domingo, 13 de novembro de 2022

A quem pertencem os símbolos nacionais?

Passadas as eleições presidenciais, parte dos apoiadores de Jair Bolsonaro, derrotado nas urnas, continua se manifestando de verde e amarelo, as cores nacionais – atitude consolidada nas duas campanhas disputadas pelo atual presidente. Entre o eleitorado do mandatário eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, surgem paralelamente tentativas de resgatar os símbolos do país.

Mas o que leva, afinal, uma agremiação política a disseminar as cores que simbolizam um país como próprias de sua plataforma?

"Em sua gênese no século 18, os símbolos nacionais de Estados contemporâneos nasceram à esquerda, para usar a terminologia da Revolução Francesa. E nasceram no setor democrático, para representar o povo acima de qualquer rei, imperador, senhor feudal, autoridade religiosa tradicional", destaca Manuel Loff, professor do Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto.

O que tem acontecido no momento, aponta, "é uma apropriação desavergonhada desses símbolos por parte da extrema direita". "Ela cria um confronto, e os símbolos nacionais perdem o significado unificador que pretendem ter."


O bolsonarismo, segundo o historiador, apresenta um agravante: a associação desses símbolos nacionais a práticas de violência e ideais religiosos.

"É uma das raras situações em que um ato agressivo, bélico, que é simular com a mão um revólver, é acrescentado à simbologia política. Como se arma, cruz e bandeira pudessem se fundir", afirma Loff.

Especialistas questionam se o Brasil deveria ter trabalhado melhor as marcas deixadas pela ditadura militar (1964-1986), durante a qual o usar as cores da bandeira era uma forma de mostrar apoio ao regime.

"As memórias subterrâneas retornam à superfície quando não são tratadas em políticas públicas", aponta Michel Gherman, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

"O que aconteceu na ditadura militar e o que voltou a acontecer nesses últimos anos, inclusive com o retorno do discurso pró-ditadura, é que essa bandeira mais uma vez se tornou propriedade do Estado", analisa Ana Caroline Almeida, especialista em Comunicação e professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

"Nesses contextos ultranacionalistas, não só a bandeira do Brasil, como várias outras bandeiras de Estados-nação tendem a se tornar metonímia não de um país, mas de partidos da extrema direita, que se apropriam e sequestram símbolos nacionais e, curiosamente, com isso, ferem a própria ideia de nação como constituição de um 'espírito coletivo'", constata.

Comum nas ditaduras militares da América Latina e também nos regimes stalinistas, a apropriação desses símbolos está também associada ao catálogo de medidas dos fascismos do século 20, aponta Francisco Palomanes Martinho, professor de História Ibérica da Universidade de São Paulo (USP).

"Na chamada crise dos liberalismos do período que sucedeu à Primeira Guerra Mundial, essa apropriação ganhou contornos muito próprios: ela se dá na afirmação do 'nacional' em detrimento do 'outro'. É nesse contexto que ideias de 'raça' ou 'espírito nacional' ganharam espaços cada vez maiores. Os símbolos nacionais, assim, se tornaram absolutos, inquestionáveis. Questioná-los seria questionar a própria existência da nação", pontua Martinho.

No entanto, pondera Odilon Caldeira, professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), "os movimentos fascistas, no século 20, não somente se apropriavam de uma determinada simbologia nacional, como também subvertiam em certa medida essa simbologia ou criavam novos símbolos".

"Hoje, o extremismo e o radicalismo de direita utilizam sobretudo os símbolos nacionais dentro de uma, digamos, matriz republicana", diz o professor, que coordena o Observatório da Extrema Direita.

"Eles fazem uso de uma simbologia pré-existente, dando a ela um novo sentido, um novo caráter, uma nova leitura, mais do que necessariamente criar uma nova simbologia tal qual o fascismo no século 20 fazia", conclui.

Na Europa, aponta Loff, hoje é comum haver normas legais e regulações sociais sobre a utilização política desses símbolos. "Em Portugal, por exemplo, nenhum partido pode usar, segundo a Constituição, a bandeira nacional como símbolo próprio, justamente porque se considera que ela é um símbolo unificador e não divisório."

Durante as seis primeiras décadas que se sucederam à Segunda Guerra Mundial, a relação dos alemães com os próprios símbolos nacionais era considerada complexa – em uma rejeição coletiva explícita a qualquer demonstração que pudesse deixar suspeitas de nacionalismo exacerbado.

Quando o país sediou a Copa do Mundo de 2006, começou um processo de relativização, encabeçado pelas gerações mais jovens, do desconforto frente a símbolos como a bandeira e o hino.

No livro Wie der Fußball Deutsche macht (Como o futebol transformou os alemães, em tradução livre), publicado em 2016, Sven Ismer analisa detalhadamente essa mudança de comportamento da população ao longo das últimas décadas. Se no contexto do futebol tornou-se normal balançar bandeiras, fora dele "a moderação continua, felizmente, existindo", diz o autor – exceto entre círculos minoritários de extrema direita.

Para Ismer, esse comedimento é positivo, visto que "o nacionalismo alemão devastou a Europa duas vezes, deixando milhões de mortos". "Portanto, uma conduta atenta frente à simbologia nacional continua adequada", considera.
Após 

Ulrich Wagner, professor de Psicologia Social da Universidade de Marburg coordenou dois estudos sobre nacionalismo, patriotismo e xenofobia. Em um deles, aplicou dois tipos de questionários entre grupos específicos, a fim de averiguar tendências xenófobas. No primeiro deles, usou formulários "limpos"; no segundo, fez uso dos mesmos formulários acrescidos de uma bandeira da Alemanha no campo superior direito.

"Fomos capazes de demonstrar que, quando confrontadas com símbolos nacionais, as pessoas se revelam de fato um pouco mais xenófobas", relata Wagner.

No Brasil, o processo de uso indevido dos símbolos nacionais não poderá ser facilmente revertido, considera Caldeira: "Da mesma maneira que a apropriação foi longa, construída antes mesmo da gestação do próprio bolsonarismo, o processo do esvaziamento desse sentido não se dará da noite para o dia."

A partir da década de 1930, o futebol se tornou um elemento importante na construção das diversas identidades nacionais, visto que foi o primeiro esporte de massa com dimensão planetária. Hoje, a Copa do Mundo até poderá ajudar a sociedade brasileira, a retomar, de forma mais ampla, o uso dos símbolos e das cores nacionais, mas isso não bastará, considera Caldeira.

"Há um esforço no sentido dessa retomada, mas me parece que esse fenômeno não vai ser resolvido exclusivamente por conta do processo eleitoral e tampouco pelo Mundial", avalia.

"A camisa amarela ainda remete ao bolsonarismo, a atos antidemocráticos e bloqueios de estrada. Pode haver uma refundação dessa relação, mas vai levar tempo", concorda Gehrman.

Loff aponta haver na Europa uma grande atração não só pelo futebol brasileiro, mas pela cultura do país de forma geral. Segundo ele, era comum até poucos anos atrás ver pessoas vestindo a camisa verde e amarela nas ruas de países europeus, mas não está claro que destino terá essa predileção de agora em diante.

"Culturalmente o Brasil tem uma grande capacidade de atração em todo o mundo, mas o bolsonarismo pôs isso em causa", conclui o historiador.

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