Igor Morski |
A denúncia de que a comunicação política se rebaixou definitivamente a um circo de bufões populistas virou um mantra mundial em 2016. Em setembro, a revista The Economist publicou uma capa sobre a “pós-verdade”. Segundo o semanário inglês, os políticos – e mesmo os estadistas – não precisam mais ter compromisso com a verdade dos fatos, e a maior demonstração do fenômeno seria Donald Trump, que fez sua campanha movida a mentiras escalafobéticas. Os eleitores também não estão nem aí: tomam suas decisões com base em fanatismos e mistificações, estimulados pela performance do histrião da vez. Se o que ele diz é verdade ou mentira, ora, isso é um detalhe irrelevante.
É claro que a distorção não vem de hoje. Nem de ontem. A própria expressão “pós-verdade” – que, por sinal, foi eleita pelo Dicionário Oxford como “a palavra do ano” – entrou no circuito ainda em 2004, quando foi título de um livro de Ralph Keyes – The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. Bem antes disso, Alain Touraine, em tons comedidos, já lamentava a transformação da política num jogo de “atores”. Mentira e política, enfim, são íntimos há muito tempo. A novidade é que a coisa piorou muito.
“Durante um breve período tivemos a ilusão de que poderíamos (...) voltar à argumentação racional, de modo que a retórica pudesse substituir os ritos. (...) As sociedades complexas e de mudanças rápidas, contudo, pouco a pouco deixam de ser sociedades de intercâmbio, da comunicação e da argumentação, para ser cada vez mais sociedades da expressão. A unidade de comunicação entre o emissor e o receptor vai se quebrando. Cada vez menos tratamos com comunicadores e cada vez mais com atores”
Alain Touraine, Communication politique et crise de la représentativité (1989)Hoje, os discursos políticos se encaixaram perfeitamente bem na grande indústria do entretenimento. Seja nas campanhas eleitorais, seja nas mensagens que o poder público dirige aos cidadãos, a comunicação política segue cada vez mais as regras, os formatos e os ritmos estabelecidos pelo entretenimento. Não é preciso que nos lembremos do palhaço Tiririca, um supercampeão das urnas, para nos rendermos a essa constatação. Não é preciso citar o êxito de um Silvio Berlusconi na Itália, de um Arnold Schwarzenegger na Califórnia, de um Marcelo Crivella no Rio de Janeiro ou de um João Doria em São Paulo, todos adestrados pelo cinema e pela televisão, para sabermos de vez que os ideólogos perderam seu lugar para os marqueteiros, que os pensadores vêm sendo substituídos pelos animadores de auditório, que a razão vai sendo revogada pela diversão e que os palanques, depois de convertidos em palanques eletrônicos, agora fulguram como picadeiros virtuais. O respeitável público ora gargalha, ora espuma de ódio, e vota como quem aplaude.
Não é mais pelas leis da retórica, da oratória e da lógica que se entende a identificação entre governantes e governados. Elementos estéticos incidem fortemente nos laços de atração entre os “atores” do teatro político e seus seguidores acríticos. Não custa alertar que falamos aqui de uma estética menos “artística” e mais industrializada, fabricada pela indústria cultural. Falamos de uma “estética” artificial, que se vê em rodas de liga leve, em acessórios do vestuário, na decoração de interiores, na fachada de agências bancárias. É essa “estética” rebaixada, tão característica da indústria do entretenimento, que explica o comportamento da massa seduzida. Não é a economia que define o eleitor – é o circo, por mais que a economia tenha seu peso.
Nas redes sociais isso é flagrante. Por que notícias abusivamente mentirosas – como a de que o papa teria dado seu apoio a Trump – ganharam tanta adesão de tantos americanos? A resposta é tão simples quanto desalentadora. As calúnias, infâmias e invencionices extraem sua força do desejo do eleitor. Passam longe da razão. Se a notícia falsa cai no agrado das fantasias que ele nutre, será proclamada verdade suprema naquele instante de puro prazer.
As pessoas escolhem suas causas políticas com os mesmos neurônios com que escolhem um estilo de game, um gênero de filme (drama, ação, suspense, etc.), um time de futebol ou um ídolo do sertanejo universitário. A opinião pública é uma criança mimada: supõe que a realidade existe para diverti-la, para vingá-la, para lavar-lhe a alma ressentida.
A esse deslocamento estético corresponde um redimensionamento ético. Com isso a ética do discurso político vai mudando. Antes, ele se comportava como um discurso lastreado na verdade dos fatos. De uns tempos para cá, parece comportar-se como um discurso de ficção, de entretenimento. Numa telenovela, por exemplo, é aceitável que, lá pelas tantas, a personagem diga que tal refrigerante é uma delícia (trata-se do famigerado “merchandising”). O telespectador não se incomoda, em nada, mas, se o telejornal adotasse a mesma prática, ele se sentiria traído.
Eis, então, que na era da “pós-verdade” até mesmo “merchandising” o discurso político deu de fazer. É inacreditável. Soube-se agora que em 2013, ao fazer uma palestra paga na inauguração de uma fábrica de cerveja, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atendendo a encomenda expressa daqueles que o contrataram, afirmou em sua fala: “Eu duvido que a gente tome no mundo uma cerveja melhor que a Itaipava. A melhor cerveja que o povo nordestino vai beber. Cerveja de qualidade”. (Ver reportagem de Ricardo Brandt, Fábio Serapião, Julia Affonso, Beatriz Bulla e Fausto Macedo, Propaganda de cerveja em palestra, publicada no Estado de 29 de dezembro, página A6.) Identidade mais perfeita entre a marca de um político e a marca de uma mercadoria, impossível.
Mais um pouco, vão legalizar o “merchandising político” como solução para o financiamento das campanhas eleitorais. O entretenimento tomou o poder e sai caro.
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