfrentou uma recessão, em 2013 os protestos de junho alteraram as forças políticas no poder, culminando com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Depois, veio a pandemia de covid-19, somada à inflação.
Para a pesquisadora da FGV Social, Janaína Feijó, "essa geração tem sim uma dificuldade adicional na hora de adquirir bens e serviços, que são uma medida da qualidade de vida do indivíduo". Ela explica que nas últimas décadas o reajuste nos salários não acompanhou a alta no custo de vida.
Essas condições desfavoráveis contribuíram para moldar o comportamento dessa geração que é menos idealista e mais cautelosa em relação ao consumo. A consultoria McKinsey avaliou o comportamento da geração Z e aponta que esse grupo associa compra a uma expressão da própria autenticidade e valores pessoais. Esse grupo valoriza a fluidez, inclusive de gênero e crença, ao contrário das gerações anteriores.
Assim, compromissos de longo prazo, como a compra de imóvel ou a formação de uma família, são adiados tanto por conta das preferências pessoais quanto por causa de condições econômicas. "A geração Z busca por mais experiências, não necessariamente por manter ativos e eventualmente patrimônio, tal qual uma geração de 30, 40 anos atrás, que almejava conseguir a casa própria e um emprego com estabilidade", afirma o sócio da consultoria Delloite, Marcos Olliver.
O levantamento anual da Deloitte demonstrou as principais preocupações da geração Z no Brasil: custo de vida (34%), desemprego (25%), mudança climática (24%), saúde mental (22%) e segurança e criminalidade (18%).
Quando estavam na juventude, os integrantes das gerações X (1965 a 1980) e Y (1981 a 1996) também enfrentaram dificuldades: hiperinflação , confisco de poupança, mudança do regime da ditadura militar para a democracia, além de guerras e conflitos. No entanto, os jovens de hoje idealizam esse passado quando comparam com sua própria realidade.
No entanto, essa impressão ignora avanços dos quais os jovens atualmente usufruem: o nível de desemprego é o menor da série histórica (5,6%, segundo o IBGE) e a qualificação se tornou mais acessível (um terço dos alunos que terminam o ensino médio vão para a graduação). Houve ainda o aumento na proporção de mulheres e pessoas negras nas universidades e nas carreiras.
"Mas tudo isso fez com que a concorrência também aumentasse, e o jovem sentiu a pressão por se destacar", pondera Feijó. "Os jovens precisam ter habilidade socioemocionais exigidas pelos empregadores, mas por não ter experiência, não conseguem ter todos esses atributos e não conseguem entrar no mercado de trabalho de forma efetiva."
O estilo de vida também contribui para a sensação de piora nas condições gerais. Nos últimos 10 anos, o consumo de ultraprocessados aumentou 5,5% entre a população brasileira, segundo a Universidade de São Paulo (USP), 84% dos jovens são sedentários (IBGE) e 66% dos brasileiros têm dificuldade para dormir, de acordo com pesquisa publicada na revista Sleep Epidemiology. Além disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que até 21% dos jovens de 13 a 29 anos se sentem solitários com frequência.
"Perdeu-se o convívio em espaços reais e as práticas coletivas, tínhamos vizinhanças mais ativas que ofereciam de diferentes formas uma rede de apoio mais sólida e com contornos mais delimitados", ressalta a psicóloga e professora da USP, Ana Barros. Ela diz que a soma desses fatores leva à deterioração da saúde mental.
Cerca de 40% das mulheres e 29% dos homens da geração Z afirmaram sofrer de depressão em 2024, entre os integrantes da geração X essa proporção foi de 32% e 25%, respectivamente, e na Y, de 38% e 31%. Os dados sobre brasileiros são da pesquisa World Mental Health Day, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O comprometimento do senso de comunidade também está relacionado ao uso das redes sociais. Enquanto nativa digital, a geração Z cresceu seguindo o ritmo dessas plataformas, que favorecem as conexões virtuais e o isolamento, e comprometem o desenvolvimento de habilidades sociais dos jovens enquanto amadurecem.
"A tecnologia mudou completamente as relações sociais, a forma como experimentamos e construímos nossa subjetividade e o contato com o outro. Hoje a subjetivação é feita na lógica da visibilidade e espelhamento imediatos", afirma a psicóloga Ana Barros. "Isso gera uma necessidade de validação externa muito instantânea, com uma pressão constante por corresponder a padrões e expectativas que levam a sentimentos de muita angústia e sensação de inadequação."
Apesar da piora de indicadores, o consultor Marcos Olliver aponta que a saúde mental se tornou uma prioridade, o que avalia como positivo. "Para as outras gerações, não havia tanto a preocupação com a questão de qualidade de vida ou de bem-estar". Cerca de 13% dos brasileiros fazem terapia e 15% tomam remédios para tratar questões psiquiátricas, aponta pesquisa da Vida LinkedIn. Para 41,6%, saúde mental é uma das prioridades.
Barros afirma que esse movimento é um ponto de virada importante. "Isso indica que apesar das pressões inéditas que os jovens enfrentam, eles também desenvolvem estratégias próprias da sua época, como o próprio uso das redes sociais para formar comunidades virtuais e compartilhar o que sentem."
Em nome desse bem-estar, eles priorizam a vida privada em relação ao trabalho, e estão menos dispostos a se submeter a condições exaustivas: 56,2% dos jovens almejam vagas com possibilidade de trabalho remoto e horários flexíveis, de acordo com levantamento da Infojobs. Outros 71,6% disseram que deixariam os cargos se o ambiente fosse tóxico ou o trabalho estiver desalinhado com seus valores.
A classificação em gerações não é um consenso científico. Uma vez que foca nas diferenças e não nas convergências entre gerações, essas categorias fomentam a ideia de que há um choque entre elas, e servem de material para memes, além de refletir o pensamento de uma classe média alta, e não do grupo como um todo.
Feijó assinala que pessoas com níveis de renda e educação diferentes, têm comportamentos distintos, mesmo dentro da mesma geração.
"Geralmente, a população preta e parda tem esses sonhos materiais muito mais latentes do que a classe mais de renda mais elevada, composta majoritariamente por brancos ou amarelos. Por isso, o sonho da casa própria ainda é comum entre os mais pobres, enquanto os mais ricos já conseguem vislumbrar outras oportunidades, como ter um negócio e investir. Então, os sonhos são diferentes, mas os desafios permanecem."
Chacina entre o racismo e o bolsonarismo
Após compreender a dimensão e a extensão da “operação” no Complexo do Alemão e Penha no Rio de Janeiro (RJ), três conclusões preliminares parecem evidentes: a brutal chacina de 28 de outubro de 2025 tornar-se-á um marco na História contemporânea brasileira e sugere um ponto de viragem; o violento massacre policial teve um óbvio propósito político e tático eleitoral; a horripilante imagem dos corpos enfileirados na Praça São Lucas transportou-me diretamente para Gaza – realidades distintas, mas que nos apontam para a questão central: o racismo/racialização. Para o entendimento desse acontecimento é preciso ter em consideração elementos de longa duração histórica, do ciclo da ditadura empresarial-militar (1964-1985) e o contexto do Rio de Janeiro dos anos 90/2000, bem como as questões da conjuntura. Sinteticamente.
As classes dominantes brasileiras, herdeiras do colonialismo português, não importaram somente “estética e muito pouco além disso”, sobretudo, perpetuaram e atualizaram as lógicas e tecnologias político-raciais de desumanização daqueles considerados “sub-humanos”, “descartáveis”, “sem alma”. Ou seja, os pobres, periféricos, excluídos, subalternos, escravizados, os trabalhadores – as populações negras, não brancas e ameríndias. Portanto, para essa “elite”, que necessita das violentas “estética” e ideologia racistas, como forma de conservação do seu statu quo, estas populações são passíveis de genocídio, tortura, chacinas e massacres. Aos “seus serviços”, das tropas coloniais até à “burocracia armada” do Estado hoje (polícia, policiamento e encarceramento), matam impunemente os “sub-humanos” e sem precisarem de justificar nem serem responsabilizados.
A “lei informal” transmitida no treinamento policial é: identificou algo parecido com um fuzil nas mãos de um morador de comunidade, “atire para matar”, todos ali são suspeitos – mesmo que seja um guarda-chuva. Por outras palavras, é pena de morte. A presunção de inocência só existe para os condomínios dos ricos, onde muitas mães daqueles jovens mortos pela polícia vem trabalhar todos os dias, garantindo o trabalho de reprodução social de setores daquela “elite” que interiorizou e continua a “lucrar” com o racismo. Para se ter uma noção de uma política concreta, nos anos 90 um dos governadores do RJ criou as “gratificações faroeste”, ou seja, quanto mais o polícia matava, mais aumentavam os seus rendimentos mensais; recentemente tentaram recriá-las, mas ficou sem efeito.
As imagens dos mortos enfileirados, seminus, alguns corpos desmembrados – mesmo que fossem todos do Comando Vermelho (CV) – não provocaram uma grande repulsa nacional por aquele morticínio planeado pelo Estado. Isso significa que o que impera é uma generalizada dessensibilização e indiferença social; no caso do Rio de Janeiro, existe até considerável aprovação popular à “operação”. E muitos setores “progressistas” apoiaram e legitimaram o morticínio ou demonstraram uma indignação seletiva e com ressalvas. Isto é, capitularam completamente à lógica política-policial aplicada no país nos últimos 40 anos. O Presidente Lula da Silva, num gesto com preocupações eleitorais e de despolitização, a surfar no dito “populismo penal”, sanciona uma lei que endurece o combate ao “crime organizado” – a ironia é que o idealizador da lei foi o seu algoz, Sérgio Moro – e envia para o Congresso Nacional um “Projeto de Lei Antifação”. Por outras palavras, Lula está a legitimar a forma (fracassada) de combater a violência e a criminalidade no Brasil, as mesmas estratégias punitivistas e repressivas que a direita e a extrema-direita têm como pilar central na sua retórica política e ação governativa. O ponto central é que esse tipo de “consenso” e indiferença só evidencia que na História do Brasil a política de extermínio dos “indesejados”, nas suas diferentes formas, tem sido parte da nossa realidade e do nosso imaginário social, desde a colonização até à conformação do capitalismo brasileiro vigente, seja na sua forma de ditadura empresarial-militar ou representativo-liberal, etc.
Imagino que alguns leitores já estejam a pensar: “Mais um defensor de bandido!” Responderia que não, apenas levo os estudos científicos sobre as formas de combater a economia política do crime e o meu antirracismo às últimas consequências, assim como defendo a vida e a dignidade humana, principalmente daquelas pessoas que ao nascer são “condenadas” à morte, à miséria e à exclusão social pela estrutura racial-capitalista que forma o Brasil na sua História. Questionemo-nos. Qual é a “racionalidade” ou o “cálculo” que justifique um jovem “escolher o mundo do crime”, que lhe reserva uma vida curta (a morte) ou anos privado de liberdade? Não será a falta de perspetiva de futuro? De capacidade de sonhar com uma vida melhor? Que outro mundo é possível? Penso que se começarmos a questionar-nos com perguntas desse tipo e combatendo contra a ideologia racista que aprendemos nas diferentes estruturas sociais e instituições, talvez tenhamos a oportunidade de entender que os “excluídos” no apartheid dos morros são incorporados pela economia política do crime como força de trabalho barata e descartáveis, enquanto os poderosos e verdadeiros chefes do “crime organizado” estão a viver nos condomínios de luxo, quiçá em palácios de governo, ou a trabalhar no centro do mercado financeiro brasileiro (Faria Lima) ou nalgum banco em Londres.
