O jornal foi, a partir do Iluminismo, o órgão por excelência de uma opinião pública racional. Mais do que meio ou instrumento da esfera pública, ele era o lugar da sua constituição. Tinha, pois, um poder constituinte, tal como a escola e a universidade. Através da crítica e do conhecimento, essas três instituições garantiam aquilo a que se chamava “socialização do pensamento”.
O conceito de “esfera pública” (que o filósofo Jürgen Habermas definiu e analisou nas suas transformações, num célebre livro com que iniciou o seu percurso intelectual), que está no centro da tradição iluminista, funda-se precisamente no confronto crítico das opiniões informadas e dotadas de “autoridade”, na circulação de informação que idealmente cria uma sociedade transparente em que a cultura e a crítica são instrumentos e aspirações fundamentais. A consubstancialidade entre jornalismo e democracia, tão reclamada actualmente, evoca implicitamente este momento glorioso da história do jornalismo, muito embora este tenha afunilado os seus bons ofícios.
Esta história que tem pouco mais de dois séculos não foi apenas uma caminhada triunfante até à época da “crise”, que emergiu com mais força a partir do momento em que a esfera pública começou a ser estruturada pela Internet e pelas novas tecnologias da informação, tendo-se criado uma esfera intermédia entre o espaço público e o privado. Nesse percurso, há também a exposição do jornalismo e dos meios de comunicação de massa a uma crítica severa, que tinha a pretensão de os denunciar. Nesta perspectiva crítica, eles são vistos como utensílios ideológicos que praticam a manipulação e adormecem os cidadãos com o entretenimento irresponsável.
Hoje estamos noutra fase. E perante outras formas de assédio que, entretanto, se levantaram, a crítica da ideologia tornou-se uma coisa do passado. É aliás ao declínio da crítica, na sua função cultural e de socialização, aquilo a que temos assistido. Nasceu um novo tipo de espaço multimediático que já não corresponde ao modelo da antiga esfera pública. A dimensão pública da produção de mensagens e a dimensão privada do seu consumo entrecruzam-se cada vez mais, criando um espaço público heterogéneo e atomizado, ao ponto de já se ter dito que agora o que existe são “esferículas públicas”. E isto não promove a relação – como fez o jornalismo moderno desde o seu nascimento – entre cultura e sociedade. A cultura perdeu uma boa parte do seu efeito, deixou de ter uma função de socialização. Um sintoma evidente deste estado é o quase desaparecimento, na esfera pública, da crítica das várias disciplinas artísticas.
Há quase meio século começou a falar-se de uma sociedade dos simulacros. Parece que a noção de simulacro perdeu, entretanto, pertinência e foi substituída pela “pós-verdade”. Não se trata propriamente da mentira, e quem diz que é a mesma coisa que dantes era designado com as palavras “mentira”, “boato”, “dissimulação” não apreende o essencial da “pós-verdade”, que é a anulação da fronteira entre verdade e falsidade.
A pós-verdade, como muito bem mostrou Myriam Revault d’Allonnes num livro já editado em português com o título A Verdade Frágil (Edições 70, 2023) consiste na indiferença ao que a realidade mostra. Não importa que um discurso seja verdadeiro ou falso, o que importa é que ele satisfaça as crenças, as convicções preestabelecidas. A ideia de que o jornalismo, quando bem exercido, tem o poder de repor a verdade deixou de ter a validade que tinha outrora. Um conjunto de novas condições determina as características actuais da esfera pública, com as quais o jornalismo tem tido dificuldade em confrontar-se, entrando muitas vezes na mesma lógica.
O modelo do comentário político, pela sua forma de proliferação e pela escolha de grande parte dos seus agentes (a classe que se move entre dois mundos ligados por um hífen: “político-mediático”), tem alguma responsabilidade nesta matéria.
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