quarta-feira, 3 de agosto de 2022

A filologia leva ao crime

Deslumbra-me quotidianamente ver o esforço desenvolvido por certos articulistas mais ou menos colados à esquerda dura ou dinossáurica, no sentido de “situarem” ou “contextualizarem” a guerra brutal e ilegal de Putine. De um lado, temos a realidade boçal, brutal e assassina da guerra, que destrói, mata, mutila e reduz a escombros um belo país; do outro, temos um inefável tecido filológico, uma teia de palavras desinfectadas, um colar de fonemas quase inocentes, a justificarem ou a ”explicarem” um crime horroroso. Quando lemos as “justificações” ou “contextualizações” de Manuel Loff, saímos confortavelmente da brutalidade destrutiva da guerra, para entrarmos no universo da filologia asséptica: palavras bem procuradas e lavadinhas envolvem-nos numa cumplicidade doce e afastam-nos do ruído mortífero das bombas. A filologia lava tudo, até as mãos cheias de sangue do carrasco. “Contextualizar” o crime é o mesmo que lavá-lo ou até apagá-lo.


Tudo isto me traz à memória uma extraordinária peça de Ionesco, que vi vezes sem conta no Théatre de la Huchette, em Paris, juntamente com a célebre Cantora Careca. Refiro-me à pecinha em um acto (curto), La Leçon (A Lição). Nela, um professor de filologia vai, numa lição que dá a uma aluna, envolvê-la, a pouco e pouco e cada vez mais, numa teia de palavras gradativamente mais apertada, que atordoam a aluna, diante das teorias desvairadas do mestre. Por fim, aterrada com aquela artilharia filológica, a pobre aluna, sem ter para onde fugir, acaba estrangulada pelo professor e pela sua aquecida e assassina filologia. A conclusão célebre é: a filologia leva ao crime. Temos visto que sim: a filologia levou ao crime, ou foi ajudante do crime ou “contextualizou” o crime (em massa), na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini, na Rússia de Staline, na Espanha de Franco, no Cambodja de Pol Pot, para nos ficarmos por estes.

Os recados “contextualizantes” que os serventuários daqueles regimes mandavam, devidamente enlatados, para serem distribuídos urbi et orbi eram o colar de palavras que os discípulos penduravam ao pescoço, para com elas “apagarem” a visão das atrocidades cometidas, ao som da música filológica. A filologia sempre foi amiga dos tiranos (Nero ter-se-ia servido dela para cantar o incêndio de Roma), sempre cobriu os seus açougues com o manto diáfano dos fonemas. Como dizia o ardido Rei Ferrante, da peça La Reine Morte, de Montherlant, “tantas palavras para esconderem um vício!”

Os porta-vozes de serviço de Putine aprenderam há muito a arte de perverter o uso das palavras, para assim lavarem a sujidade e o sangue que as suas guerras deixam como rasto.

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