Esse tipo de organização – Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC), etc. – surgiu dentro do sistema carcerário brasileiro, visando reivindicar melhores condições e organizar o espaço prisional, pois as cadeias não “ressocializam” ninguém, são mais uma máquina de moer seres humanos e recrutar pessoas para o crime – o PCC emergiu com maior força após o massacre do Carandiru. Bruno Paes Manso escreveu um recente artigo a diferenciar os dois grupos. O ponto decisivo é que essa economia política do crime (EPC) identificou nessas formas coletivas de organização a possibilidade de transitar do assalto a banco (no caso do CV, 1980), para intermediação e também comercialização de cocaína, que vinha da Colômbia e era despachada dos portos brasileiros para a Europa. Mas como esses grupos poderiam garantir o transporte “seguro” de uma mercadoria tão valiosa, mas ilegalizada? A “solução” foi armarem-se fortemente. Como conseguiriam acesso a armas fabricadas na Alemanha, na Bélgica e nos EUA, entre outros? É nesse contexto que aparece um novo nicho de comercialização no RJ, o das armas com alto potencial de letalidade e imponente; a forma mais rápida e fácil comprar o armamento foi com setores do Estado que têm acesso às armas, as forças de polícia e do Exército. Ou a partir da política de liberalização de armas do governo Bolsonaro. O mesmo vale para as munições.

Às vezes, é preciso relembrar o óbvio. Os fuzis não brotaram do chão nem caíram dos céus nos morros do Rio de Janeiro. Existe todo um complexo, lucrativo e sofisticado comércio de armas e munições que as coloca na mão daqueles jovens pobres e na sua maioria negros. Por que será que a polícia não investiga esse comércio (necromercado)? Não haveria muitos agentes do Estado implicados nesse processo? Grandes empresários “de bem”? Não existe nenhuma relação entre contravenção (“jogo do bicho”), a polícia e as milícias (grupo formado por polícias ou ex-polícias) no RJ?
Outra face desse processo é que a economia política capitalista do crime entendeu que estando fortemente armada permitia ter o controlo dos territórios em que se instalava – evidentemente com a permissão e a organização estatal, uma “regulação armada” dos territórios. Quer dizer, existe uma relação entre o alargamento do CV e a própria expansão urbana da Cidade Maravilhosa.
É a partir desses territórios sob sua regulação armada que a EPC comercializará parte dos estupefacientes que transportava, mas no decorrer de tempo colocou em prática a estratégia capitalista de “diversificar os negócios”, aprendendo com os “rivais” das milícias que tudo se poderia transformar em serviços vendáveis dentro das comunidades, desde a “segurança” à permissão para abrir um comércio, a internet, a luz, a água, o gás, os terrenos e moradias, etc.
O que pretendo salientar é que perceber a questão de território é primordial, pois, de um lado, aquelas populações que lá vivem sofrem por falta de políticas públicas universais e projetos de governo transformadores, que viabilizem ter uma vida em que a privação de necessidades elementares não seja uma constante. Por outro, as ditas organizações criminosas também os subjugam, matam e espoliam de forma quotidiana. É nessa estrutura social contraditória que a EPC tem condicionado e recrutado muitos jovens, que, sem perspetiva de uma vida longe da pobreza e da miséria, aderem ao universo criminal – um dado revelador da chacina de 28 de outubro: um terço dos mortos não tinha o registo do nome do pai nos seus documentos de identificação.
Além das questões de longa e média duração que procurei sumarizar, existem alguns elementos da conjuntura que são relevantes. Como a sequência de erros táticos da extrema-direita/neofascista brasileira: Eduardo Bolsonaro foi para os EUA conspirar junto da Administração Trump, para sancionar juízes e aplicar alta tarifas sobre o Brasil, com o objetivo de evitar a condenação de Jair Bolsonaro por golpe de Estado – sem efeito; assim como a tentativa dos deputados bolsonaristas de aprovar dois projetos de emenda constitucional (PEC), um para amnistiar os golpistas (incluindo Jair Bolsonaro) e outro para inibir a investigação judicial aos deputados e políticos.
O resultado desses equívocos políticos, como o ataque à soberania brasileira por Trump e pela família Bolsonaro, permitiu que o governo Lula retomasse a iniciativa da agenda política do país. Porque a gestão “Lula 3” até àquele momento encontrava-se em crescente impopularidade, uma das consequências da aplicação de uma política económica neoliberal – “austericídio fiscal”, como categorizou Gleisi Hoffmann (ex-presidente do Partido dos Trabalhadores e ministra do governo). Relativamente aos projetos de lei, a esquerda brasileira (moderada e radical) teve a iniciativa de retomar grandes manifestações de ruas, até então sob a hegemonia do bolsonarismo, a fim de demonstrar contrariedade às PEC. Em síntese, a extrema-direita brasileira viu-se na defensiva, por serem identificados por amplos setores da sociedade como “traidores da pátria”, “anti-Brasil” e “defensores de bandidos”.
É nesse contexto que a carnificina “determinada” pelo governador Cláudio Castro e o seu secretário de segurança pública tem forte indícios e relação com o facto de o bolsonarismo estar encurralado politicamente. O que os levou a iniciar uma contraofensiva, visando retomar a agenda política do país, colocando na ordem do dia uma pauta em que eles repetem “respostas” simplicistas (“guerra às drogas”) e, sobretudo, conseguem mobilizar vários setores populares, especialmente nas grandes cidades, afetados e atingidos quotidianamente pela insegurança, o medo, a violência direta (assaltos, furtos, assassinatos) e o controlo de territórios pela economia política capitalista do crime (CV, PCC, etc.).
Por outro lado, eles sabem (inconscientemente ou não) que a “esquerda” que capitulou ao neoliberalismo e à austeridade não tem “solução” para a questão de segurança pública – basta examinar a letalidade policial em governos estaduais ditos progressistas –, porque para atenuar essa expressão da questão social, repito atenuar, seria necessário um robusto investimento público em habitação, saneamento básico, escola, saúde, assistência social e uma multiplicidade de políticas sociais, mas que o Novo Arcabouço Fiscal de Lula-Haddad não permite – o gasto financeiro do Estado permanece intocável.
A dimensão mais perigosa dessa contraofensiva do bolsonarismo é que ela pretende importar, na forma de lei e retórica política, a gramática ideológica trumpista dos “narcoterroristas”, para legitimar os assassinatos indiscriminados que o Ministério da Guerra dos EUA tem realizado no Pacífico – basta colocar a etiqueta de que são traficantes-terroristas. A família Bolsonaro já encetou a cantilena de que Trump poderia atacar barcos no Brasil, abrindo um precedente que poderá legitimar um ataque americano ao país, em nome do combate aos “narcoterroristas”, assim como o governador do RJ também contactou o governo Trump para que este reconheça o CV como “grupo terrorista”.
Nota final. Suspeito de que o genocídio em Gaza tenha aberto um processo histórico em que a dessensibilização social é de tal ordem que “já não precisamos de campos escondidos para praticar genocídio [e chacina], basta a normalização” e a interiorização desse novo-velho modo de vida. Um dos sinais de que a historiografia nos ajuda a compreender no processo de fascistização é que a violência estrutural passa a ser visível e se torna uma estética política. Há muitas lições políticas para retirarmos tanto de Gaza como do Rio de Janeiro, se quisermos um futuro menos sombrio.
As classes dominantes brasileiras, herdeiras do colonialismo português, não importaram somente “estética e muito pouco além disso”, sobretudo, perpetuaram e atualizaram as lógicas e tecnologias político-raciais de desumanização daqueles considerados “sub-humanos”, “descartáveis”, “sem alma”. Ou seja, os pobres, periféricos, excluídos, subalternos, escravizados, os trabalhadores – as populações negras, não brancas e ameríndias. Portanto, para essa “elite”, que necessita das violentas “estética” e ideologia racistas, como forma de conservação do seu statu quo, estas populações são passíveis de genocídio, tortura, chacinas e massacres. Aos “seus serviços”, das tropas coloniais até à “burocracia armada” do Estado hoje (polícia, policiamento e encarceramento), matam impunemente os “sub-humanos” e sem precisarem de justificar nem serem responsabilizados.
A “lei informal” transmitida no treinamento policial é: identificou algo parecido com um fuzil nas mãos de um morador de comunidade, “atire para matar”, todos ali são suspeitos – mesmo que seja um guarda-chuva. Por outras palavras, é pena de morte. A presunção de inocência só existe para os condomínios dos ricos, onde muitas mães daqueles jovens mortos pela polícia vem trabalhar todos os dias, garantindo o trabalho de reprodução social de setores daquela “elite” que interiorizou e continua a “lucrar” com o racismo. Para se ter uma noção de uma política concreta, nos anos 90 um dos governadores do RJ criou as “gratificações faroeste”, ou seja, quanto mais o polícia matava, mais aumentavam os seus rendimentos mensais; recentemente tentaram recriá-las, mas ficou sem efeito.
As imagens dos mortos enfileirados, seminus, alguns corpos desmembrados – mesmo que fossem todos do Comando Vermelho (CV) – não provocaram uma grande repulsa nacional por aquele morticínio planeado pelo Estado. Isso significa que o que impera é uma generalizada dessensibilização e indiferença social; no caso do Rio de Janeiro, existe até considerável aprovação popular à “operação”. E muitos setores “progressistas” apoiaram e legitimaram o morticínio ou demonstraram uma indignação seletiva e com ressalvas. Isto é, capitularam completamente à lógica política-policial aplicada no país nos últimos 40 anos. O Presidente Lula da Silva, num gesto com preocupações eleitorais e de despolitização, a surfar no dito “populismo penal”, sanciona uma lei que endurece o combate ao “crime organizado” – a ironia é que o idealizador da lei foi o seu algoz, Sérgio Moro – e envia para o Congresso Nacional um “Projeto de Lei Antifação”. Por outras palavras, Lula está a legitimar a forma (fracassada) de combater a violência e a criminalidade no Brasil, as mesmas estratégias punitivistas e repressivas que a direita e a extrema-direita têm como pilar central na sua retórica política e ação governativa. O ponto central é que esse tipo de “consenso” e indiferença só evidencia que na História do Brasil a política de extermínio dos “indesejados”, nas suas diferentes formas, tem sido parte da nossa realidade e do nosso imaginário social, desde a colonização até à conformação do capitalismo brasileiro vigente, seja na sua forma de ditadura empresarial-militar ou representativo-liberal, etc.
Imagino que alguns leitores já estejam a pensar: “Mais um defensor de bandido!” Responderia que não, apenas levo os estudos científicos sobre as formas de combater a economia política do crime e o meu antirracismo às últimas consequências, assim como defendo a vida e a dignidade humana, principalmente daquelas pessoas que ao nascer são “condenadas” à morte, à miséria e à exclusão social pela estrutura racial-capitalista que forma o Brasil na sua História. Questionemo-nos. Qual é a “racionalidade” ou o “cálculo” que justifique um jovem “escolher o mundo do crime”, que lhe reserva uma vida curta (a morte) ou anos privado de liberdade? Não será a falta de perspetiva de futuro? De capacidade de sonhar com uma vida melhor? Que outro mundo é possível? Penso que se começarmos a questionar-nos com perguntas desse tipo e combatendo contra a ideologia racista que aprendemos nas diferentes estruturas sociais e instituições, talvez tenhamos a oportunidade de entender que os “excluídos” no apartheid dos morros são incorporados pela economia política do crime como força de trabalho barata e descartáveis, enquanto os poderosos e verdadeiros chefes do “crime organizado” estão a viver nos condomínios de luxo, quiçá em palácios de governo, ou a trabalhar no centro do mercado financeiro brasileiro (Faria Lima) ou nalgum banco em Londres.
Esse tipo de organização – Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC), etc. – surgiu dentro do sistema carcerário brasileiro, visando reivindicar melhores condições e organizar o espaço prisional, pois as cadeias não “ressocializam” ninguém, são mais uma máquina de moer seres humanos e recrutar pessoas para o crime – o PCC emergiu com maior força após o massacre do Carandiru. Bruno Paes Manso escreveu um recente artigo a diferenciar os dois grupos. O ponto decisivo é que essa economia política do crime (EPC) identificou nessas formas coletivas de organização a possibilidade de transitar do assalto a banco (no caso do CV, 1980), para intermediação e também comercialização de cocaína, que vinha da Colômbia e era despachada dos portos brasileiros para a Europa. Mas como esses grupos poderiam garantir o transporte “seguro” de uma mercadoria tão valiosa, mas ilegalizada? A “solução” foi armarem-se fortemente. Como conseguiriam acesso a armas fabricadas na Alemanha, na Bélgica e nos EUA, entre outros? É nesse contexto que aparece um novo nicho de comercialização no RJ, o das armas com alto potencial de letalidade e imponente; a forma mais rápida e fácil comprar o armamento foi com setores do Estado que têm acesso às armas, as forças de polícia e do Exército. Ou a partir da política de liberalização de armas do governo Bolsonaro. O mesmo vale para as munições.
