quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

O chanceler quer apagar a história do Brasil

“Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”, afirmou o chanceler do bolsonarismo, Ernesto Araújo, em seu discurso de posse. Por quê?

Prestar atenção ao que diz o chanceler Ernesto Araújo tem sem mostrado tarefa penosa, mas fundamental para compreender como a ideologia do Governo Bolsonaro está sendo construída. O diplomata foi indicado por Olavo de Carvalho, considerado o “guru da nova direita” brasileira, desde sua casa nos Estados Unidos. Claramente, Araújo tem a pretensão de dar a base intelectual ao que o bolsonarismo chama de “nova era”. Se integrantes mais preparados do governo concordam, há dúvidas robustas para suspeitar que não. Araújo, porém, segue firme em seu propósito, publicando artigos onde consegue espaço.

O discurso de posse como novo ministro de Relações Exteriores é uma falsificação da história, com o objetivo de justificar o presente e o futuro próximo. Para fazer parecer que a estrutura parava em pé, o chanceler usou seu grego, seu latim e até mesmo seu tupi, abusou do recurso do name-dropping (ótima expressão em língua inglesa para aqueles que desfiam nomes e citações para impressionar o interlocutor), dos clássicos à cultura pop. Todos já bem mortos, para que nenhum deles pudesse contestar a citação. Nenhuma de suas escolhas é um acaso. Vale a pena se deter em cada uma delas porque, como já escrevi neste espaço, os malucos agora sapateiam no palco — e sapateiam com poder de destruição.

Ernesto Araújo é um personagem ainda obscuro para o Brasil, embora seja um diplomata de carreira do Itamaraty. Em seu discurso, ele dispôs de figuras e acontecimentos históricos, assim como artistas contemporâneos, como se eles estivessem misturados como bonecos de plástico numa prateleira, para serem usados ao gosto do freguês — e para o propósito do freguês. Arrancados de seu contexto e esvaziados de conteúdo, eles foram manipulados pelo chanceler para produzir a sua falsificação. Cada frase tem ali um objetivo.

Me detenho apenas em uma, que chamou particular atenção e foi reproduzida várias vezes na imprensa e nas redes sociais, com a qual abro esse artigo: “Vamos ler menos The New York Times, e mais José de Alencar e Gonçalves Dias”. Por quê?

Não é preciso ter inteligência acima da média para perceber que não faz nenhum sentido contrapor um dos mais importantes jornais do mundo, com edição diária, e dois escritores do romantismo brasileiro do século 19. O objetivo é exacerbar um nacionalismo que se ajoelha diante de Donald Trump, mas despreza a independência do New York Times; idolatra o WhatsApp e o Facebook de Mark Zuckerberg, mas achincalha a imprensa brasileira.


O chanceler quer menos denúncias bem apuradas e checadas contra Bolsonaro e contra os abusos do seu governo, documentados pelo Times e pelos principais jornais do mundo onde a imprensa é livre. Menos imprensa, convertida declaradamente em “inimiga pública”, por Bolsonaro e seus papagaios, porque querem falar diretamente com seus seguidores sem serem perturbados. Do contrário, teriam que responder perguntas difíceis e explicar depósitos de Queiroz na conta da primeira-dama.

Para não terem que prestar contas de seu governo ao público, é preciso destruir a credibilidade da imprensa. Sim, porque um tuíte ou um “live” no Facebook não é prestar contas, é apenas dizer o que quer, como faz a maioria, sem correr o risco de ser contestado com fatos e provas. O que os bolsonaristas querem fazer parecer democracia é apenas autoritarismo e já foi usado antes por governos totalitários, mas sem a enorme facilidade das redes sociais da internet.

A imprensa só faz sentido se fiscalizar o governo, qualquer governo. A frase do senador americano Daniel Patrick Moynihan (1927-2003) já se tornou clichê, mas ela é precisa: “Você tem direito a suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. A luta dos bolsonaristas é para inventar seus próprios fatos, de modo que a realidade não importe nem atrapalhe seu projeto de poder.

Mas por que José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias (1823-1864), dois escritores do Brasil do século 19, que escreveram no Brasil imperial, durante o reinado de Dom Pedro II?

Essa escolha é capciosa, como todas as outras. E se refere a uma suposta identidade nacional. Alencar e Dias são expoentes do romantismo na literatura brasileira — um na prosa, o outro na poesia. Eles viveram e escreveram sua obra num momento muito particular do Brasil. O país se tornara independente de Portugal, o que significava que deixava de ser colônia dos portugueses.

Na visão dos homens daquela época (e eram majoritariamente homens, porque as mulheres, exceto raríssimas exceções, não tinham voz pública), era necessário criar uma identidade nacional. Para isso, seria preciso marcar essa identidade no campo da cultura. O Brasil deveria ter, ao mesmo tempo, uma literatura que o colocasse no mesmo patamar da Europa, que vivia a fase do romantismo, e ser ele próprio um novo que emergia após os séculos de domínio português. Gonçalves Dias e José de Alencar entregaram-se a essa tarefa. Não foram os únicos, mas tornaram-se referências do romantismo que inaugurava o que se chamou de literatura brasileira.

