domingo, 13 de abril de 2025

Quarenta anos de uma democracia fundada por ditadores

Planejaram febrilmente o Brasil ia mudar
Congelaram a pátria amada
Botaram as coisas no lugar
Todo mundo, o mundo inteiro
Essa farsa engoliu
O povo se fodeu e o Brasil faliu
Deu errado
Plano furado
Eles não fraquejaram
Prometeram que iam ver
Uma desculpa nova do plano refazer
Refizeram a Constituinte com um grande bacanal

Não rifaram o Brasil porque era ilegal.
“Plano furado”, Ratos de Porão






Era 2009, 24 anos depois da transição democrática, que os pesquisadores do CPDOC/FGV entrevistaram o ex-ministro das Relações Exteriores, Saraiva Guerreiro. O último chanceler do Regime, ou da “Revolução”, como muitos deles falavam em ambientes internos, mostrou seu depoimento e sua memória sobre a transição. Ele diz: “(…) eu não vejo na Nova República, como é chamada, uma quebra propriamente com o passado, mas sim uma busca de refazer tudo de acordo com o que eram ideais do passado que nunca conseguimos efetivar”.

O historiador Tiago Monteiro inicia seu artigo na saudosa Revista de História da Biblioteca Nacional, destacando um ponto central para entendermos o processo de redemocratização: “A eleição de janeiro de 1985, que muitos insistem em apresentar como uma derrota das Forças Armadas, constitui, na verdade, a própria vitória da Revolução de 1964, através da consolidação do processo político brasileiro”. O que nos faz pensar que a democracia inaugurada pela chamada “Nova República” foi fundada por ditadores. Um paradoxo curioso.

A ideia de que o povo nas ruas, que as manifestações pelas diretas já etc. levaram à redemocratização não é confirmada pelos fatos. Até porque, em 25 de abril de 1984, a emenda das Diretas foi derrotada por escassez de deputados. Deste modo, o professor Marcos Napolitano questiona: “Como milhões de pessoas nas ruas não conseguiram derrotar um regime isolado e desprestigiado, nem dobrar seus representantes no Congresso?”

Os militares queriam uma democracia controlada pelas Forças Armadas. O objetivo era manter o poder militar via Estado de direito. O que vemos aqui é o que Maria Celina D’Araújo, Gláucio Soares e Celso Castro chamaram, tendo como objeto a cultura política do período ditatorial brasileiro, de “utopia militar”. Essa utopia “estava claramente fundada na ideia de que os militares eram, naquele momento, superiores aos civis em questões como patriotismo, conhecimento da realidade brasileira e retidão moral”. Para Carlos Fico, a utopia militar trata-se da “crença de que seria possível eliminar quaisquer formas de dissenso (comunismo, ‘subversão, ‘corrupção’) tendo em vista a inserção do Brasil no campo da ‘democracia ociedental cristã’”. De acordo com essa ideologia, o sistema de valores ocidentais só seria “salvo” por meio de uma utópica “democracia militar ocidental”.

No início planejava-se “a constitucionalização do regime, mas não o retorno do país à democracia liberal”. No entanto, quatro fatores prejudicaram esse projeto: a vitória do MDB nas eleições parlamentares de 1974; a crise econômica; o fato do presidente Jimmy Carter iniciar uma política de direitos humanos que não tolerava mais ditaduras no continente; e os assassinatos em quartéis, com as mortes do jornalista Vladimir Herzog e de Manuel Fiel Filho.

Contudo, o projeto militar encontrou uma solução: Tancredo Neves. O candidato civil era “diplomado na ESG e frequentador das reuniões de ex-alunos da instituição”. Tancredo se comprometeu com o projeto de Distensão – então chamado de Abertura – e de não punir nenhum militar envolvido na repressão. Escolheu para ministro generais “esguianos” – formados pela ESG – como os generais Ivan Mendes e Leônidas Gonçalves.

O que ocorreu foi uma transição pelo alto. Talvez por isso, a morte de Tancredo ganhou uma cobertura ampla, que o transformou em um verdadeiro mito pela imprensa que apoiou a ditadura militar. O Fantástico da Rede Globo dedicou quatro horas transformando o presidente eleito em mártir; “claramente representado pelo mito cristão da redenção pela morte do messias”.

Tancredo faleceu em 21 de abril de 1985 e o primeiro presidente civil acabou sendo o seu vice, José Sarney, político vindo da Arena – partido ligado ao regime militar.

Sarney assumiu a posse antes de Tancredo morrer, que só autorizou a cirurgia (que não viria a ter sucesso) ao saber que Sarney seria empossado.

O historiador Jorge Ferreira mostra um episódio emblemático: “O general João Figueiredo, desafeto político de Sarney, negou-se a passar-lhe a faixa presidencial e saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto. Ninguém parecia perceber e nem se preocupar com o episódio. Os militares, que entraram no Palácio arrombando a porta da frente, saíram sem serem percebidos pela porta dos fundos”.