Às vezes, é preciso relembrar o óbvio. Os fuzis não brotaram do chão nem caíram dos céus nos morros do Rio de Janeiro. Existe todo um complexo, lucrativo e sofisticado comércio de armas e munições que as coloca na mão daqueles jovens pobres e na sua maioria negros. Por que será que a polícia não investiga esse comércio (necromercado)? Não haveria muitos agentes do Estado implicados nesse processo? Grandes empresários “de bem”? Não existe nenhuma relação entre contravenção (“jogo do bicho”), a polícia e as milícias (grupo formado por polícias ou ex-polícias) no RJ?
Outra face desse processo é que a economia política capitalista do crime entendeu que estando fortemente armada permitia ter o controlo dos territórios em que se instalava – evidentemente com a permissão e a organização estatal, uma “regulação armada” dos territórios. Quer dizer, existe uma relação entre o alargamento do CV e a própria expansão urbana da Cidade Maravilhosa.
É a partir desses territórios sob sua regulação armada que a EPC comercializará parte dos estupefacientes que transportava, mas no decorrer de tempo colocou em prática a estratégia capitalista de “diversificar os negócios”, aprendendo com os “rivais” das milícias que tudo se poderia transformar em serviços vendáveis dentro das comunidades, desde a “segurança” à permissão para abrir um comércio, a internet, a luz, a água, o gás, os terrenos e moradias, etc.
O que pretendo salientar é que perceber a questão de território é primordial, pois, de um lado, aquelas populações que lá vivem sofrem por falta de políticas públicas universais e projetos de governo transformadores, que viabilizem ter uma vida em que a privação de necessidades elementares não seja uma constante. Por outro, as ditas organizações criminosas também os subjugam, matam e espoliam de forma quotidiana. É nessa estrutura social contraditória que a EPC tem condicionado e recrutado muitos jovens, que, sem perspetiva de uma vida longe da pobreza e da miséria, aderem ao universo criminal – um dado revelador da chacina de 28 de outubro: um terço dos mortos não tinha o registo do nome do pai nos seus documentos de identificação.
Além das questões de longa e média duração que procurei sumarizar, existem alguns elementos da conjuntura que são relevantes. Como a sequência de erros táticos da extrema-direita/neofascista brasileira: Eduardo Bolsonaro foi para os EUA conspirar junto da Administração Trump, para sancionar juízes e aplicar alta tarifas sobre o Brasil, com o objetivo de evitar a condenação de Jair Bolsonaro por golpe de Estado – sem efeito; assim como a tentativa dos deputados bolsonaristas de aprovar dois projetos de emenda constitucional (PEC), um para amnistiar os golpistas (incluindo Jair Bolsonaro) e outro para inibir a investigação judicial aos deputados e políticos.
O resultado desses equívocos políticos, como o ataque à soberania brasileira por Trump e pela família Bolsonaro, permitiu que o governo Lula retomasse a iniciativa da agenda política do país. Porque a gestão “Lula 3” até àquele momento encontrava-se em crescente impopularidade, uma das consequências da aplicação de uma política económica neoliberal – “austericídio fiscal”, como categorizou Gleisi Hoffmann (ex-presidente do Partido dos Trabalhadores e ministra do governo). Relativamente aos projetos de lei, a esquerda brasileira (moderada e radical) teve a iniciativa de retomar grandes manifestações de ruas, até então sob a hegemonia do bolsonarismo, a fim de demonstrar contrariedade às PEC. Em síntese, a extrema-direita brasileira viu-se na defensiva, por serem identificados por amplos setores da sociedade como “traidores da pátria”, “anti-Brasil” e “defensores de bandidos”.
É nesse contexto que a carnificina “determinada” pelo governador Cláudio Castro e o seu secretário de segurança pública tem forte indícios e relação com o facto de o bolsonarismo estar encurralado politicamente. O que os levou a iniciar uma contraofensiva, visando retomar a agenda política do país, colocando na ordem do dia uma pauta em que eles repetem “respostas” simplicistas (“guerra às drogas”) e, sobretudo, conseguem mobilizar vários setores populares, especialmente nas grandes cidades, afetados e atingidos quotidianamente pela insegurança, o medo, a violência direta (assaltos, furtos, assassinatos) e o controlo de territórios pela economia política capitalista do crime (CV, PCC, etc.).
Por outro lado, eles sabem (inconscientemente ou não) que a “esquerda” que capitulou ao neoliberalismo e à austeridade não tem “solução” para a questão de segurança pública – basta examinar a letalidade policial em governos estaduais ditos progressistas –, porque para atenuar essa expressão da questão social, repito atenuar, seria necessário um robusto investimento público em habitação, saneamento básico, escola, saúde, assistência social e uma multiplicidade de políticas sociais, mas que o Novo Arcabouço Fiscal de Lula-Haddad não permite – o gasto financeiro do Estado permanece intocável.
A dimensão mais perigosa dessa contraofensiva do bolsonarismo é que ela pretende importar, na forma de lei e retórica política, a gramática ideológica trumpista dos “narcoterroristas”, para legitimar os assassinatos indiscriminados que o Ministério da Guerra dos EUA tem realizado no Pacífico – basta colocar a etiqueta de que são traficantes-terroristas. A família Bolsonaro já encetou a cantilena de que Trump poderia atacar barcos no Brasil, abrindo um precedente que poderá legitimar um ataque americano ao país, em nome do combate aos “narcoterroristas”, assim como o governador do RJ também contactou o governo Trump para que este reconheça o CV como “grupo terrorista”.
Nota final. Suspeito de que o genocídio em Gaza tenha aberto um processo histórico em que a dessensibilização social é de tal ordem que “já não precisamos de campos escondidos para praticar genocídio [e chacina], basta a normalização” e a interiorização desse novo-velho modo de vida. Um dos sinais de que a historiografia nos ajuda a compreender no processo de fascistização é que a violência estrutural passa a ser visível e se torna uma estética política. Há muitas lições políticas para retirarmos tanto de Gaza como do Rio de Janeiro, se quisermos um futuro menos sombrio.
domingo, 30 de novembro de 2025
Quem lê tanta notícia?
“O Sol na banca de revista,
Isso hoje em dia está sendo feito nas redes sociais. Depois que inventaram o celular e com ele as big- techs, a vida mudou. As pessoas andam com o celular diante dos olhos como se a tela substituísse a realidade. Um pouco elas já fazem isso. A realidade pode ser moldada ao bel prazer do comunicador. A mentira está aí para isso. Levar a população a pensar de um jeito que favoreça aquele pensamento, usando mentiras ou verdades.
Todo mundo tem um celular. O último censo feito mostrava que havia mais celular do que gente no Brasil. Em todo lugar todo mundo está diante de um celular. Na rua caminhando, na bicicleta trabalhando, na academia malhando, todos usam o celular e é sempre muito mais para ver alguma coisa do que para se comunicar. A solidão de outros tempos se foi. Hoje você tem “amigos” virtuais e pode ficar sabendo da vida de todos sem precisar ler um jornal. Claro que isso trouxe uma sensação de democratização da comunicação. Ao mesmo tempo um perigo de que aquelas mentiras que falamos possam se difundir e mudar a realidade como até já vimos acontecer.
Um estudo e uma regulamentação são importantes e fundamentais. Esse acesso ao que todos dizem é importante, mas ao mesmo tempo uma ideia de liberdade de expressão precisa de regras. Primeiro que uns comunicam mais do que outros, tem mais verba e atropelam o processo. Depois é preciso que se diga que qualquer associação precisa de regulamentação. Casamento precisa, futebol precisa, enfim, seguindo as regras, ou os limites, tudo é possível. Sua liberdade vai até onde começa a do seu vizinho, já dizia aquele azulejo velho da casa demolida.
É certo também que o povo fica vendo foto, lendo fofoca, jogando e trocando mensagens na maioria dos casos. Mas também é alvo da informação mal intencionada. Essa precisa ser pensada, não sei como, mas a imagem do povo na frente da banca não me sai da cabeça. Todo mundo podia ler tudo o que era permitido expor ali. A ideia de liberdade de expressão americana, por exemplo, é uma ilusão. É feita para os brancos, ricos e na maioria, protestantes. Os negros, os pobres, os grupos segregados não chegam nem perto. Aí reside o problema. O celular reproduz a sociedade que vivemos e tenta mantê-la viva. Se conseguirmos mudar a sociedade, torná-la mais justa talvez consigamos mudar também os celulares. Quem sabe? Vale a pena tentar. Tenho que parar. Meu celular apitou.
me encha de alegria e preguiça,
quem lê tanta noticia? “
Pois é, assim falava Caetano Veloso em Alegria, alegria. As bancas de revista que hoje viraram mercadinhos exibiam não só revistas como jornais cheios de notícias. E as pessoas se juntavam na frente para ler enquanto esperavam o bonde. Nostalgias à parte, eram outros tempos. É certo também que o povo lia mais as manchetes, muitas vezes escandalosas e exageradas. Quem tinha dinheiro para comprar jornal? O povão comprava quando dava jornais que faziam o sangue escorrer. Mas a banca cheia de gente era festa. Muitas fotos ilustram esse hábito brasileiro que se perdeu. Aliás, as coisas coletivas se perderam e quando o povo se junta, o que é raro, é para manifestar algum desejo muito forte.
Pois é, assim falava Caetano Veloso em Alegria, alegria. As bancas de revista que hoje viraram mercadinhos exibiam não só revistas como jornais cheios de notícias. E as pessoas se juntavam na frente para ler enquanto esperavam o bonde. Nostalgias à parte, eram outros tempos. É certo também que o povo lia mais as manchetes, muitas vezes escandalosas e exageradas. Quem tinha dinheiro para comprar jornal? O povão comprava quando dava jornais que faziam o sangue escorrer. Mas a banca cheia de gente era festa. Muitas fotos ilustram esse hábito brasileiro que se perdeu. Aliás, as coisas coletivas se perderam e quando o povo se junta, o que é raro, é para manifestar algum desejo muito forte.
Isso hoje em dia está sendo feito nas redes sociais. Depois que inventaram o celular e com ele as big- techs, a vida mudou. As pessoas andam com o celular diante dos olhos como se a tela substituísse a realidade. Um pouco elas já fazem isso. A realidade pode ser moldada ao bel prazer do comunicador. A mentira está aí para isso. Levar a população a pensar de um jeito que favoreça aquele pensamento, usando mentiras ou verdades.
Todo mundo tem um celular. O último censo feito mostrava que havia mais celular do que gente no Brasil. Em todo lugar todo mundo está diante de um celular. Na rua caminhando, na bicicleta trabalhando, na academia malhando, todos usam o celular e é sempre muito mais para ver alguma coisa do que para se comunicar. A solidão de outros tempos se foi. Hoje você tem “amigos” virtuais e pode ficar sabendo da vida de todos sem precisar ler um jornal. Claro que isso trouxe uma sensação de democratização da comunicação. Ao mesmo tempo um perigo de que aquelas mentiras que falamos possam se difundir e mudar a realidade como até já vimos acontecer.
Um estudo e uma regulamentação são importantes e fundamentais. Esse acesso ao que todos dizem é importante, mas ao mesmo tempo uma ideia de liberdade de expressão precisa de regras. Primeiro que uns comunicam mais do que outros, tem mais verba e atropelam o processo. Depois é preciso que se diga que qualquer associação precisa de regulamentação. Casamento precisa, futebol precisa, enfim, seguindo as regras, ou os limites, tudo é possível. Sua liberdade vai até onde começa a do seu vizinho, já dizia aquele azulejo velho da casa demolida.