O chanceler de Bolsonaro exalta um momento da história do Brasil em que as elites se empenham em criar uma identidade nacional depois de o país ter sido colônia de Portugal. Araújo parece acreditar — ou quer que acreditemos — que o governo Bolsonaro está promovendo “o renascimento político e espiritual” do Brasil, como ele escreveu em um artigo. Ou, como afirmou em seu discurso de posse: “Reconquistar o Brasil e devolver o Brasil aos brasileiros”. Araújo quer que acreditemos que tudo o que aconteceu entre a independência do Brasil, a de 1822 — e a nova independência do Brasil, a que ele acredita estar sendo liderada pelo seu chefe, em 2019 — não existiu.

O ideólogo do governo parece sugerir que esse hiato de dois séculos foi um tempo de perdição do Brasil de si mesmo. “O presidente Bolsonaro disse que nós estamos vivendo o momento de uma nova Independência. É isso que os brasileiros profundamente sentimos”, afirma Araújo, que acredita ainda que suas cordas vocais libertam a voz do povo. Bolsonaro seria então uma versão contemporânea de Dom Pedro I, com sua espada em riste para libertar o Brasil. Não mais diante do riacho Ipiranga, agora no espelho d’água do Planalto.

O chanceler acessa esse episódio em dois momentos de sua vida, como ele mesmo relata no discurso de posse: “Eu me lembro da emoção que eu senti pela primeira vez, quando era Terceiro Secretário (do Itamaraty), que subi as escadas para este terceiro andar, e vi, logo ao subir a escada, o quadro da Coroação de Dom Pedro 1º e o quadro do Grito do Ipiranga. Imediatamente, eu, que tinha 22 anos, me lembrei de quando tinha 5 anos e assisti maravilhado no cinema ao filme ‘Independência ou Morte’, com Tarcísio Meira e Glória Menezes. E pensei: então tudo isso existe, né? Tudo isso existe... e tudo isso é aqui!”.

Pois é. Em outro ponto, com a sutileza de dar alguns parágrafos de intervalo, o admirador de Dom Pedro I e de Tarcísio Meira usa um tuíte para comparar Bolsonaro à rainha Elizabeth II, da Inglaterra: “Vou dar um exemplo do que temos para ouvir. É o comentário de uma pessoa que segue a minha conta do Twitter, que diz o seguinte... li isso ontem: ‘Antes eu não entendia o amor do povo da Inglaterra pela rainha. Agora entendo. Quando temos alguém que ama seu país e seu povo e os defende, ganha amor e respeito. Não conhecíamos isso antes de Bolsonaro’”.

Em nenhum momento os indígenas são citados nominalmente no discurso de posse do ideólogo do governo de extrema direita, o que em si já diz bastante coisa. Mas uma das línguas indígenas, o tupi, se faz presente. De que modo, porém? Na Ave Maria em tupi do padre José de Anchieta, jesuíta canonizado santo pela Igreja Católica. A língua do indígena usada para catequizá-lo numa religião alienígena às suas crenças. A escolha não é um detalhe. Sem a experiência da cultura, que confere carne à língua e conteúdo às palavras, a língua nada é. Apenas casca, como casca era o indígena do romantismo do século 19.

O escritor José de Alencar é o principal expoente da prosa do que se chama “indianismo” na literatura brasileira. Em três livros — O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874) —, ele busca construir uma identidade nacional fiel aos princípios do romantismo. Como o romantismo europeu é marcado por uma ideia heroica do cavaleiro medieval, Alencar torna o indígena um cavaleiro medieval ambientado na exuberante paisagem tropical do Brasil.

O indígena, habitante nativo que vivia na terra antes do domínio europeu, seria o herói genuinamente brasileiro da nação que se declara independente da colônia. Mas com todas as qualidades atribuídas à cavalaria, na Idade Média, transplantadas para seu corpo e sua alma. A coragem, a lealdade, a generosidade, a partir de um ponto de vista que servia à manutenção do sistema feudal, e o amor cortês. Para escritores da época de José de Alencar e de Gonçalves Dias, que viviam o período pós-independência do Brasil, escrever era um ato de patriotismo. Eles teriam de dizer com sua obra o que é “ser brasileiro”. É também essa referência que o ideólogo do governo procura resgatar e enaltecer.

Os negros, corpos escravizados que moviam a economia do Brasil e serviam às suas elites, não estavam presentes como formadores de uma identidade nacional nestes romances de fundação. Se os escritores buscavam uma identidade nacional, ela era forjada dentro da matriz europeia. Como seria possível escrever em língua portuguesa, a do colonizador, sem ser colonizado na linguagem, foi uma questão crucial para a qual Alencar e outros também tentaram dar uma resposta no século 19. Mas este é um tema longo para outra conversa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário