Na sexta-feira 24 de maio, antevéspera das manifestações em apoio a Jair Bolsonaro, a consultoria Bites, que faz medições de diferentes métricas na internet, constatou que, até as 20 horas daquele dia, a convocação para os atos a favor do presidente tinha um incentivo seis vezes maior do que o dos protestos contra os cortes na Educação, de 15 de maio. Segundo a Bites, foram 1,2 milhão de postagens chamando para as manifestações de domingo, contra 206 mil para os atos da semana anterior. Passado o domingo, entretanto, as ruas mostraram outra realidade. De acordo com o monitoramento feito pelo G1, ao longo do dia 26, até as 20h40, houve protestos apoiando Bolsonaro em 156 cidades de 26 estados, mais o Distrito Federal. No mesmo horário na quarta-feira 15, o dia dos atos em defesa da Educação, foram contabilizadas manifestações em 222 cidades de todos os 26 estados e no DF. O que houve? Por que a força do movimento pró-Bolsonaro foi maior nas redes, mas isso não se traduziu em gente na rua? A resposta talvez vá contra o senso comum da força inequívoca nas redes sociais. Talvez o Brasil seja maior e mais diverso do que os 280 caracteres do Twitter e seus pares sugerem.
Há pouco mais de um ano, foi isso que mostrou a investigação "Todo mundo quem?!", feita pelos pesquisadores Filipe Techera e Luiza Futuro, que traçou um panorama quantitativo e qualitativo sobre o acesso às redes sociais no país. A fase qualitativa estudou o comportamento dos brasileiros nas redes, e a quantitativa, conduzida pelo instituto Gfk, conduziu 11.887 entrevistas, com pessoas das 15 principais regiões metropolitanas. Os números mostraram que, a despeito do discurso dominante sobre o impacto das curtidas e compartilhamentos, há 70 milhões de pessoas que não estão nas redes sociais. São os “nativos sociais”, que estão fora das plataformas, em parte porque não têm acesso, mas também porque, em muitos casos, optaram por desativar seus perfis.
Techera trabalhava na produção do programa "Esquenta", da TV Globo, apresentado por Regina Casé, quando teve a ideia de fazer a pesquisa. Leu uma reportagem na época que dizia que as redes embutiam “as opiniões de todo mundo”. O mergulho nas entrevistas mostrou que, embora a maioria esteja nas redes, há muitas camadas nesse “todo mundo”. Há pessoas que queriam estar, mas não estão, por razões diversas — falta de infraestrutura, incapacidade de interpretação de texto, pouca habilidade digital, falta de dinheiro, entre outras. Há também os que romperam relações da vida real devido à interação virtual, os que buscam mais privacidade, os que sofrem com ansiedade, sensação de urgência, baixa autoestima ou que, por diferentes experiências, saem pior do que estavam quando fizeram o login.
As entrevistas mostraram, por exemplo, casos de impacto do Instagram na saúde emocional de pessoas que optaram por deixar as redes. “A narrativa que se constrói ali da vida das pessoas muitas vezes foge do real. Embora muitos saibam racionalmente disso, a linha do tempo do vizinho sempre parece mais verde do que a sua”, analisou Techera, lembrando que entrevistados diziam não se sentir parte do Instagram por morar num lugar velho, sentir-se feio ou por ter uma vida que consideram chata. “Isso vira uma referência de vida que, na maior parte dos casos, é inalcançável para a maioria das pessoas. O algoritmo mede a exposição dos perfis pelo número de likes obtidos, e isso faz com que eles fiquem mais altos na hierarquia social que é construída ali dentro.”
Mas o impacto vai além. Empresas que tomam decisões de negócios enviesadas pelo que bomba nas redes também erram ao desconsiderar que um terço do país não está lá. Os governos também erram. Há alguns anos, os principais esforços do governo federal na internet têm sido na universalização do acesso à banda larga. Mas, além do acesso, há que se tirar do papel o que já está previsto em lei: que haja educação para esse uso. Sem a educação midiática, não há estímulo para que o acesso à internet tenha bom proveito.
Techera frisou que as companhias telefônicas também têm sua responsabilidade. A publicidade que vende pacotes de dados martela o benefício de WhatsApp, Instagram e Facebook ilimitados, estimulando o uso, mas sem sinalizar com a necessidade de ter controle de quanto tempo é despendido ali. Alguns pacotes já foram além e foram vendidos com o WhatsApp gratuito apenas de madrugada. “Qual é a mensagem que é passada? Não é sobre limitar o acesso. Essa ideia não é boa, nunca dá certo. É sobre ensinar quais são os pontos positivos e quais os possíveis problemas que essas pessoas podem ter estando nesse universo”, cobrou Techera.
A partir dos relatos obtidos pela "Todo mundo quem?!", e também com a observação nos últimos meses, os pesquisadores chamam a atenção para a crescente sensação negativa sobre a internet, que passa a ser mais e mais associada a contextos negativos. Discursos como “Fica muito na internet”, “Não sai de lá”, “Só tem coisa ruim”, “É briga o tempo todo” vão se tornando mais comuns. Techera agora está coletando entrevistas, músicas e posts em redes sociais que relatam o incômodo com o uso da internet e mostram que a ideia de estar sempre conectado, considerada positiva no passado, vem dando lugar a nuances mais negativas. “É ruim alguém que está muito na internet, ou que briga muito na internet, ou que só se relaciona na internet”, comparou.
As entrevistas mostraram que há uma associação direta entre internet e redes sociais, como se fossem a mesma coisa, quando não são. O lado positivo, de estímulo à aproximação entre as pessoas, de ter uma esfera virtual de debates, não é das redes sociais. É da internet. O lado negativo, das brigas, dos ataques virtuais, dos caça-likes, das vidas falsas e perfeitas do Instagram, é das redes. O prejuízo para quem decide se desconectar, alertam os pesquisadores, é jogar fora a água da bacia com a criança dentro.
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