É certo também que o povo fica vendo foto, lendo fofoca, jogando e trocando mensagens na maioria dos casos. Mas também é alvo da informação mal intencionada. Essa precisa ser pensada, não sei como, mas a imagem do povo na frente da banca não me sai da cabeça. Todo mundo podia ler tudo o que era permitido expor ali. A ideia de liberdade de expressão americana, por exemplo, é uma ilusão. É feita para os brancos, ricos e na maioria, protestantes. Os negros, os pobres, os grupos segregados não chegam nem perto. Aí reside o problema. O celular reproduz a sociedade que vivemos e tenta mantê-la viva. Se conseguirmos mudar a sociedade, torná-la mais justa talvez consigamos mudar também os celulares. Quem sabe? Vale a pena tentar. Tenho que parar. Meu celular apitou.
Toda saga vivida por Jair Bolsonaro é um manual de estupidez na vida política
Acompanho a saga de Jair Bolsonaro com fascínio quase filosófico: o que leva um homem a agir, de forma tão consistente, contra seus próprios interesses?
A pergunta surgiu durante o seu governo, continuou com sua reação à pandemia , aprofundou-se com a tentativa de golpe — e encontra agora um desfecho teatral com a prisão preventiva depois de tentar arrancar a tornozeleira eletrônica.
Por "curiosidade", justificou ele.
A vigília convocada pelo filho é apenas mais uma prova de que genética não perdoa.
Alguns dirão que essa tendência antecede a política e já vem dos quartéis —o que talvez autorize a piada "de soldado a soldador" que anda circulando por aí.
Mas o assunto é sério: como explicar a estupidez na política?
O tema raramente recebe a devida atenção. Hannah Arendt, em análise célebre, afirmou que Adolf Eichmann representava a "incapacidade de pensar" que define a "banalidade do mal". Eichmann seria estúpido — e sua estupidez foi instrumentalizada no Holocausto.
Erro evidente: Eichmann pensava, sim. Era um nazista convicto, até "sofisticado" —digamos assim—, como se soube mais tarde pelas gravações de áudio.
Sua maldade não era banal.
Robert Musil, outro autor de língua alemã, tentou ir um pouco mais longe. Há dois tipos de estupidez, disse ele na conferência de 1937. O primeiro é uma limitação intelectual natural, inocente, sem maldade —o "bobo da aldeia", em sua versão literária clássica.
O segundo tipo é mais perigoso: o ato de deformar o pensamento por orgulho, vaidade ou cegueira moral. O sujeito sabe pensar, mas não quer pensar. Essa forma de estupidez não é cognitiva, mas moral. É um vício de caráter.
Não creio que Bolsonaro se encaixe perfeitamente em qualquer uma dessas categorias. A estupidez de suas ações não nasce da inocência; mas a deformação deliberada do pensamento exige um tipo de inteligência que ele também não possui.
O que há ali é aquela rigidez mental que a historiadora Barbara Tuchman dissecou no clássico "A Marcha da Insensatez", do original "The March of Folly". A própria palavra "folly" já sugere essa rigidez, irmã gêmea da loucura.
Nas palavras de Tuchman, a história foi pródiga em momentos de estupidez: eles surgem quando governantes seguem políticas que, longe de beneficiá-los, aceleram sua própria ruína.
Curiosamente, Tuchman concorda com Carlo Cipolla, para quem o sujeito estúpido é aquele que prejudica os outros e a si próprio, sem obter benefício algum.
Mas há critérios para que a estupidez seja propriamente política, avisa Tuchman. Primeiro, a conduta tem de ser reconhecida como estúpida em seu próprio tempo, não apenas retrospectivamente.
Segundo, deve haver uma alternativa viável e mais sensata —a estupidez só é estupidez quando age sem necessidade.
Por fim, o governante estúpido apresenta o que Tuchman chama de "wooden-headedness" —algo como "cabeça oca", que talvez traduzíssemos melhor como "cabeça blindada": o governante estúpido só consegue interpretar a realidade a partir de noções pré-concebidas e fixas, ignorando ou rejeitando qualquer evidência contrária. É como se proclamasse, orgulhoso: "Nenhum fato me vai derrotar!".
Na obra de Tuchman, os exemplos de cabeças blindadas se sucedem: os troianos com o cavalo de madeira; o comportamento de Roma antes da revolta protestante; a obstinação de Jorge 3º ao tentar submeter as colônias britânicas a impostos; e, já no século 20, a aventura suicida dos submarinos alemães contra a Marinha americana ou o ataque japonês a Pearl Harbor — dois atos que, ironicamente, trouxeram os Estados Unidos para guerras que arrasaram seus autores.
Em todos esses casos, havia alertas; havia alternativas; mas os fatos não demoveram as cabeças blindadas.
Guardadas as proporções de escala e importância, a conduta de Bolsonaro é quase um manual de estupidez política.
Na pandemia, teria sido possível mais competência e empatia —mas o homem "não era coveiro".
No golpe, havia sempre a opção de simplesmente não o cogitar —e, quem sabe, aguardar na oposição outra eleição, já que a derrota de 2022 foi por margem mínima. Mas isso implicaria admitir que o PT venceu o pleito, uma heresia para os bolsonaristas.
E, na comédia da tornozeleira, a suposta tentativa de fuga jamais compensaria o risco. Cumprir a pena —ou parte dela— teria trazido mais vantagens que desvantagens; mas aprender com o caso de Lula seria outra heresia.
Que os seguidores de Bolsonaro discordem dessas premissas não surpreende. No fim das contas, eles seguem o "mito" por alguma razão.
A pergunta surgiu durante o seu governo, continuou com sua reação à pandemia , aprofundou-se com a tentativa de golpe — e encontra agora um desfecho teatral com a prisão preventiva depois de tentar arrancar a tornozeleira eletrônica.
Por "curiosidade", justificou ele.
A vigília convocada pelo filho é apenas mais uma prova de que genética não perdoa.
Alguns dirão que essa tendência antecede a política e já vem dos quartéis —o que talvez autorize a piada "de soldado a soldador" que anda circulando por aí.
Mas o assunto é sério: como explicar a estupidez na política?
O tema raramente recebe a devida atenção. Hannah Arendt, em análise célebre, afirmou que Adolf Eichmann representava a "incapacidade de pensar" que define a "banalidade do mal". Eichmann seria estúpido — e sua estupidez foi instrumentalizada no Holocausto.
Erro evidente: Eichmann pensava, sim. Era um nazista convicto, até "sofisticado" —digamos assim—, como se soube mais tarde pelas gravações de áudio.
Sua maldade não era banal.
Robert Musil, outro autor de língua alemã, tentou ir um pouco mais longe. Há dois tipos de estupidez, disse ele na conferência de 1937. O primeiro é uma limitação intelectual natural, inocente, sem maldade —o "bobo da aldeia", em sua versão literária clássica.
O segundo tipo é mais perigoso: o ato de deformar o pensamento por orgulho, vaidade ou cegueira moral. O sujeito sabe pensar, mas não quer pensar. Essa forma de estupidez não é cognitiva, mas moral. É um vício de caráter.
Não creio que Bolsonaro se encaixe perfeitamente em qualquer uma dessas categorias. A estupidez de suas ações não nasce da inocência; mas a deformação deliberada do pensamento exige um tipo de inteligência que ele também não possui.
O que há ali é aquela rigidez mental que a historiadora Barbara Tuchman dissecou no clássico "A Marcha da Insensatez", do original "The March of Folly". A própria palavra "folly" já sugere essa rigidez, irmã gêmea da loucura.
Nas palavras de Tuchman, a história foi pródiga em momentos de estupidez: eles surgem quando governantes seguem políticas que, longe de beneficiá-los, aceleram sua própria ruína.
Curiosamente, Tuchman concorda com Carlo Cipolla, para quem o sujeito estúpido é aquele que prejudica os outros e a si próprio, sem obter benefício algum.
Mas há critérios para que a estupidez seja propriamente política, avisa Tuchman. Primeiro, a conduta tem de ser reconhecida como estúpida em seu próprio tempo, não apenas retrospectivamente.
Segundo, deve haver uma alternativa viável e mais sensata —a estupidez só é estupidez quando age sem necessidade.
Por fim, o governante estúpido apresenta o que Tuchman chama de "wooden-headedness" —algo como "cabeça oca", que talvez traduzíssemos melhor como "cabeça blindada": o governante estúpido só consegue interpretar a realidade a partir de noções pré-concebidas e fixas, ignorando ou rejeitando qualquer evidência contrária. É como se proclamasse, orgulhoso: "Nenhum fato me vai derrotar!".
Na obra de Tuchman, os exemplos de cabeças blindadas se sucedem: os troianos com o cavalo de madeira; o comportamento de Roma antes da revolta protestante; a obstinação de Jorge 3º ao tentar submeter as colônias britânicas a impostos; e, já no século 20, a aventura suicida dos submarinos alemães contra a Marinha americana ou o ataque japonês a Pearl Harbor — dois atos que, ironicamente, trouxeram os Estados Unidos para guerras que arrasaram seus autores.
Em todos esses casos, havia alertas; havia alternativas; mas os fatos não demoveram as cabeças blindadas.
Guardadas as proporções de escala e importância, a conduta de Bolsonaro é quase um manual de estupidez política.
Na pandemia, teria sido possível mais competência e empatia —mas o homem "não era coveiro".
No golpe, havia sempre a opção de simplesmente não o cogitar —e, quem sabe, aguardar na oposição outra eleição, já que a derrota de 2022 foi por margem mínima. Mas isso implicaria admitir que o PT venceu o pleito, uma heresia para os bolsonaristas.
E, na comédia da tornozeleira, a suposta tentativa de fuga jamais compensaria o risco. Cumprir a pena —ou parte dela— teria trazido mais vantagens que desvantagens; mas aprender com o caso de Lula seria outra heresia.
Que os seguidores de Bolsonaro discordem dessas premissas não surpreende. No fim das contas, eles seguem o "mito" por alguma razão.
Aznar, o oráculo
Podemos dormir descansados, o aquecimento global não existe, é um invento malicioso dos ecologistas na linha estratégica da sua “ideologia em deriva totalitária”, consoante a definiu o implacável observador da política planetária e dos fenómenos do universo que é José María Aznar. Não saberíamos como viver sem este homem. Não importa que qualquer dia comecem a nascer flores no Árctico, não importa que os glaciares da Patagónia se reduzam de cada vez que alguém suspira fazendo aumentar a temperatura ambiente uma milionésima de grau, não importa que a Gronelândia tenha perdido uma parte importante do seu território, não importa a seca, não importam as inundações que tudo arrasam e tantas vidas levam consigo, não importa a igualização cada vez mais evidente das estações do ano, nada disto importa se o emérito sábio José María vem negar a existência do aquecimento global, baseando-se nas peregrinas páginas de um livro do presidente checo Vaclav Klaus que o próprio Aznar, em uma bonita atitude de solidariedade científica e institucional, apresentará em breve. Já o estamos a ouvir. No entanto, uma dúvida muito séria nos atormenta e que é altura de expender à consideração do leitor. Onde estará a origem, o manancial, a fonte desta sistemática atitude negacionista? Terá resultado de um ovo dialéctico deposto por Aznar no útero do Partido Popular quando foi seu amo e senhor? Quando Rajoy, com aquela composta seriedade que o caracteriza, nos informou de que um seu primo catedrático, parece que de física, lhe havia dito que isso do aquecimento climático era uma treta, tão ousada afirmação foi apenas o fruto de uma imaginação celta sobreaquecida que não havia sabido compreender o que lhe estava a ser explicado, ou, para tornar ao ovo dialéctico, é isso uma doutrina, uma regra, um princípio exarado em letra pequena na cartilha do Partido Popular, caso em que, se Rajoy teria sido somente o repetidor infeliz da palavra do primo catedrático, já o oráculo em que o seu ex-chefe se transformou não quis perder a oportunidade de marcar uma vez mais a pauta ao gentio ignaro?