Desse modo, o povo mais uma vez viu os militares mexerem os pauzinhos e determinarem os rumos da República enquanto assistiam tudo bestializados. Não houve ruptura, apenas a imposição liberal do projeto militar que tem como objetivo central a não participação popular na condução do país.

A frase de Bolsonaro, pronunciada em 2021, perante os militares no Rio de Janeiro descreve o plano militar: “Quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas. Não tem ditadura onde as Forças Armadas não a apoiam”. Indiretamente, essa frase pode ser interpretada exatamente da maneira pela qual os militares do período pensavam a redemocratização. Uma espécie de tutela, no qual eles decidem o momento de fazer uma intervenção ou não.

Desde 1985, os militares se retiraram da cena política com a certeza de que não iriam ser punidos pelos crimes cometidos entre 1964 e 1985. De certa forma, eles negociaram a transição com civis que fossem próximos do entorno militar ou que pelo menos tivessem um sentido mais conservador. Como bem aponta o historiador Adriano de Freixo, os militares aceitaram perder o protagonismo político, mas não ser controlados pelas forças civis.

Durante o período em que não estiveram no centro do poder político, as diversas tentativas de controle dos civis causaram crises. Por exemplo, no segundo governo FHC (1998-2002), a criação do Ministério da Defesa (MD) foi uma tentativa de fazer um maior controle das forças, algo que sofreu críticas e acabou não sendo bem aceito pelos militares. Depois, durante uma parte da gestão Lula II (2006-2010) e Dilma (2011-2014), iniciou-se as discussões sobre as reformas no ensino militar, com a possibilidade de mudar o currículo e colocar temáticas que fossem mais próximas do debate democrático. A simples menção a mudanças no currículo gerou muitas dificuldades para as gestões petistas. A última tentativa de mudar o pensamento militar autoritário foi com a Comissão da Verdade, algo que não foi aceito pelos militares que se basearam na Lei da Anistia para não mexer naquele antigo passado.

Entretanto, os militares, após um longo período na caserna, aproveitaram a oportunidade que as jornadas de 2013 trouxeram. A crise econômica e política que gerou o golpe de 2016 abriu uma oportunidade para recuperar o protagonismo político. Apesar de não aceitarem e não respeitarem uma figura do “baixo clero” e indisciplinada como Bolsonaro, eles entenderam que era uma possibilidade de ter alguém comandando a Presidência da República que poderia favorecer as suas pautas. Entre as quais estavam um constante aumento de militares nos cargos da administração federal, valorização salarial e aumento do orçamento para as Forças Armadas.

Para além dessas demandas classistas, os militares da alta cúpula que cercaram Jair Bolsonaro, eram formados pela Escola dos Agulhas Negras (Aman) e com a mentalidade autoritária militar desde 1889. Isto é, ancorada nos três pilares que aponta Carlos Fico: o desprezo pela política, a convicção da superioridade dos militares em relação aos civis e a crença de que a sociedade não está preparada para se governar. Logo, entende-se porque o alto escalão das forças estava disposto a fomentar um golpe de Estado no país. Eles são formados para acreditarem que são superiores moralmente na governança do país, e se levarmos em conta que foram eles que negociaram a transição democrática em 1985, em suas cabeças eles estavam apenas fazendo o que era correto para a sociedade, como bons tutores da nação.

Contudo, nessa democracia forjada pelas Forças Armadas, não são elas que determinam as medidas que serão adotadas pelo governo. Dentro do sistema neoliberal brasileiro, quem dita as regras são o mercado financeiro e o agronegócio. E, como nesse sistema a principal responsabilidade do Estado é a segurança, já que a meta é privatizar tudo (educação, saúde etc.), os militares (principalmente no Brasil onde não houve um acerto de contas com os crimes cometidos por eles durante a ditadura) acabam adquirindo um grande protagonismo, ganhando reconhecimento e prestígio perante a população que vê nas Forças Armadas a solução final para combater a violência. O neoliberalismo tornou-se uma espécie de antessala de uma ditadura em nome da segurança.

Uma democracia fundada por ditadores e administrada pelas elites econômicas pode ser chamada de democracia?

Nesse sentido, é importante desconstruir essa noção de que os militares são superiores em relação aos civis. E para tanto, o julgamento sobre a tentativa de golpe de Estado e destruição das instituições democráticas, é um ponto fundamental, posto que, desde 1889, não houve, em nossa história, punições para os militares que fomentaram golpes militares.

Além disso, seria imprescindível, em termos econômicos, compreender que o capitalismo limita a democracia. A cientista política, Ellen M. Wood, é enfática sobre esta questão: “Não existe um capitalismo governado pelo poder popular no qual o desejo das pessoas seja privilegiado aos dos imperativos do ganho e da acumulação e no qual os requisitos da maximização do benefício não ditem as condições mais básicas de vida. O capitalismo é estruturalmente antiético em relação à democracia, em princípio, pela razão histórica mais óbvia: não existiu nunca uma sociedade capitalista na qual não tenha sido atribuído à riqueza um acesso privilegiado ao poder”.

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