quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O medo da morte

A atitude desprezível e repugnante do presidente Bolsonaro de festejar a paralisação dos testes com a Coronavac, vacina chinesa que está sendo produzida pelo Instituto Butantan em São Paulo, como uma vitória política sobre o governador João Dória, dá bem a dimensão desumana desse político, que brada que o país tem de parar de ser “terra de maricas” e encarar de frente a pandemia. 

Se não fosse a barreira do Centrão, esta seria a milionésima vez em que Bolsonaro, cometendo mais um crime de responsabilidade, poderia ser impedido pelo Legislativo de continuar à frente do governo. Não tem a menor condição psicológica ou moral para exercer a presidência da República uma pessoa que não consegue ter empatia com os cidadãos do país que teoricamente lidera. 

O tiro de misericórdia tentado acabou saindo pela culatra, pois o pobre do voluntário que morreu, cometeu suicídio ou foi vítima de uma overdose, ocorrência que nada tem a ver com a vacina. O fato de que, mesmo depois de esclarecido o caso, a Anvisa não autorizou a retomada dos testes, mostra que há mais do que uma exagerada cautela por parte do órgão governamental. 


Mas há indicações de que o prejuízo pode ser muito maior, pois pesquisas realizadas pelo cientista político Carlos Pereira, com Amanda Medeiros, da Fundação Getulio Vargas do Rio, e Frederico Bertholini, da Universidade de Brasília (UNB), mostram que a maneira como o governo brasileiro está tratando o combate à COVID-19 tem feito com que muitos dos seguidores de Bolsonaro abram divergência em relação ao desprezo que ele tem pelo distanciamento social e uso de máscara.

A crise da vacina é apenas mais uma fase desse negacionismo governamental, apesar dos mais de 5 milhões de infectados e mais de 160 mil mortos. Há também indicações de que a polarização entre os extremos, da esquerda e da direita, está cansando os cidadãos, assim como nos Estados Unidos a virulência de Trump abriu espaço para a vitória do conciliador Joe Biden. 

Pereira diz que já é possível observar esse fenômeno nas eleições municipais, “pois os candidatos que estão sendo apoiados por Lula e por Bolsonaro estão apresentando performance pífia nas pesquisas de opinião”. 

As pesquisas que Carlos Pereira e outros vêm fazendo sobre as consequências da pandemia mostram, segundo ele, “choque exógeno de proporções tectônicas”. Segundo sua análise, o jogo polarizado entre os extremos estava em relativo “equilíbrio” não apenas no Brasil, mas no mundo, cada um dos polos se retroalimentando. Consumiam informações que reforçavam suas crenças anteriores, e rejeitavam à princípio qualquer informação que contrariasse as suas respectivas identidades. 

“As identidades próprias de cada grupo serviam, por um lado, como elementos de pertencimento e aconchego. Mas, por outro, como um escudo ou filtro protetor contra as identidades e valores do grupo rival”. As pesquisas de opinião experimentais que vem desenvolvendo, agora na terceira fase, sugerem que a COVID-19 “foi um choque exógeno de grandes proporções que abalou ou mesmo deslocou os eixos da polarização política no Brasil”. 

O “medo da morte” gerado pela pandemia trouxe muitas incertezas, “e nessas condições de risco aberto, as saídas polares começaram a perder sentido, capacidade de agregação e fadiga”. Segundo Carlos Pereira, “uma parcela não trivial de eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018 abandonaram o presidente e não mais consideram votar em sua reeleição em 2022”. 

Esse extrato populacional de perfil mais pragmático, as pesquisas mostram, está em busca de alternativas moderadas que preencham suas expectativas. O efeito da proximidade com o risco de morte associado à COVID-19 também é percebido nas avaliações sobre as ações do presidente e dos governadores, ressalta Pereira. 

Muitos dos que se autodenominam de direita e centro-direita “se tornaram mais maleáveis quanto mais próximos esses eleitores se encontram de pessoas que desenvolveram a doença, em especial se vieram a óbito”. A gravidade da contaminação que eventualmente venha a gerar óbito leva as pessoas a minimizar as potenciais perdas econômicas. 

“O medo da morte parece não aproximar apenas polos ideologicamente opostos, mas também diferentes classes sociais e pessoas que estão vivenciando diferentes níveis de prejuízos econômicos em decorrência da política de isolamento social”.

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