Não me resta muito mais espaço, mas talvez ainda caiba nele um breve apelo ao senso comum. Sendo certo que o planeta em que vivemos já passou por seis ou sete eras glaciais, não estaremos nós no limiar de outra dessas eras? Não será que a coincidência entre tal possibilidade e as contínuas acções operadas pelo ser humano contra o meio ambiente se parece muito àqueles casos, tão comuns, em que uma doença esconde outra doença? Pensem nisto, por favor. Na próxima era glacial, ou nesta que já está principiando, o gelo cobrirá Paris. Tranquilizemo-nos, não será para amanhã. Mas temos, pelo menos, um dever para hoje: não ajudemos a era glacial que aí vem. E, recordem, Aznar é um mero episódio. Não se assustem.
José Saramago, "O caderno"
José Saramago, "O caderno"
A Filosofia não está à venda no mercado de algoritmos
Hoje, 20 de novembro de 2025 — Dia Mundial da Filosofia —, o mundo corre mais depressa do que a pergunta. Enquanto os servidores ardem em previsões e os ecrãs nos vendem respostas prontas a consumo instantâneo, ainda há quem se atreva a perguntar: O que é isto de ser? Por que sofremos? O que nos torna humanos?
Essas perguntas, antigas como o fogo e tão incómodas quanto a verdade, não cabem em prompts. Não se comprimem em linhas de código. E é por isso que a filosofia, mesmo em tempos de Inteligência Artificial, não morre — antes persiste, como um suspiro silencioso no meio do ruído.
Pensemos: a IA aprende padrões, reproduz estilos, sintetiza dados, mas ignora a angústia ética de Espinosa, a ironia trágica de Sócrates, a esperança utópica de Bloch. Ela pode imitar uma reflexão, mas não sentir a dúvida que a torna viva. Porque filosofar não é apenas raciocinar — é existir com inquietação. É recusar que a vida se reduza a um menu de opções predeterminadas.
Por isso, neste dia, façamos um gesto de resistência silenciosa: apaguemos momentaneamente o mundo digital e abramos um livro de Montaigne, de Arendt, de Alain — ou simplesmente sentemo-nos, como Diógenes ao sol, a contemplar o absurdo da pressa coletiva.
A filosofia não tem utilidade prática. Mas tem tudo a ver com o que nos mantém vivos: o desejo de compreender, de escolher, de duvidar — e, acima de tudo, de não nos deixarmos programar sem consciência.
E talvez aí, só aí, resida a sua vitória contra o artificialismo: porque, por mais que a inteligência se torne artificial, o espanto — esse — será sempre humano.
Mas será que ainda perguntamos? Ou já nos habituámos a delegar o pensamento? Vemos jovens que dominam interfaces, mas não dominam os seus impulsos; adultos que acumulam seguidores, mas não sabem dialogar com a própria consciência. Em nome da eficiência, sacrificámos o tempo da maturação ética. Em nome da neutralidade técnica, esquecemos que toda a tecnologia carrega escolhas morais — e que, muitas vezes, as mais perigosas são aquelas tomadas por quem se julga isento de responsabilidade.
A filosofia, nesse contexto, não é um luxo erudito, mas uma vacina contra a banalidade do mal, aquela que Hannah Arendt tão bem descreveu: o mal que surge quando os homens deixam de pensar. Se aceitamos que algoritmos decidam quem merece crédito, quem é suspeito, quem é “relevante” nas redes, sem questionar os critérios por trás dessas decisões, estamos a entregar o nosso futuro a lógicas opacas — e, pior, indiscutíveis. A filosofia ensina a duvidar, a desmontar discursos, a exigir transparência. É, por isso, uma prática de liberdade.
E se queremos que as crianças de hoje se tornem adultos capazes de discernir entre o justo e o conveniente, entre o sensato e o viral, então a filosofia não pode ser um acessório do ensino secundário — deve estar desde o 1.º ciclo, não como disciplina rígida, mas como atitude: como arte de escutar, de argumentar, de imaginar mundos melhores. Uma criança que aprende a formular “porquês” com profundidade, que discute o que é justo numa fila para o lanche, que reflete sobre o que é ser amigo, está a treinar a sua humanidade. E essa é a única competência que nenhuma IA conseguirá usurpar.
Paulo Freire lembrava-nos que ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens educam-se entre si, mediatizados pelo mundo. A filosofia, entendida como diálogo crítico com o mundo, é o coração dessa educação libertadora. E não há liberdade sem pensamento próprio, nem pensamento próprio sem tempo, silêncio e coragem — valores que hoje parecem em risco de extinção.
Por isso, neste Dia Mundial da Filosofia, não celebremos apenas os grandes pensadores do passado, mas defendamos o direito de todas as crianças — e de todos os cidadãos — a pensar, a duvidar, a errar e a recomeçar com lucidez. Porque um país que descura a filosofia nas escolas não está apenas a poupar papel ou horários — está a entregar o seu futuro a quem já decidiu por nós. E isso, filosoficamente, é inaceitável.
Essas perguntas, antigas como o fogo e tão incómodas quanto a verdade, não cabem em prompts. Não se comprimem em linhas de código. E é por isso que a filosofia, mesmo em tempos de Inteligência Artificial, não morre — antes persiste, como um suspiro silencioso no meio do ruído.
Pensemos: a IA aprende padrões, reproduz estilos, sintetiza dados, mas ignora a angústia ética de Espinosa, a ironia trágica de Sócrates, a esperança utópica de Bloch. Ela pode imitar uma reflexão, mas não sentir a dúvida que a torna viva. Porque filosofar não é apenas raciocinar — é existir com inquietação. É recusar que a vida se reduza a um menu de opções predeterminadas.
Por isso, neste dia, façamos um gesto de resistência silenciosa: apaguemos momentaneamente o mundo digital e abramos um livro de Montaigne, de Arendt, de Alain — ou simplesmente sentemo-nos, como Diógenes ao sol, a contemplar o absurdo da pressa coletiva.
A filosofia não tem utilidade prática. Mas tem tudo a ver com o que nos mantém vivos: o desejo de compreender, de escolher, de duvidar — e, acima de tudo, de não nos deixarmos programar sem consciência.
E talvez aí, só aí, resida a sua vitória contra o artificialismo: porque, por mais que a inteligência se torne artificial, o espanto — esse — será sempre humano.
Mas será que ainda perguntamos? Ou já nos habituámos a delegar o pensamento? Vemos jovens que dominam interfaces, mas não dominam os seus impulsos; adultos que acumulam seguidores, mas não sabem dialogar com a própria consciência. Em nome da eficiência, sacrificámos o tempo da maturação ética. Em nome da neutralidade técnica, esquecemos que toda a tecnologia carrega escolhas morais — e que, muitas vezes, as mais perigosas são aquelas tomadas por quem se julga isento de responsabilidade.
A filosofia, nesse contexto, não é um luxo erudito, mas uma vacina contra a banalidade do mal, aquela que Hannah Arendt tão bem descreveu: o mal que surge quando os homens deixam de pensar. Se aceitamos que algoritmos decidam quem merece crédito, quem é suspeito, quem é “relevante” nas redes, sem questionar os critérios por trás dessas decisões, estamos a entregar o nosso futuro a lógicas opacas — e, pior, indiscutíveis. A filosofia ensina a duvidar, a desmontar discursos, a exigir transparência. É, por isso, uma prática de liberdade.
E se queremos que as crianças de hoje se tornem adultos capazes de discernir entre o justo e o conveniente, entre o sensato e o viral, então a filosofia não pode ser um acessório do ensino secundário — deve estar desde o 1.º ciclo, não como disciplina rígida, mas como atitude: como arte de escutar, de argumentar, de imaginar mundos melhores. Uma criança que aprende a formular “porquês” com profundidade, que discute o que é justo numa fila para o lanche, que reflete sobre o que é ser amigo, está a treinar a sua humanidade. E essa é a única competência que nenhuma IA conseguirá usurpar.
Paulo Freire lembrava-nos que ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens educam-se entre si, mediatizados pelo mundo. A filosofia, entendida como diálogo crítico com o mundo, é o coração dessa educação libertadora. E não há liberdade sem pensamento próprio, nem pensamento próprio sem tempo, silêncio e coragem — valores que hoje parecem em risco de extinção.
Por isso, neste Dia Mundial da Filosofia, não celebremos apenas os grandes pensadores do passado, mas defendamos o direito de todas as crianças — e de todos os cidadãos — a pensar, a duvidar, a errar e a recomeçar com lucidez. Porque um país que descura a filosofia nas escolas não está apenas a poupar papel ou horários — está a entregar o seu futuro a quem já decidiu por nós. E isso, filosoficamente, é inaceitável.
Homens ocos indiferentes ao horror
Três meses atrás, no Festival de Veneza, a estreia mundial do filme “A voz de Hind Rajab” recebeu ovação histórica de 23 minutos. A diretora tunisiana desse longa híbrido acredita que ele consiga ser um dos favoritos ao Oscar de Melhor Filme Internacional em março de 2026. Ele reconstitui as últimas horas de vida da menina palestina Hind, de 6 anos, passadas dentro de um automóvel que acabara de ser perfurado por 335 disparos. O tio, a tia e três primos espremidos nos dois bancos do carro familiar foram morrendo a seu lado. E a menina, agora sozinha, aciona o número de emergência do Crescente Vermelho que toda criança ou adulto de Gaza sabe de cor. A voz infantil tem urgência adulta e é indelével:
— Estou com medo, por favor, venham.
O fato ocorreu em 29 de janeiro de 2024. Como se sabe hoje, ninguém veio —ou melhor, os dois socorristas que tentaram chegar até Hind de ambulância foram igualmente metralhados pelas Forças de Defesa de Israel (FDI). O conjunto de corpos em carcaças retorcidas ali ficou por 12 dias até ser recolhido.
Semanas atrás um novo documentário produzido pela Fundação Hind Rajab, em parceria com a Al Jazeera, trouxe revelações adicionais ao caso. Intitulado “Ma Khafiya Aatham” (A ponta do iceberg), ele desmonta a tentativa inicial de Israel de sustentar que não havia qualquer unidade militar das FDI nas redondezas do ocorrido. Uma investigação baseada em imagens de satélite e áudios daquele dia, empreendida pelo grupo de pesquisa multidisciplinar Forensic Architecture, da Universidade de Londres, identificou a presença de vários tanques Merkava na vizinhança do carro da família Rajab. Também transcorreram preciosas horas até o Crescente Vermelho receber autorização para deslocar seus dois socorristas à zona de confronto, e é nesse ínterim de horror que a voz da menina vai minguando.
A pergunta moral deixa de ser “quem era o morto?” e passa a ser “quem somos nós que aceitamos isso?”.
Como fim de ano também é ocasião para balanços de vida e listas de melhores ou piores, convidam-se interessados a (re)ler “Os homens ocos”, de T.S. Eliot, publicado exatamente cem anos atrás. Poema modernista que lida com o vazio espiritual e o desalento do Pós-Guerra de 1914-18, “Os homens ocos” de Eliot simbolizam uma sociedade paralisada pela inação, desprovida de espiritualidade e em declínio moral. Esses homens ocos mais se assemelham a espantalhos preenchidos com palha para aparentar humanidade. São vazios, falam aos sussurros, sem dialogar, e vivem numa paisagem árida, estéril, com medo da escuridão. São célebres os últimos versos da obra: This is the way the world ends /Not with a bang but a whimper (dependendo do tradutor, Assim acaba o mundo/não com um estrondo, mas com um gemido).
Melhor sair logo da escuridão e da indignação fácil. E encarar quem somos nós, que aceitamos o que vemos.
Dorrit Harazim
— Estou com medo, por favor, venham.
O fato ocorreu em 29 de janeiro de 2024. Como se sabe hoje, ninguém veio —ou melhor, os dois socorristas que tentaram chegar até Hind de ambulância foram igualmente metralhados pelas Forças de Defesa de Israel (FDI). O conjunto de corpos em carcaças retorcidas ali ficou por 12 dias até ser recolhido.
Semanas atrás um novo documentário produzido pela Fundação Hind Rajab, em parceria com a Al Jazeera, trouxe revelações adicionais ao caso. Intitulado “Ma Khafiya Aatham” (A ponta do iceberg), ele desmonta a tentativa inicial de Israel de sustentar que não havia qualquer unidade militar das FDI nas redondezas do ocorrido. Uma investigação baseada em imagens de satélite e áudios daquele dia, empreendida pelo grupo de pesquisa multidisciplinar Forensic Architecture, da Universidade de Londres, identificou a presença de vários tanques Merkava na vizinhança do carro da família Rajab. Também transcorreram preciosas horas até o Crescente Vermelho receber autorização para deslocar seus dois socorristas à zona de confronto, e é nesse ínterim de horror que a voz da menina vai minguando.
Quando, finalmente, a ambulância se aproxima do carro esturricado, é ela que se torna alvo das FDI. O documentário identifica a brigada, o batalhão e os comandantes suspeitos de responsabilidade no caso. E forneceu ao Tribunal Penal Internacional de Haia os nomes, sobrenomes e patentes de 20 militares israelenses que associa ao crime.
Por que falar disso agora, com o dezembro festivo arrombando nossas portas? Porque toda hora é hora. A indignação sendo um estado emocional transitório, é quase impossível de sustentar ao longo dos anos. Desgasta em demasia, tanto física quanto emocionalmente, por isso acaba morrendo — mais cômodo nos acostumarmos ao que vemos. Cabe aqui pedaço de uma crônica escrita por Clarice Lispector para a findada revista Senhor em junho de 1962, sobre a morte do bandidão carioca Mineirinho, pela polícia carioca, com 13 tiros:
Por que falar disso agora, com o dezembro festivo arrombando nossas portas? Porque toda hora é hora. A indignação sendo um estado emocional transitório, é quase impossível de sustentar ao longo dos anos. Desgasta em demasia, tanto física quanto emocionalmente, por isso acaba morrendo — mais cômodo nos acostumarmos ao que vemos. Cabe aqui pedaço de uma crônica escrita por Clarice Lispector para a findada revista Senhor em junho de 1962, sobre a morte do bandidão carioca Mineirinho, pela polícia carioca, com 13 tiros:
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossego, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro me assassina, porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
A pergunta moral deixa de ser “quem era o morto?” e passa a ser “quem somos nós que aceitamos isso?”.
Como fim de ano também é ocasião para balanços de vida e listas de melhores ou piores, convidam-se interessados a (re)ler “Os homens ocos”, de T.S. Eliot, publicado exatamente cem anos atrás. Poema modernista que lida com o vazio espiritual e o desalento do Pós-Guerra de 1914-18, “Os homens ocos” de Eliot simbolizam uma sociedade paralisada pela inação, desprovida de espiritualidade e em declínio moral. Esses homens ocos mais se assemelham a espantalhos preenchidos com palha para aparentar humanidade. São vazios, falam aos sussurros, sem dialogar, e vivem numa paisagem árida, estéril, com medo da escuridão. São célebres os últimos versos da obra: This is the way the world ends /Not with a bang but a whimper (dependendo do tradutor, Assim acaba o mundo/não com um estrondo, mas com um gemido).
Melhor sair logo da escuridão e da indignação fácil. E encarar quem somos nós, que aceitamos o que vemos.
Dorrit Harazim
Direita precisa se perguntar: Valeu a pena perder tempo com o bolsonarismo?
Agora que Jair está em cana, opa, calma aí, não consigo abandonar esse começo de frase ainda não, me deixe saborear, agora que o Jair está em cana, rapaz, que gostinho de justiça e bolo da vovó que sinto após dizer isso em voz alta.
Vou ter que dizer de novo, agora que o Jair está em cana, olha só, se o golpe tivesse dado certo, eu teria sido assassinado no pau-de-arara.
Se está achando ruim, vá ler outra coluna, quero mais é dizer de novo, agora que Jair está em cana por ter tentando roubar o voto dos pobres e usar as armas da República para matar seus adversários.
Desculpa, foram anos ouvindo gente dizer sem rir que o charlatão do Guedes era competente, mas OK, parei, agora que o Jair está em cana por ter tentado roubar o voto dos pobres e usar as armas da República para matar seus adversários, Vacina! Vacina!
Vagabundo não conseguiu fazer o mínimo e comprar vacina!, enfim, agora que Jair está em cana por ter tentado roubar o voto dos pobres e usar as armas da República para matar seus adversários, a direita brasileira precisa se perguntar: valeu a pena perder tempo com o bolsonarismo?
Graças a Bolsonaro todo o trabalho de décadas que PSDB e PFL fizeram para livrar a direita da associação com a ditadura militar morreu.
Vocês não são mais só o movimento que deu um golpe décadas atrás. Vocês são o movimento que tentou um golpe outro dia desses e, já que estavam no embalo, ainda convocaram uma superpotência estrangeira para taxar os produtos brasileiros.
Graças a Bolsonaro a reputação de uma direita competente tecnicamente estabelecida pelos economistas tucanos morreu.
Vocês são o movimento que cometeu o ato de incompetência administrativa mais dramático da história republicana: o assassinato em massa de brasileiros por falta de vacinas na segunda onda da epidemia de Covid.
Eu ouço Tarcísio dizendo que o Brasil precisa de um novo CEO e penso, ô bonitão Ciêôu, vocês não compraram vacina. E mais: destruíram a reputação do Doria, que comprou vacina.
A ideia de que a direita era menos corrupta do que a esquerda sempre foi uma cascata muito sem-vergonha, mas, enfim, vocês conseguiram emplacá-la por alguns anos.
Pois bem: o bolsonarismo matou as investigações sobre corrupção, transformou Moro e Dallagnol em políticos do centrão particularmente desprezíveis e implementou o orçamento secreto, origem de boa parte das denúncias de corrupção dos últimos anos.
Leiam as últimas notícias sobre roubalheira: tem uns esquerdistas ali, mas é quase todo mundo de vocês.
O bolsonarismo atrapalhou um processo orgânico de crescimento de uma direita com enraizamento social, que prosperou durante as primeiras presidências petistas e teve como principal base as igrejas evangélicas.
Afinal é na oposição que se constrói movimento social, partido com ideologia, debates intelectuais, tudo isso. Com a esquerda também foi assim.
Com Jair, a direita brasileira voltou ao seu velho repertório de fazer política pegando um pedaço do Estado –os militares, no caso– para fazer mutreta.
Vocês apoiaram isso tudo em 2018 para impedir a eleição de Fernando Haddad, cujo maior ato de radicalismo até hoje foi obrigar os ricos a pagarem a mesma alíquota de Imposto de Renda das professoras primárias e dos policiais militares.
Valeu a pena?
Vou ter que dizer de novo, agora que o Jair está em cana, olha só, se o golpe tivesse dado certo, eu teria sido assassinado no pau-de-arara.
Se está achando ruim, vá ler outra coluna, quero mais é dizer de novo, agora que Jair está em cana por ter tentando roubar o voto dos pobres e usar as armas da República para matar seus adversários.
Desculpa, foram anos ouvindo gente dizer sem rir que o charlatão do Guedes era competente, mas OK, parei, agora que o Jair está em cana por ter tentado roubar o voto dos pobres e usar as armas da República para matar seus adversários, Vacina! Vacina!
Vagabundo não conseguiu fazer o mínimo e comprar vacina!, enfim, agora que Jair está em cana por ter tentado roubar o voto dos pobres e usar as armas da República para matar seus adversários, a direita brasileira precisa se perguntar: valeu a pena perder tempo com o bolsonarismo?
Graças a Bolsonaro todo o trabalho de décadas que PSDB e PFL fizeram para livrar a direita da associação com a ditadura militar morreu.
Vocês não são mais só o movimento que deu um golpe décadas atrás. Vocês são o movimento que tentou um golpe outro dia desses e, já que estavam no embalo, ainda convocaram uma superpotência estrangeira para taxar os produtos brasileiros.
Graças a Bolsonaro a reputação de uma direita competente tecnicamente estabelecida pelos economistas tucanos morreu.
Vocês são o movimento que cometeu o ato de incompetência administrativa mais dramático da história republicana: o assassinato em massa de brasileiros por falta de vacinas na segunda onda da epidemia de Covid.
Eu ouço Tarcísio dizendo que o Brasil precisa de um novo CEO e penso, ô bonitão Ciêôu, vocês não compraram vacina. E mais: destruíram a reputação do Doria, que comprou vacina.
A ideia de que a direita era menos corrupta do que a esquerda sempre foi uma cascata muito sem-vergonha, mas, enfim, vocês conseguiram emplacá-la por alguns anos.
Pois bem: o bolsonarismo matou as investigações sobre corrupção, transformou Moro e Dallagnol em políticos do centrão particularmente desprezíveis e implementou o orçamento secreto, origem de boa parte das denúncias de corrupção dos últimos anos.
Leiam as últimas notícias sobre roubalheira: tem uns esquerdistas ali, mas é quase todo mundo de vocês.
O bolsonarismo atrapalhou um processo orgânico de crescimento de uma direita com enraizamento social, que prosperou durante as primeiras presidências petistas e teve como principal base as igrejas evangélicas.
Afinal é na oposição que se constrói movimento social, partido com ideologia, debates intelectuais, tudo isso. Com a esquerda também foi assim.
Com Jair, a direita brasileira voltou ao seu velho repertório de fazer política pegando um pedaço do Estado –os militares, no caso– para fazer mutreta.
Vocês apoiaram isso tudo em 2018 para impedir a eleição de Fernando Haddad, cujo maior ato de radicalismo até hoje foi obrigar os ricos a pagarem a mesma alíquota de Imposto de Renda das professoras primárias e dos policiais militares.
Valeu a pena?
sexta-feira, 28 de novembro de 2025
Caça-palavras na cadeia não deve reduzir pena de Bolsonaro
Jair Renan deixou Balneário Camboriú para visitar o pai na cadeia em Brasília. “Tentei levantar o ânimo do meu velho”, declarou, ao sair da Polícia Federal. O Zero Quatro disse ter levado “alguns livros” para o capitão. A frase despertou a curiosidade dos repórteres, que quiseram saber os títulos escolhidos. “Trouxe um caça-palavras para ele”, informou o vereador.
O chefe do clã nunca foi conhecido pelo hábito da leitura. Apesar disso, sempre teve opiniões fortes sobre a cena editorial. No Planalto, tentou interferir no formato dos livros didáticos. “Os livros hoje em dia, como regra, é (sic) um montão, um amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo”, ordenou, em janeiro de 2020.
Jair Bolsonaro acrescentou que os livros distribuídos nas escolas públicas passariam a estampar a letra do Hino Nacional e a bandeira do Brasil. Para sorte dos estudantes brasileiros, a patriotada foi esquecida. Ainda assim, o capitão fez um estrago e tanto no setor.
No último ano de mandato, enquanto raspava o caixa para tentar se reeleger, o ex-presidente bloqueou quase R$ 800 milhões do Programa Nacional do Livro e do Material Didático. A medida atrasou a compra de 70 milhões de livros para alunos e professores do ensino fundamental.
O obscurantismo marcou a relação do governo Bolsonaro com a cultura em geral e a literatura em particular. Por birra ideológica, o capitão se recusou a assinar os papéis necessários para a entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque. “Conforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu prêmio”, devolveu o autor de “Estorvo”, ao receber o galardão com quatro anos de atraso.
O desprezo pelos livros não é só produto da estupidez do Cavalão. O anti-intelectualismo sempre foi uma arma eleitoral valiosa para a extrema direita. Ajuda a estigmatizar escritores, professores e artistas que teimam em criticar governantes autoritários.
Apesar da aversão às letras, Bolsonaro ainda pode contar com elas para sair mais cedo da cadeia. A lei brasileira garante a remição de pena para os detentos que leem. O problema, para o ex-presidente, é que as normas do Conselho Nacional de Justiça exigem a leitura de “obras literárias” e a entrega de resenhas de próprio punho. Não há previsão de benefício para quem escolhe passar o tempo fazendo cruzadinha no xadrez.
O chefe do clã nunca foi conhecido pelo hábito da leitura. Apesar disso, sempre teve opiniões fortes sobre a cena editorial. No Planalto, tentou interferir no formato dos livros didáticos. “Os livros hoje em dia, como regra, é (sic) um montão, um amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo”, ordenou, em janeiro de 2020.
Jair Bolsonaro acrescentou que os livros distribuídos nas escolas públicas passariam a estampar a letra do Hino Nacional e a bandeira do Brasil. Para sorte dos estudantes brasileiros, a patriotada foi esquecida. Ainda assim, o capitão fez um estrago e tanto no setor.
No último ano de mandato, enquanto raspava o caixa para tentar se reeleger, o ex-presidente bloqueou quase R$ 800 milhões do Programa Nacional do Livro e do Material Didático. A medida atrasou a compra de 70 milhões de livros para alunos e professores do ensino fundamental.
O obscurantismo marcou a relação do governo Bolsonaro com a cultura em geral e a literatura em particular. Por birra ideológica, o capitão se recusou a assinar os papéis necessários para a entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque. “Conforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu prêmio”, devolveu o autor de “Estorvo”, ao receber o galardão com quatro anos de atraso.
O desprezo pelos livros não é só produto da estupidez do Cavalão. O anti-intelectualismo sempre foi uma arma eleitoral valiosa para a extrema direita. Ajuda a estigmatizar escritores, professores e artistas que teimam em criticar governantes autoritários.
Apesar da aversão às letras, Bolsonaro ainda pode contar com elas para sair mais cedo da cadeia. A lei brasileira garante a remição de pena para os detentos que leem. O problema, para o ex-presidente, é que as normas do Conselho Nacional de Justiça exigem a leitura de “obras literárias” e a entrega de resenhas de próprio punho. Não há previsão de benefício para quem escolhe passar o tempo fazendo cruzadinha no xadrez.
Todo mundo mente?
Certos poderes dedicam-se a substituir verdades visíveis por mentiras flagrantes, a fim de alimentar a retórica populista.
Leonardo Padura
A cruz, a cerca e o fuzil
Durante décadas, a análise política brasileira acostumou-se a separar os grupos de pressão em Brasília. Falava-se da bancada ruralista que defendia os interesses do agronegócio, da bancada evangélica que defendia uma moral religiosa e da bancada da bala que pleiteava o endurecimento penal. Eram vizinhos de corredor no Congresso, trocando favores ocasionais. Contudo, quem observa o Brasil contemporâneo com as lentes do passado corre o risco de não enxergar o monstro que se formou na sala. Aquelas fronteiras desapareceram e o que se assiste hoje não é mais uma coligação de interesses, mas a fusão de identidades em um projeto de poder totalizante: a Teocracia Agropastoril Miliciana.
Este conceito, embora soe distópico, é a descrição mais precisa para um fenômeno onde o fundamentalismo religioso fornece o “software” ideológico, o agronegócio predatório provê o “hardware” financeiro e territorial, e o ambiente miliciano (que contaminou parte das polícias, tanto estaduais quanto federais) oferece o braço armado. O objetivo? A refundação do Estado brasileiro, não mais como uma república laica e democrática, mas como um domínio sagrado, vigiado e armado, onde a dissidência e o protesto são tratados não como oposição política ou luta por direitos, mas como adversários em uma “guerra espiritual”.
A gênese desse fenômeno remonta à consolidação da chamada “Bancada BBB” (Boi, Bala e Bíblia). O termo, cunhado ironicamente pela deputada Erika Kokay em 2015, descrevia uma articulação conservadora que começava a mostrar suas garras em pautas como a redução da maioridade penal e o Estatuto da Família. No entanto, a ironia do apelido envelheceu mal e o que era uma aliança tática eventual tornou-se muito mais orgânica.
Parlamentares como o Capitão Augusto (PR-SP) já rejeitam a nomenclatura fragmentada. Para eles, não há distinção entre o policial que atira, o pastor que prega e o fazendeiro que desmata; eles se autodenominam a “Bancada da Vida” ou do “Bem”. Essa mudança semântica parece simples, mas na verdade é crucial já que na política democrática, adversários debatem ideias, enquanto na teocracia miliciana, o “Bem” combate o “Mal”. E contra o mal absoluto, qualquer violência é permitida, qualquer lei humana é secundária e qualquer supressão de direitos é, na verdade, um ato de saneamento moral.
A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 foi o cartão de visitas explícito dessa nova ordem, ali, a fusão se materializou: a “massa crítica” para a abolição do Estado de Direito foi financiada por empresários do agronegócio, inflamada por uma retórica religiosa de fim dos tempos e facilitada por uma omissão cúmplice das forças de segurança. Mas para entender como chegamos a esse ponto de ruptura, precisamos dissecar a anatomia dessa quimera, começando por sua alma.
Este conceito, embora soe distópico, é a descrição mais precisa para um fenômeno onde o fundamentalismo religioso fornece o “software” ideológico, o agronegócio predatório provê o “hardware” financeiro e territorial, e o ambiente miliciano (que contaminou parte das polícias, tanto estaduais quanto federais) oferece o braço armado. O objetivo? A refundação do Estado brasileiro, não mais como uma república laica e democrática, mas como um domínio sagrado, vigiado e armado, onde a dissidência e o protesto são tratados não como oposição política ou luta por direitos, mas como adversários em uma “guerra espiritual”.
A gênese desse fenômeno remonta à consolidação da chamada “Bancada BBB” (Boi, Bala e Bíblia). O termo, cunhado ironicamente pela deputada Erika Kokay em 2015, descrevia uma articulação conservadora que começava a mostrar suas garras em pautas como a redução da maioridade penal e o Estatuto da Família. No entanto, a ironia do apelido envelheceu mal e o que era uma aliança tática eventual tornou-se muito mais orgânica.
Parlamentares como o Capitão Augusto (PR-SP) já rejeitam a nomenclatura fragmentada. Para eles, não há distinção entre o policial que atira, o pastor que prega e o fazendeiro que desmata; eles se autodenominam a “Bancada da Vida” ou do “Bem”. Essa mudança semântica parece simples, mas na verdade é crucial já que na política democrática, adversários debatem ideias, enquanto na teocracia miliciana, o “Bem” combate o “Mal”. E contra o mal absoluto, qualquer violência é permitida, qualquer lei humana é secundária e qualquer supressão de direitos é, na verdade, um ato de saneamento moral.
A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 foi o cartão de visitas explícito dessa nova ordem, ali, a fusão se materializou: a “massa crítica” para a abolição do Estado de Direito foi financiada por empresários do agronegócio, inflamada por uma retórica religiosa de fim dos tempos e facilitada por uma omissão cúmplice das forças de segurança. Mas para entender como chegamos a esse ponto de ruptura, precisamos dissecar a anatomia dessa quimera, começando por sua alma.
Esqueça a velha Teologia da Prosperidade, focada apenas em fazer o indivíduo enriquecer através do dízimo, a força motriz da Teocracia Agropastoril Miliciana é a Teologia do Domínio. Importada do reconstrucionismo cristão norte-americano e adaptada ao neopentecostalismo brasileiro, essa doutrina postula que os cristãos têm um mandato divino para “ocupar” e governar as estruturas da sociedade antes que Cristo possa voltar.
A estratégia, conhecida como o “Mandato dos Sete Montes”, orienta os fiéis a tomarem o controle de sete áreas-chave: religião, família, educação, governo, mídia, artes e negócios. Sob essa ótica, um pastor eleito deputado não está lá apenas para representar seus fiéis, mas para submeter as leis dos homens à “Lei de Deus”. A laicidade do Estado é vista como um erro histórico a ser corrigido, uma brecha por onde o “inimigo” (a esquerda, os movimentos sociais, as religiões de matriz africana) entrou.
Essa visão de mundo cria o que pesquisadores chamam de Cristofascismo: um regime onde o autoritarismo político é sacralizado. A política deixa de ser o espaço da negociação para se tornar o palco da “Guerra Espiritual”. Opositores não são concidadãos com opiniões divergentes; são “filisteus”, “amalequitas” ou agentes demoníacos que precisam ser neutralizados para que a nação prospere.
É essa teologia que permite a um líder religioso subir à tribuna do Congresso e defender, com a Bíblia na mão, a retirada de direitos de minorias ou a posse de fuzis, argumentando que está cumprindo a vontade divina contra as forças do caos. A intolerância deixa de ser um preconceito pessoal e vira um projeto de santificação do território nacional.
Se a teologia fornece a justificativa moral, o agronegócio fornece o combustível material, mas não estamos falando do pequeno produtor rural. Falamos de um modelo de agronegócio financeirizado, tecnológico e expansionista que também passou por uma “conversão” teológica. O antigo slogan publicitário “Agro é Pop” foi subliminarmente substituído por “Agro é Santo”.
Em grandes feiras agrícolas no Centro-Oeste, a liturgia mudou e não é raro ver pastores abençoando colheitadeiras gigantescas e drones de última geração em cerimônias de ação de graças, onde a tecnologia de ponta é ungida como instrumento da providência divina para “alimentar o mundo”. A prosperidade da safra é vista como sinal da bênção de Deus; logo, qualquer entrave a essa produção, seja a demarcação de terras indígenas, a fiscalização ambiental ou leis trabalhistas, é uma afronta ao plano divino.
Essa sacralização do lucro cria uma blindagem ética perfeita para a predação. O desmatamento e a invasão de territórios tradicionais são ressignificados como a “sujeição da terra” ordenada no Gênesis. E para garantir essa expansão, o capital agrário não hesita em financiar a política radical. Investigações sobre os atos antidemocráticos revelaram que pelo menos 142 empresários do setor, concentrados em estados como Mato Grosso e Pará, financiaram a logística do caos em Brasília.
No campo, essa aliança se traduz nas Agromilícias. Grupos armados, muitas vezes compostos por ex-policiais ou agentes de segurança privada, atuam como exércitos particulares para “limpar” áreas de interesse, atacando indígenas e sem-terra. A violência no campo bate recordes, alimentada pela certeza da impunidade garantida por seus representantes no Congresso e pela bênção de seus líderes espirituais. Em alguns casos, “missões evangélicas” funcionam como ponta de lança, entrando em territórios indígenas para desestruturar a cultura local sob o pretexto de evangelização, abrindo caminho para a exploração econômica subsequente.
O terceiro e mais perigoso vértice desse triângulo é a captura ideológica das forças de segurança. A tese da Teocracia Agropastoril Miliciana alerta para um fato alarmante: a polícia brasileira está sendo catequizada para servir a Deus acima da Constituição.
O principal vetor desse movimento é o programa UFP (Universal nas Forças Policiais), da Igreja Universal do Reino de Deus. Sob o pretexto de oferecer assistência espiritual e palestras sobre ética e depressão, a igreja penetrou em batalhões e delegacias de todo o país. Em estados como São Paulo, a UFP chegou a ter acesso irrestrito a todas as guarnições, distribuindo livros de seus líderes e criando uma relação de dependência emocional com a tropa.
O perigo reside na dupla lealdade. Um policial que vê sua autoridade como uma concessão divina e seu pastor como um comandante espiritual tende a obedecer a diretrizes religiosas em detrimento da lei civil. Denúncias no Ministério Público apontam para a coação de policiais a frequentar cultos e a perigosa mistura de símbolos estatais com a logomarca da igreja.
Enquanto a polícia se “igrejifica”, a igreja se militariza. Projetos como os Gladiadores do Altar introduziram uma estética fascista no culto: jovens uniformizados, marchando em formação rígida, batendo continência e gritando palavras de ordem no altar. Embora a igreja alegue ser uma metáfora para a “batalha espiritual”, a semiótica é inequivocamente bélica. Prepara-se o imaginário do fiel para o confronto.
A consequência prática é a normalização do policial fardado no púlpito e do discurso de extermínio como caridade cristã. A “Bancada da Bala” trabalha no Congresso para legalizar o ativismo político de policiais, enquanto símbolos como a bandeira de Israel começam a ser usados não como homenagem diplomática, mas como insígnia de uma nação imaginária, guerreira e teocrática, que eles acreditam defender nas favelas brasileiras.
Se a teoria parece abstrata, a realidade do Rio de Janeiro oferece um vislumbre aterrorizante do futuro que este modelo propõe. No conjunto de favelas da Zona Norte conhecido como Complexo de Israel, liderado pelo traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, o “Peixão”, a teocracia miliciana já é realidade.
Ali, o crime organizado adotou o fundamentalismo como método de governo. Estrelas de Davi de néon brilham no topo dos morros, visíveis a quilômetros. A intolerância religiosa é a lei: terreiros de Candomblé e Umbanda são depredados, incendiados e seus sacerdotes expulsos sob a mira de fuzis. É o fenômeno do Narco-Pentecostalismo , onde o traficante se vê como um “ungido”, citando salmos enquanto executa rivais.
Embora o termo seja controverso e debatido por acadêmicos que temem a estigmatização dos evangélicos de periferia, a prática de domínio territorial baseada na supressão da diversidade religiosa e na aliança com setores corruptos da polícia (a faceta miliciana) é inegável. O Complexo de Israel é o microcosmo da Teocracia Agropastoril Miliciana: um território onde o Estado laico morreu, substituído por um regime de terror santificado, onde a Bíblia serve de escudo para o fuzil e o lucro do crime.
Enquanto o terror se espalha nas pontas (no campo com as agromilícias e na favela com o narco-pentecostalismo), o centro de comando opera em carpetes azuis, sob o ar-condicionado de Brasília. A atuação da “Bancada da Vida” no Congresso Nacional demonstra uma coordenação impressionante.
Os dados mostram que os interesses se cruzam perfeitamente. A indústria de armas até recentemente financiava tanto os líderes da bancada ruralista quanto os da bancada da bala e evangélica. O dinheiro cria a fidelidade. Quando o assunto é o Marco Temporal das terras indígenas, 88% da Frente Parlamentar Evangélica votou contra os povos originários, alinhando-se automaticamente aos interesses do agronegócio.
A lógica é de troca mútua de proteção. O ruralista quer a terra e a arma; o policial quer a excludente de ilicitude para usar a arma que já tem; o fundamentalista quer a imposição moral e a demonização do “outro”. Juntos, eles aprovam leis que enfraquecem o licenciamento ambiental, facilitam o acesso a arsenais de guerra e tentam criminalizar movimentos sociais, uma verdadeira institucionalização da barbárie.
O conceito de Teocracia Agropastoril Miliciana não é um exagero retórico; é um diagnóstico de urgência. O Brasil não está apenas “polarizado”, ele está sendo disputado por um projeto de poder que visa subverter os princípios fundadores da República.
Não se trata de demonizar a fé evangélica, que é plural e muitas vezes serve como rede de proteção social onde o Estado falha. Trata-se de denunciar o sequestro da fé por um projeto político autoritário. Não se trata de atacar a agricultura, vital para a economia, mas de expor a facção predatória que usa a religião para lavar a grilagem e o sangue indígena. Não se trata de criticar a segurança pública, mas de apontar a contaminação das forças policiais por ideologias que transformam o cidadão em inimigo a ser abatido.
O avanço desse modelo representa o maior risco à democracia brasileira desde a redemocratização. Se a “cruz, a cerca e o fuzil” continuarem a avançar sem resistência, o Brasil corre o risco de se tornar um imenso “Complexo de Israel”: um país onde a liberdade é privilégio de quem reza para o deus certo, vota no candidato armado e lucra com a terra arrasada. A teocracia não está chegando; ela já está operando, votando e atirando. Resta saber se as instituições democráticas terão força para reafirmar que o Brasil é um Estado laico, de todos, e não uma propriedade privada de uma milícia santa.
Roberto Uchoa
A estratégia, conhecida como o “Mandato dos Sete Montes”, orienta os fiéis a tomarem o controle de sete áreas-chave: religião, família, educação, governo, mídia, artes e negócios. Sob essa ótica, um pastor eleito deputado não está lá apenas para representar seus fiéis, mas para submeter as leis dos homens à “Lei de Deus”. A laicidade do Estado é vista como um erro histórico a ser corrigido, uma brecha por onde o “inimigo” (a esquerda, os movimentos sociais, as religiões de matriz africana) entrou.
Essa visão de mundo cria o que pesquisadores chamam de Cristofascismo: um regime onde o autoritarismo político é sacralizado. A política deixa de ser o espaço da negociação para se tornar o palco da “Guerra Espiritual”. Opositores não são concidadãos com opiniões divergentes; são “filisteus”, “amalequitas” ou agentes demoníacos que precisam ser neutralizados para que a nação prospere.
É essa teologia que permite a um líder religioso subir à tribuna do Congresso e defender, com a Bíblia na mão, a retirada de direitos de minorias ou a posse de fuzis, argumentando que está cumprindo a vontade divina contra as forças do caos. A intolerância deixa de ser um preconceito pessoal e vira um projeto de santificação do território nacional.
Se a teologia fornece a justificativa moral, o agronegócio fornece o combustível material, mas não estamos falando do pequeno produtor rural. Falamos de um modelo de agronegócio financeirizado, tecnológico e expansionista que também passou por uma “conversão” teológica. O antigo slogan publicitário “Agro é Pop” foi subliminarmente substituído por “Agro é Santo”.
Em grandes feiras agrícolas no Centro-Oeste, a liturgia mudou e não é raro ver pastores abençoando colheitadeiras gigantescas e drones de última geração em cerimônias de ação de graças, onde a tecnologia de ponta é ungida como instrumento da providência divina para “alimentar o mundo”. A prosperidade da safra é vista como sinal da bênção de Deus; logo, qualquer entrave a essa produção, seja a demarcação de terras indígenas, a fiscalização ambiental ou leis trabalhistas, é uma afronta ao plano divino.
Essa sacralização do lucro cria uma blindagem ética perfeita para a predação. O desmatamento e a invasão de territórios tradicionais são ressignificados como a “sujeição da terra” ordenada no Gênesis. E para garantir essa expansão, o capital agrário não hesita em financiar a política radical. Investigações sobre os atos antidemocráticos revelaram que pelo menos 142 empresários do setor, concentrados em estados como Mato Grosso e Pará, financiaram a logística do caos em Brasília.
No campo, essa aliança se traduz nas Agromilícias. Grupos armados, muitas vezes compostos por ex-policiais ou agentes de segurança privada, atuam como exércitos particulares para “limpar” áreas de interesse, atacando indígenas e sem-terra. A violência no campo bate recordes, alimentada pela certeza da impunidade garantida por seus representantes no Congresso e pela bênção de seus líderes espirituais. Em alguns casos, “missões evangélicas” funcionam como ponta de lança, entrando em territórios indígenas para desestruturar a cultura local sob o pretexto de evangelização, abrindo caminho para a exploração econômica subsequente.
O terceiro e mais perigoso vértice desse triângulo é a captura ideológica das forças de segurança. A tese da Teocracia Agropastoril Miliciana alerta para um fato alarmante: a polícia brasileira está sendo catequizada para servir a Deus acima da Constituição.
O principal vetor desse movimento é o programa UFP (Universal nas Forças Policiais), da Igreja Universal do Reino de Deus. Sob o pretexto de oferecer assistência espiritual e palestras sobre ética e depressão, a igreja penetrou em batalhões e delegacias de todo o país. Em estados como São Paulo, a UFP chegou a ter acesso irrestrito a todas as guarnições, distribuindo livros de seus líderes e criando uma relação de dependência emocional com a tropa.
O perigo reside na dupla lealdade. Um policial que vê sua autoridade como uma concessão divina e seu pastor como um comandante espiritual tende a obedecer a diretrizes religiosas em detrimento da lei civil. Denúncias no Ministério Público apontam para a coação de policiais a frequentar cultos e a perigosa mistura de símbolos estatais com a logomarca da igreja.
Enquanto a polícia se “igrejifica”, a igreja se militariza. Projetos como os Gladiadores do Altar introduziram uma estética fascista no culto: jovens uniformizados, marchando em formação rígida, batendo continência e gritando palavras de ordem no altar. Embora a igreja alegue ser uma metáfora para a “batalha espiritual”, a semiótica é inequivocamente bélica. Prepara-se o imaginário do fiel para o confronto.
A consequência prática é a normalização do policial fardado no púlpito e do discurso de extermínio como caridade cristã. A “Bancada da Bala” trabalha no Congresso para legalizar o ativismo político de policiais, enquanto símbolos como a bandeira de Israel começam a ser usados não como homenagem diplomática, mas como insígnia de uma nação imaginária, guerreira e teocrática, que eles acreditam defender nas favelas brasileiras.
Se a teoria parece abstrata, a realidade do Rio de Janeiro oferece um vislumbre aterrorizante do futuro que este modelo propõe. No conjunto de favelas da Zona Norte conhecido como Complexo de Israel, liderado pelo traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, o “Peixão”, a teocracia miliciana já é realidade.
Ali, o crime organizado adotou o fundamentalismo como método de governo. Estrelas de Davi de néon brilham no topo dos morros, visíveis a quilômetros. A intolerância religiosa é a lei: terreiros de Candomblé e Umbanda são depredados, incendiados e seus sacerdotes expulsos sob a mira de fuzis. É o fenômeno do Narco-Pentecostalismo , onde o traficante se vê como um “ungido”, citando salmos enquanto executa rivais.
Embora o termo seja controverso e debatido por acadêmicos que temem a estigmatização dos evangélicos de periferia, a prática de domínio territorial baseada na supressão da diversidade religiosa e na aliança com setores corruptos da polícia (a faceta miliciana) é inegável. O Complexo de Israel é o microcosmo da Teocracia Agropastoril Miliciana: um território onde o Estado laico morreu, substituído por um regime de terror santificado, onde a Bíblia serve de escudo para o fuzil e o lucro do crime.
Enquanto o terror se espalha nas pontas (no campo com as agromilícias e na favela com o narco-pentecostalismo), o centro de comando opera em carpetes azuis, sob o ar-condicionado de Brasília. A atuação da “Bancada da Vida” no Congresso Nacional demonstra uma coordenação impressionante.
Os dados mostram que os interesses se cruzam perfeitamente. A indústria de armas até recentemente financiava tanto os líderes da bancada ruralista quanto os da bancada da bala e evangélica. O dinheiro cria a fidelidade. Quando o assunto é o Marco Temporal das terras indígenas, 88% da Frente Parlamentar Evangélica votou contra os povos originários, alinhando-se automaticamente aos interesses do agronegócio.
A lógica é de troca mútua de proteção. O ruralista quer a terra e a arma; o policial quer a excludente de ilicitude para usar a arma que já tem; o fundamentalista quer a imposição moral e a demonização do “outro”. Juntos, eles aprovam leis que enfraquecem o licenciamento ambiental, facilitam o acesso a arsenais de guerra e tentam criminalizar movimentos sociais, uma verdadeira institucionalização da barbárie.
O conceito de Teocracia Agropastoril Miliciana não é um exagero retórico; é um diagnóstico de urgência. O Brasil não está apenas “polarizado”, ele está sendo disputado por um projeto de poder que visa subverter os princípios fundadores da República.
Não se trata de demonizar a fé evangélica, que é plural e muitas vezes serve como rede de proteção social onde o Estado falha. Trata-se de denunciar o sequestro da fé por um projeto político autoritário. Não se trata de atacar a agricultura, vital para a economia, mas de expor a facção predatória que usa a religião para lavar a grilagem e o sangue indígena. Não se trata de criticar a segurança pública, mas de apontar a contaminação das forças policiais por ideologias que transformam o cidadão em inimigo a ser abatido.
O avanço desse modelo representa o maior risco à democracia brasileira desde a redemocratização. Se a “cruz, a cerca e o fuzil” continuarem a avançar sem resistência, o Brasil corre o risco de se tornar um imenso “Complexo de Israel”: um país onde a liberdade é privilégio de quem reza para o deus certo, vota no candidato armado e lucra com a terra arrasada. A teocracia não está chegando; ela já está operando, votando e atirando. Resta saber se as instituições democráticas terão força para reafirmar que o Brasil é um Estado laico, de todos, e não uma propriedade privada de uma milícia santa.
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